sábado, 30 de julho de 2011

Em férias


Os visitantes regulares deste sítio, nesta altura do ano, já esperam o anúncio. E, creio, não acham demais. É da praxe: o escriba de serviço vai de férias.
Sai daqui para fora cá dentro. Durante agosto, certo e sabido, contem com ele ocupado a guardar-se das chapadas do sol e, metido nas sombras, a fechar-se em copas. Mas não quedará inativo.
Além de respirar, esforço que o comum das gentes faz sem sentir o que faz, o escriba tenciona dedicar-se a dois projetos. Gostaria de organizar em volume uma seleção das crónicas editadas neste blogue desde setembro de 2009. Será o segundo volume desta série e em breve ficará acessível online tal como o primeiro.
O outro projeto terá um cunho mais literário, logo, mais particular. Uma pequena coletânea de ficções espera sem mais paciência. Enfim, como se vê, o escriba fica entregue...
- nós tornaremos a encontrar-nos aqui no princípio de setembro.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O caminho da subversão

Movemo-nos, já ensurdecidos, entre discursatas sem fim que se cruzam no ar com opiniões sobre a «crise» apreciada por todos os ângulos imagináveis. É o problema das dívidas soberanas, das agências de rating e dos «mercados» ou da inépcia franco-alemã. Porém, sendo diferentes, as opiniões são concordes num ponto: não dão nome claro ao monstro.
Ora é preciso nomeá-lo para olharmos de frente a monstruosidade. Não é fácil descer ao fundo da questão largando os toques pela rama, mas estamos dentro do labirinto e sem podermos fugir ao minotauro. Esforcemo-nos, pois, com a máxima aplicação, para chegarmos a compreender bem como funciona hoje  e nos avassala o sistema financeiro internacional, isto é, como avançamos sem tino pelo caminho de uma global subversão.
Vemos as classes médias a desaparecer e a pobreza, o desamparo, a miséria a aumentar... e o que nos impede de crer na luta de classes? Dizem-nos que entre 2000 e 2009 uns 150 mil milhões de rendimentos saíram do país e agora temo-lo afundado num mar de dívidas, sob um regime de austeridade imposto pela troika externa (que o Governo recém-eleito agrava achando-o escasso), em resultado das políticas de direita praticadas nos últimos trinta anos... e os eleitores deram 78% dos votos aos três partidos que puseram o país nesta situação? Que explicação haverá melhor do que esta, que a riqueza (mal) distribuída de 99% da população está a ir para as mãos de 1%?
O fim da regulação do sistema financeiro pelos poderes estatais abriu as portas à instalação do capitalismo selvagem. A estratégia especulativa da alta finança, depois de atrelar os governos aos seus interesses gananciosos e de criar o seu «mercado», aposta na exploração das riquezas de cada Estado mais a jeito (de estrutura económica mais frágil) através dos bancos nacionais. Assim, cada um destes Estados dilui pouco a pouco o seu papel histórico - garantia aos cidadãos os seus direitos constitucionais, no mínimo os direitos humanos - e, pela imposição de cargas tributárias crescentes, vai-se transformando em agente da acumulação capitalista na mais aguda fase imperialista.
Nesta viragem, os Estados tomam o papel de inimigo das classes médias ao tornar-se em funcionais órgãos da ganância da especulação financeira do grande capital. Começam por induzir as classes médias a consumir e a endividar-se (dinheiro fácil volve-se dívida generalizada) e quando a bolha criada rebenta, chegam os programas de austeridade e mais e mais recessão. Declara-se então a ditadura da debitocracia - o poder maior das dívidas acumuladas sobre os povos que têm de as pagar.
É uma síntese sem dúvida esquemática e abreviada mas clara quanto basta para alertar os distraídos de uma viragem fundamental. Os Estados mudaram. Existem para apoiar, em primeiro lugar, as políticas convenientes delineadas por quem manda no FMI, no Banco Mundial, nas agências de rating, ou em Wall Street.
Não se prevê que algum luminar da proclamada Ciência Económica venha esclarecer o ponto, ocupados como andam com as suas aulas ou a discursar por conta de governos, bancos, sociedades financeiras. Tão pouco se espera que um governante, chefe de partido do arco do poder ou comentador mediático solte o trava-línguas. O caminho da subversão parece irreversível, fique este alerta metido em garrafa caída no deserto sob a violência brutal do sol donde, numa explosão, o gigante da fábula saírá novamente em liberdade para cumprir três desejos. [Imagem: pintura de Julian Beevar em chão de rua.]

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Por exemplo: Murdoch

O escândalo das escutas ilegais que provocou de súbito a liquidação do jornal inglês News of the World e forçou o seu dono a desistir da compra do canal de tv por satélite, negócio apetitoso de uns dez mil milhões de euros, trouxe para a ribalta a figura de Rupert Murdoch. O magnata dos media (Austrália, Estados Unidos, Reino Unido e, enfim, em quatro continentes) ilustra exemplarmente as misérias em que chafurda a imprensa tablóide, do sensacionalismo barato custe o que custar. E agora - a lembrar Orson Welles no clássico filme «O mundo a seus pés» - parece que chegou ao momento de o céu lhe cair em cima da cabeça.
Em Londres, Nova Iorque, Sidney e outras cidades estão sob suspeita e investigação os critérios editoriais praticados pelos órgãos de comunicação social pertencentes à poderosa News Corp de Murdoch. Com a cumplicidade de políticos e de estadistas, este «cidadão Kane» concentrou um império mediático tão vasto e corruptor que lhe permitiu criar ou destruir governos, influenciar disputas eleitorais e políticas governativas.  É o que se diz agora, abertamente, quando o medo se dissipa e o magnata parece ter caído em desgraça.
O poderio de Murdoch provém da quantidade incrível de órgãos mediáticos que conseguiu concentrar na sua mão em diversos países. Se não fosse agora travado pelo escândalo das escutas (que envolve em suspeitas também os tablóides  do grupo «Sun» e o «Sunday Times», ficaria de posse de mais de metade dos media comerciais britânicos. O homem, com seu filho, é tido como um problema tão global quanto a corporação que criou.
Acusam-no de ditar orientações ideológicas aos seus órgãos, de corromper e controlar democracias, forçando políticos a seguir as suas próprias ideias extremistas quanto a guerra, tortura e outros problemas mundiais, ou destruindo carreiras de políticos  que lhe resistam com campanhas de difamação. É apontado por ter ajudado, nos Estados Unidos, a eleger George W. Bush e de ter às ordens a maioria dos presidenciáveis republicanos. A rede Fox News, do império Murdoch nos Estados Unidos, espalhou notícias para promover a guerra no Iraque, estimulou o ressentimento contra muçulmanos e imigrantes e lançou um movimento populista de direita.
Isto basta como exemplo da valia real de uma (des)informação sem escrúpulos, orientada apenas para a corrupção e o negócio lucrativo (ilustrando o quadro da decadência geral dos jornais, incluídos os gratuitos). Agrada às massas populares servindo-as de papel sujo dos seus jornais, manipula as opiniões sem respeitar os factos e, com as tiragens e audiências que atinge, atrai os anunciantes para a publicidade encarecida. Salienta também os sérios perigos, para os regimes democráticos, que acompanham a concentração de órgãos de comunicação social de cada país em poucas mãos escolhidas e amigas.
Em Portugal, onde temos na memória fresca o caso «Face oculta», essa concentração é já elevada apesar das disposições em contrário. Um grande número de órgãos privados mais influentes já está às ordens de um pequeno grupo de pessoas. Acrescente-se que, conforme se anuncia, um canal da televisão pública será em breve privatizado...

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Cânone literário vem aí

Ao que parece, vai finalmente avançar e concretizar-se a elaboração do  «cânone literário português». O projeto tem o apoio declarado de meios universitários ligados à docência do Português, ou seja, à formação dos professores do ensino secundário e básico daquela área. Objetivo: definir uma lista das obras referenciais de autores portugueses e estrangeiros para crianças e obras também para jovens e adultos, por escolha o mais possível consensual de  especialistas e círculos cultos.
O «cânone» será, pois, uma espécie de «antologia geral» e desde logo não atida apenas aos autores nacionais, entendendo que o nosso país não é estanque pois a cultura portuguesa é, tal como qualquer outra, alfobre fertilizado por trocas com outras variadas culturas. Destina-se a estabelecer um conjunto de textos literários para responder a necessidades do ensino de todos os níveis, do básico ao superior, e ficará sobretudo a valer como espelho da nossa cultura. Poderá resolver muita confusão e polémica, além de objetivar as obras identificadas com mérito reconhecido para, em tradução, merecerem divulgação além-fronteiras.
Na área da literatura para crianças, a elaboração do «cânone literário português» evoca de certo modo, enquanto mero embrião, o lugar do PNL (Plano Nacional de Leitura). Trata-se de listar as obras que um grupo de apreciadores propõe para animar a campanha oficial da promoção da literacia sob a divisa Ler+. Caso o primeiro projeto, do «cânone», se concretize, o PNL poderá perder o seu lugar.
Encaro com expectativa esta evolução. É preciso proceder à recuperação de autores e obras  portuguesas ou em português que os frenesins de uma indústria cultural e uma política educativa  cegueta, em conjunção, condenam ao limbo. Apareça, pois, e implante-se no país um elemento de clivagem formado por  valores marcantes e por noções firmes do que é arte literária para que esta se demarque do que não passe de medíocre comércio literário.
A Literatura é, consabidamente, uma arte exigente e difícil. Quem com ela vive em prática longa e amorosa só pode desconfiar ou maravilhar-se com as mil e tal novas edições de livros  que em avalancha mensal se repetem neste pequeno rectângulo em crise. Irrompem batalhões de novos autores, multiplicam-se as editoras, reduzem-se drasticamente as tiragens, circulam edições pagas pelos autores (mas exibindo chancela tapa-olhos) e o delírio vai em frente.
Montes de livros espalham-se por supermercados, estações de correios, barracas de saldos, feiras em tropel. Rimas de romances envelhecem num instante, edições para leitores infantis ou juvenis enchem catálogos e armazéns de tantíssimas editoras que não querem perder o mercado... E quem lembra agora que a literatura para crianças é sem dúvida, porque tem de ser, a mais espinhosa e difícil?
Mas agora me lembro de um editor que há dez anos repetia: «quem vende os livros são os autores». Tinha razão: os autores, novos ou menos novos, palmilham o terreno metro a metro na promoção das suas obras porque não vêem outra saída. Obras essas, não por acaso, ilustradas com bonecadas giríssimas e historinhas cada vez mais alinhadas pelo levezinho-engraçadinho, isto é, concorrendo para o facilzinho que é o que mais está a dar.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Pois, sem diplomas!

Cuidar da imagem não é só ter carrinho de boa marca para que saibam quem somos ou deixar cair sobre a testa uns cabelos displicentes. É bastante mais do que isso, toda a gente que se preze o sabe falando, com língua de pau, «à política». Mas que fazer,  se há sempre alguém extraviado como se andasse neste mundo sem querer a sério fazer parte dele.
Contra mim falo assim falando. Fui capaz de publicar aqui umas linhas parece que inesperadas ou estranhas e mesmo algo escandalosas, numa crónica que escrevi à sombra no Verão do ano passado e que desde então é visitada regularmente por leitores não sei se curiosos ou incrédulos. O caso está todo na página «Sem diplomas».
Mas devo explicar que os bloguistas têm, se quiserem, informação sumária de alguns índices estatísticos deixados pelos seus visitantes. Nada de especial, é claro. Todavia, esse recurso indica-me como aquela página continua a ser frequentada.
O pormenor é-me grato e, no entanto, pergunto-me o que haverá ali de especial (inquietante?). Fui lá agora reler o escrito e... Ouvi então, sussurrada por cima do ombro, uma advertência singular: «Foste descarado, ficaste na rua sem cara».
Engoli em seco e quedei-me na dúvida. Enrodilhados como andamos nas subversões correntes (pela regra: centra a tua vida no triunfo pessoal), teremos já coragem para achar escandaloso, portanto descarado, quem afirma um simples elemento factual do seu percurso biográfico? A emoção parece vir da frase: «estar na literatura, tal como estar no jornalismo, requeriam tão só, no 'meu tempo', saber de experiência feito.»
Hoje, consabidamente, não é assim. Mas já foi conforme digo: os autores literários e os jornalistas afirmavam, praticando, as suas capacidades pessoais, pois naquele tempo não tínhamos cursos que a tal habilitassem. Fiquei, pois, sem diplomas por muitos anos, embora tenha e possa mostrar um monte de papéis luxuriosos.
Por todos os motivos, aquele tempo é inesquecível para quem o viveu. Os cursos de Letras existentes não serviam então para formar escritores, formavam professores. Os autores literários portugueses da época podiam ter cursado Letras - casos de José Régio, Vergílio Ferreira entre tantos outros - mas isso devia-se à simples coincidência de a formação profissional adquirida coincidir com a vocação.
Uma quantidade de escritores dos maiores do século XX tornaram-se admiráveis sem qualquer curso específico. Eram engenheiros, como Jorge de Sena, ou médicos, como Fernando Namora, Bernardo Santareno ou Miguel Torga, ou, noutros casos, não tinham sequer chegado à Universidade. A preparação atinente à sua vocação obtinham-na por via autodidática, isto é, lendo e escrevendo, logo, mostrando o que valiam e fazendo-se estimar por isso.
As licenciaturas (sobretudo as de feição tecnológica!) tornaram-se tão vulgares que pode resultar chocante que um autor literário travestido de jornalista veterano (ou a inversa?) se declare sem uma pelo menos, para disfarçar. Mas, cá por coisas, eu ando a preferir ler  ou reler os autores de há mais de trinta anos e a sentir quanto ganho com isso.  Convém lembrar, ninguém perguntou a José Saramago nobelizado que escolarização tinha, perguntaram-lhe, sim, como iria ele usar o dinheiro recebido do prémio...