terça-feira, 7 de outubro de 2008

Língua: de mal a pior

Se a língua, esta nossa língua materna, tem um tronco como os pinheiros, então esse tronco, formado pelo seu léxico e a sua norma, anda a ser atacado por uma praga de nemátodos. Ameaça corroer-lhe o tronco e abatê-la mas, ao que se vê, isso que importa? Uns caturrões típicos são os únicos que parecem ralar-se, vendo na língua em decadência a marca maior que resta do génio português.
Eu sou um deles, aqui o confesso à puridade. Não me conformo com as tropelias que oiço na comunicação social: a invasão dos anglicismos depois da gíria bebida das telenovelas brasileiras, os pontapés na gramática. Assim, a língua vai de mal a pior... em Portugal. Anda na boca do povo que, desde Quinhentos soube transformá-la, pela mão de Camões e logo por uma plêiade de escritores, numa verdadeira língua de cultura. Mas não é só o povo que agride a norma (e tem desculpa, pode não saber mais), também os intelectuais.
Recentemente, um artigo de opinião inserido no «Diário Económico» (30 de Setº, pág. 53), de autoria de Manuel Gonçalves da Silva, professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNL, chamou à liça o tema «Linguagem e rigor científico». Sublinhando que «palavras e gramática são essenciais à concepção e à transmissão do pensamento», observou: «A escrita atabalhoada, sem respeitar o significado das palavras, impede o desenvolvimento e a divulgação de conhecimentos científicos. (…) As Universidades recrutam docentes sem provas pedagógicas e as togas deixam nua muita ignorância que degrada a Língua e impõe um medíocre ensino às ciências e engenharia.»
Gonçalves da Silva designou quem «escreve teses em inglês para júris, escolas e alunos» caindo em deslizes anedóticos. Consta, por sinal, que há por aí mestre ou doutorado em Letras capaz de errar, não na língua inglesa, sim na sua própria língua materna. De licenciados nem se fala porque, se tal é coisa verídica, é obra!
Nesta moldura, avultou o que o ministro da Cultura, Pinto Ribeiro, anunciou em Paris, nos Estados Gerais do Multilinguísmo: que ia «refundar» o Instituto Camões e reformular o ensino da língua portuguesa no estrangeiro, pois, afirmou o ministro, muitos alunos «não querem o Português literário». Foi claro: «Está previsto que se refunde o Instituto Camões. O que significa prestar uma especial atenção a todos estes curriculos do ensino do Português, que vão ter que ter em consideração que há muita gente que não quer Português literário.» (Ver aqui)
Contra este empobrecimento da nossa língua literária se ergueu Osvaldo Manuel Silvestre, professor da Faculdade de Letras coimbrã. Comentou: «como entender, se não sob suspeita, uma afirmação como a de que ‘há muita gente que não quer Português literário’? Fez o ministro sondagens e inquéritos para o saber de ciência tão certa? Sabe, em função deles, que as pessoas preferem o ‘português mediático’ ou o ‘português futebolístico’ ou o ‘português de Margarida Rebelo Pinto’ ao ‘português literário’? Ou será que se refere à sociologia selvagem produzida por coisas como ‘Morangos com Açúcar’?» (Aqui)

domingo, 27 de janeiro de 2008

E FOI ASSIM...

Um dos prazeres mais intensos que os dias me dão é o de ir caminhando na companhia de pessoa amiga pela tarde amena e ensolarada, com nuvens brancas a correr pelo céu limpo de Primavera talvez a prometer chuva para o jantar, se possível com o oceano próximo a azular o horizonte. E tal pessoa amiga que seja de boa escola e boa escolha para que a nossa conversa flua serena, esplendorosa e fértil como a tarde. E assim saídos, em andanças de erradio, que a conversa escancare uma a uma as nossas janelas, de modo a caldear as observações do momento com as reminiscências despertadas.
Os anos enchem-nos as arcas da memória com o que ficou dos quotidianos vividos e, quando os anos já são muitos, as arcas deitam por fora. Perambular com amigo dilecto e culto semeia tudo isso na corrente da conversa e depois… depois torna-se imperativo colher em escrito o melhor do acontecido para o fixar passo a passo. Recordações, reflexões, confissões (que reparto por três conjuntos, ou capítulos), em amálgama de tempos e lugares, mas amálgama natural porque se derrama assim como o borbulhar da vida. E aqui, embora a fala ocorra na primeira pessoa do singular, não é a pessoa do narrador que tenta sobressair, é sobretudo o narrado que a assume (à pessoa) como espect-actor presente em peripécias com algum significado.
Outrem poria estas coisas em forma de diário íntimo, ou em páginas de teor memorialístico onde talvez se chorasse do pouco mimo recebido dos próprios fados. A mim, porém, só me trilha um tanto pertencer sem remissão ao tempo que me cabe viver: adolescência e primeira juventude no pós-guerra, algo acenou em promessa na transição dos anos sessenta-setenta, ia nos 44 anos quando o regime do Estado Novo caiu, o PREC foi onda perdida no areal da história e, a partir dos anos oitenta, os paradigmas, atraídos por um norte magnético desnorteante, mudaram de sentido tão avassalador quanto se sabe… Que tempo!
Pois bem, não estando aqui um diário íntimo como o de Amiel, nem uma explanação de especial memorialismo como o de Torga, é contudo possível que desses modelos algo retenha em dispersão na medida em que reflicta uma existência e uma memória através de recordações pessoais, no geral observações e estórias decerto de algum proveito e exemplo. Que o Leitor seja agora o amigo bom a acompanhar as conversas tecidas ao longo destas páginas nos meandros de uma geografia humana em saltitante descrição – eis o voto de quem se dispõe a contar:
- E foi assim…