sábado, 27 de abril de 2013

Ter estilo literário!...

Cartas trocadas por um escritor, meu prezado amigo, com um outro seu amigo também dado às letras, que há dias me foram dadas a ler, deixaram-me a reflectir sobre o tema que nessas cartas debatiam. Tentava um persuadir o outro da importância que a criação de um estilo literário pessoal tinha para o autor. Mas o persuasor acabou de repente a optar pelo suicídio enquanto o seu correspondente continua activo, a escrever. 
Será assim tão relevante, de facto, a ostentação de “estilo pessoal” no que cada autor assina? Sem qualquer dúvida, a originalidade da obra é condição primeira da criação artística autêntica. Porém (como o outro avisa, lembram-se?) essa originalidade de estilo não pode chegar a ser tão pessoal ao ponto de impossibilitar a redacção de uma carta anónima… 
Normalmente, o estilo resulta do jeito pessoal de cada autor que usa as possibilidades expressivas da língua. Logo, todo o autor, literário ou não, “tem um estilo”, na medida em que, em rigor, afeiçoa o léxico e a sintaxe ao que pretende verbalizar. Mas, desejando que o seu texto seja inteligível, terá que atender ao velho preceito de Aristóteles: “A primeira qualidade do estilo é a clareza.” 
Em última análise, uma forma de expressão verbal acabada contém marcas da originalidade do respectivo autor (a contrastar com noticiários da imprensa, de teor unívoco, informativo). Todavia, não é esse “estilo” rarefeito, dissolvido nos textos, a bagatela que alguns autores literários de hoje almejam. Quererão atingir uma originalidade elaborada e notória no plano da estética literária, isto é, que transcenda Saramagos, Lobos Antunes, Aquilinos, Eças… e todas as influências que possam ter recebido. 
A competição no meio literário aperta, violenta, impõe mesmo estratégias de sobrevivência. Montes de novos autores surgem em cachoeira jorrante no espaço mediático, uma golfada abafa a precedente e para não entrar ou continuar na sombra a repetir histórias requentadas (pois não restam outras) com temperos de escrita criativa, um “estilo” é sonho lindo que reforçaria a “marca” que tem o nome do autor. Querendo, ele pode mudar de caligrafia (caso rejeite o computador, teimando em escrever à mão), mas uma estética literária inovadora não será de criação assim tão acessível… 
De resto, há bastantes maneiras de cultivar a forma, tantas maneiras que podem chegar, a meus olhos, a vizinhanças do cultismo gongórico. Porém, a forma desgastou-se e pede renovação, isto é, em termos de estética literária, pede odres novos para vinhos novos. Esperemos então que a definição do anunciado cânone literário venha dar uma ajuda, irrompendo como Godot no palco onde o esperam dois crentes palradores. [Imagem: Afrodite, escultura miniatural criselefantina de Ferdinand Preiss: 1882-1943.]

quarta-feira, 24 de abril de 2013

25 de Abril

A LUTA NECESSÁRIA

É preciso avisar toda a gente
dar notícias informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir.


É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha.


É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta.


É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores.
É preciso imperioso e urgente


mais flores mais flores mais flores.


       João Apolinário (1924-1988)

In Morse de Sangue
Porto, 1955

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Que livros “para crianças”?

Retomo este assunto chamado por uma notícia que, na sua simples gravidade, deixa à vista o avanço da destruição operada pelas pedagogias em uso no sistema do ensino no país democratizado. O blogue de uma escola do primeiro ano do ensino básico, algures no Ribatejo, anunciou que as ilustrações de certo livro de histórias para crianças eram “pobres” no parecer dos seus professores. Ora é neste ponto preciso que o caso se torna exemplar.
Quem assina aquelas ilustrações é Júlio Resende, artista de renome nacional decerto desconhecido algures no Ribatejo, que foi mestre de muitos outros artistas e director da Escola de Belas Artes do Porto; pintou e expôs longamente, além de ilustrar livros com geral aplauso. Vejamos agora: que gosto estético, ou educação artística, abonará a classificação atribuída pelos professores às aguarelas que iluminam o livrinho publicado pela ASA em 1989 e que, figurando na lista do PNL, ia na 6ª edição em 2010? Acharam-nas “pobres” porque, tratando-se de histórias com vincado teor poético, J. R. optou por imagens cheias de sonho e leveza, nada afins, portanto, das vulgares bonecadas giríssimas, em cores berrantes e muita animação.
Percebe-se de relance o que subjaz neste caso. Desde logo, equaciona o lugar que a literatura “para crianças” pode e deve ter na Escola. Que literatura?
Desde há anos que as escolinhas do país entraram nos roteiros habituais dos autores dispostos a disputar no terreno a sua fatia de vendas a outros autores não menos ansiosos de promoverem as suas obras. As editoras publicam-nas (são “autores que vendem”) e, como alvejam a população escolar, os autores caem sobre esse “mercado” que, apesar de exaurido, ainda gosta de os receber. Os visitantes proporcionam a alunos e professores uma sessão divertida: dão-se a conhecer e reconhecer (aparecendo em anos seguidos), falam da obrinha que estão a lançar e das suas histórias divertidíssimas e os putos compram-na para levar o autógrafo.
Acontece assim que o “mercado” se encheu de subliteratura descartável, com histórias mais infantilizantes do que “infantis” e muitas ilustrações a condizer. Não servem à formação correcta do gosto literário nem à formação estética das novas gerações, posto que sejam fáceis de ler, ver e também esquecer.
Quer dizer, longe vão os costumes de as escolinhas convidarem os autores que os professores de Português liam e apreciavam; escolhiam um livro, punham uma ou mais turmas a apreciá-lo e, quando o autor surgia, a sua obra em geral e aquele livro em particular eram bem conhecidos (com leituras, composições, dramatizações, trabalhos manuais, etc.), não careciam de propaganda, e ele, entrevistado, não tinha de responder a perguntas de chacha. Vão longe essas escolinhas de apenas há trinta anos ou menos, a idade dos jovens tecnocratas que por aí andam, “especialistas” de crista ao alto, a impor políticas neoliberais portadoras de austeridade, desemprego e geral empobrecimento. [Imagem: livro-árvore iluminada.]

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Novos escritores: apolíticos?

Venho a comentar desde há anos as transformações operadas por uma deriva ideológica que arrasta a literatura portuguesa. Os novos autores, surgidos nos últimos trinta anos, revelam tendências para uma “neutralidade” política nas obras que publicam e essa tendência parece em expansão. Evidentemente, pouco escutada tem sido esta voz recôndita, mas de súbito eis-me colocado em notória companhia.
O escritor Eduardo Pitta, em crónica saída na rubrica Heterodoxias da revista “Ler” de Março passado, que um bom amigo me trouxe, pôs o assunto na mesa com magnífica frontalidade. Alinhou uma dúzia de novos ficcionistas para lhes notar uma “aparente abulia política”.
Que escritores portugueses eram os mais relevantes em abril de 1974?, começa Eduardo Pitta por perguntar. Recorda José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Óscar Lopes, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues e David Mourão-Ferreira. Acrescenta Alexandre O’Neill, Herberto Helder e Ruy Belo, que “eram grandes poetas, admirados e respeitados pelas elites cultas, mas sem peso no Meio”. E agrega ainda, entre os “dominantes”, os “tolerados (Cesariny) e os tonitruantes (Ary dos Santos)” para reconhecer – “todos davam a cara”.
Quer dizer: eram figuras da oposição democrática ao regime da Ditadura; autores de obras literárias impregnadas de valores ideológicos afins e cidadãos prestigiados pela coerência ideológica que demonstravam. Eram!... E hoje?
Pitta confronta-os com os “novos” Rui Cardoso Martins, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Alexandre Andrade, Valter Hugo Mãe, Rui Herbon, Rui Manuel Amaral, Jacinto Lucas Pires, José Luís Peixoto, Sandro William Junqueira, João Tordo e David Machado. São “autores nascido entre 1967 e 1978” e, note-se, distinguidos com prémios e traduções! “Gostava de saber – escreve Eduardo Pitta – o que pensam da falácia europeia, do desemprego sem freio, do empobrecimento geral, dos direitos das minorias”, etc., ou seja, dos problemas que afligem os portugueses na actualidade. Simples equação. Serve para demonstrar a radical limpeza que tem vindo a expurgar a nossa literatura – e não só a ficção – de sinais de envolvimento social dos novos autores. O alheamento ou a recusa de cor ideológica (máxime, de esquerda) implantou-se como regra.
O compromisso dos novos ficcionistas é com o mercado, onde qualquer tendência politica ou ideológica não “natural” (isto é, estranha à opinião vulgar) resulta “incómoda” pelo risco de poder estragar o negócio. Esses autores do verbo-de-encher escrevem histórias apurando os recursos das suas particulares “oficinas” mas, faltando-lhes o envolvimento social, privam-se de histórias novas para contar. Sigam Romain Rolland: “Toda a obra que perdura é feita da própria substância do seu tempo: o artista não foi sozinho a construí-la; reproduziu o que sofreram, amaram, sonharam, os seus companheiros, todo o grupo.”

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Estamos no desaforo total

Observou Bertrand Russell: “A humanidade tem uma moral dupla: uma que prega mas não pratica, outra que pratica mas não prega.” O filósofo britânico (1872-1970), prémio Nobel e grande divulgador da filosofia, condena nestes termos essa duplicidade tão velha quanto o mundo. Mas o que diria nestes nossos tempos de subversão total?
O desaforo maior, mais escandaloso, não é apenas permitido e praticado. É assumido como regra normal, aceitável e justa quando “convém” aos interesses instalados, por altos governantes e outras figuras públicas de relevo principal. Assim, os pilares da sociedade desabam e, no meio dos destroços, põem a reinar a insegurança e a aflição. 
Exigências éticas e legais, consciência da justiça, respeito humano, procura da paz social – vacilam e caem na lama com restos do que foi honradez, carácter, brio pessoal. O valor que vale a sério reside agora, em primeiro lugar, no esplendor dos milhões que a ganância do lucro gordo, fácil e rápido acumula, pois o poder, a honra e a dignidade – de uma nação, uma empresa ou de um indivíduo - estão na força atribuída à riqueza material. O que importa, portanto, é acumular, seja como for, essa riqueza (que dá honra, dignidade, poder) para que o indivíduo, a empresa ou a nação cresça e se glorifique. 
Comportamentos escandalosos parecem agora toleráveis e facilmente olvidáveis na precipitação contínua de novos escândalos. Mas quem esquece os governos que usaram dinheiro público para salvar bancos privados falidos na América e na Europa? E quem lembra os depósitos avultados, de bastantes milhões, que o Iraque fizera em bancos ingleses, entre outros, antes que Saddam Hussein fosse derrubado e que foram “congelados” - dinheiro do povo iraquiano que depois caiu… em que mãos? 
Quem pode lembrar os milhões também substanciais que a Líbia depositava em bancos europeus no tempo de Khaddafi e que foram também “congelados” – para onde terá ido o que era do povo líbio? É difícil ter memória pronta quando se impõe a regra do vale tudo… A conspiração desestabilizadora ou mesmo a guerra ofensiva não declarada, com ocupação militar, de uma nação poderosa contra outra enfraquecida acontece e a ONU, e instâncias de direito internacional calam e consentem. 
Tudo isso, no entanto, não passou de um calculado avanço passo a passo da ofensiva geral da subversão em curso. Conduziu por fim à decisão da troika, com a Alemanha à frente e a Holanda atrás, de obrigar os cipriotas com depósitos nos bancos da ilha a perder sessenta por cento das suas economias para os salvar da falência – esses bancos que em data recente foram considerados por peritos europeus de stress com nota positiva! A confiança dos povos europeus ficou terrivelmente abalada. 
Sabem agora esses povos o que, um após outro, os espera. Têm diante da cara, nua e crua, a força destruidora da subversão gerada pelas políticas da estratégica neoliberal. É preciso, é urgente esmagar o monstro para restaurar os valores da civilização e do desenvolvimento social!