segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Com Alma Encantada

Mantenho em estante especial uma fileira de livros que as mínguas de tempo outrora ali foram reunindo. Confiava que haveria de dispor um dia de tranquilidade para os ler. Porém, as calmarias proporcionadas pelo termo da vida “activa” têm servido para atender a outras pressas, de modo que aquela estante depurada se conserva ainda bem guarnecida.
Mas venho de a reduzir e isso, ali, nota-se. Corridos quase cinquenta anos, peguei nos quatro volumes da edição portuguesa de Alma Encantada, romance de Roman Rolland que, na sua publicação original, em francês, abrangia sete, quase o dobro. Esta outra obra torrencial do autor de Jean Christophe jamais iria cansar os seus leitores.
A “alma encantada” do título legenda a figura central (Anita, mulher de quilate admirável), que atravessa com seu filho, Marcos, e uma meia irmã, Sílvia, o tormentoso fim do século XIX em Paris, França e Europa, e que, em 1913, vive o período da maior decadência no limiar da Primeira Grande Guerra. O talento e o vigor narrativo do Autor (1866-1944; prémio Nobel em 1915), não cabem aqui, apenas a flagrante actualidade desta obra que nos lembra aquele tempo um século depois. Cito um trecho: 
“A sua função tácita era impedir a acção. Para esse fim, tudo era bom. Até o pensamento. Até a acção!... Porque o paradoxal era que a paixão do desporto, no fim de contas, conduzia à inacção. A embriaguez de acção física e do movimento pelo movimento faziam arredar do seu leito natural as energias torrenciais e esgotavam-nas no ambiente dum estádio, ou, ao fim da sua corrida desesperada, atiravam-nas para o caixote do lixo. O menos atingido com isso não era o povo. Marcos tinha um argumento fácil para opor aos sarcasmos de Masson contra a objecção dos burgueses intelectuais na irrisão dos trabalhadores embrutecidos pelo desporto. Este completava a obra destruidora dos jornais. Criava classes de intoxicados e de inúteis. Os grandes clubes compravam, como cavalos, manadas de profissionais, a quem chamavam amadores, e constituíam equipas de futebol. Milhares de trabalhadores, em pleno vigor, vendiam os seus músculos sem vergonha, levavam uma vida de luxo em hotéis de primeira e carruagens-cama, como internacionais de futebol, até ao momento em que, precocemente envelhecidos, com os músculos sem elasticidade e o seu valor mercantil reduzido a zero, eram lançados no rebotalho, como carcaças dos gladiadores dos circos de Roma.
Ao menos, os gladiadores eram mortos. As vidas perdidas, nos novos estádios, sobreviviam. A plebe espectadora não se preocupava mais com isso do que a de Roma. Eram-lhe necessários outros atletas, e mais outros ainda! Despendia nesses espectáculos toda a paixão, toda a fúria, que poderiam, bem dirigidas, com um empurrão, deitar por terra toda a opressão social. Levava um nacionalismo feroz aos desafios internacionais. Os jogos degeneravam em combates. Havia mortos e os «dianteiros» [avançados?] do rugby transformavam-se em limpadores de trincheiras. Fora para isso que os povos, sãos e salvos da frente, haviam passado sob o Arco do Triunfo?”(3º vol. “A Morte dum Mundo”, trad. Jaime Brasil, Portugália Ed., Lisboa, 1966, pp 137-138.) [Imagem: escultura em folha de árvore por artista omisso - japonês? chinês?]

domingo, 27 de janeiro de 2013

Blogue faz 5 anos

Este blogue completa hoje cinco anos de existência. Não tem estouro de rolha, taças a tinir, brindes de braços no ar em redor de bolo comemorativo. Mas um bolinho, escorrendo doçuras, fica à vista a sinalizar a efeméride.
Aqui se vem fazendo algo como uma “crónica em progresso” dos tempos que vivemos - estes tão atribulados cinco anos da crise estrutural que estende sobre nós um negrume de desastre. Tentando registar os sinais mais óbvios da deriva que nos atola nas desgraças que são a marca deste tempo. Ora, porque já tivemos, no século XIX, um Charles Dickens com os Tempos Difíceis (e já não vamos ter outro porque o romancista londrino da crítica social foi único), constituiu-se esta coluna como o sítio da crónica para acompanhar a queda geral no abismo e ser de facto o juízo do tempo ~ no tempo do juízo.
Cronicando (isto é, praticando um género de escrita situado entre o jornalismo e a literatura), assim se escreve o trágico romance da época terminal que, pessoalmente, também ao escriba cabe viver. Uma época assombrosa, incrível: povos e mais povos avançam como autómatos pelo caminho dos sacrifícios em que se despojam dos direitos humanos conquistados em lutas heróicas travadas ao longo de séculos de progresso social apenas porque já não lhes parece agora tão ruim a escravidão. Uma época histórica de tamanho impacto merece que alguém a testemunhe.
Pode esta coluna não ter os leitores e a atenção que merece. Mas também não está à porta, de chapéu na mão, a pedir que entrem. Quem é livre respeita por princípio a liberdade alheia para não perder a que tem.
Enfim, tentaremos continuar. Sem perguntar ao futuro como ou até quando. Enquanto se mantiver por aqui este nosso lugar…

sábado, 26 de janeiro de 2013

Regresso à «outra» Ortografia

Os textos editados neste blogue começaram a aplicar as novas regras ortográficas do Acordo estabelecido pelos países lusófonos em 15-09-08 e, mais vincadamente, a partir de 26-03-10, quando entraram em vigor, oficialmente, em Portugal. A minha adesão foi sempre um tanto forçosa, pois bem percebia a inutilidade de uma resistência quando íamos atingir a unidade linguística possível na comunidade do Português. Sobreveio agora um duplo revés: o Brasil adiou a aplicação oficial do Acordo até 2015 e Angola também não mostra pressa nenhuma...

Nesta situação, perante uma unificação ortográfica (não completa nem perfeita!) que, em vez de se concretizar no terreno, sucessivamente é adiada por vontade dos dois principais países lusófonos, decido-me a regressar à «outra» ortografia. Esta decisão passou por muita hesitação, na dúvida: não irá tudo isto aumentar irremediavelmente a confusão que vai adulterando a boa escrita?

sábado, 19 de janeiro de 2013

Um povo incompreendido?


A folhinha não mente: a semana começa ao domingo, mas a ordem estabelece que a provação dos cinco dias entra à segunda-feira e logo de manhã. Uma pessoa sai então à rua de mau-humor, entra no café para ingerir o seu quente, escuro e perfumado viático matinal, aprecia o calor do ambiente e dos comentários aos resultados da véspera, solta uns remoques azedos pois continua mal-humorada e corre para o emprego, onde, com mais vagar, entra no fórum habitual que por ali já o espera…
É preciso comentar tudo, mesmo os comentários dos comentários e isso, que já vem da véspera, vai estender-se pela tarde e a noite, nos jornais e nas conversas de rádios e canais de televisão. E… querem ver?! Um relâmpago golpeia o negrume cerrado que parecia amortalhar tanta gente, nela iluminando de golpe novidades maravilhosas.
Subitamente, este país aparece habitado, de norte a sul, por uma população atenta e participante, pronta a tomar a palavra e a intervir em defesa da sua opinião, porque a tem e exerce o direito de se fazer ouvir. Está bem informada e - como é isto possível? - sabe juntar e analisar os factos com lucidez, declarando ou apenas deixando transparecer a inclinação que deveras sente pela cor da sua bandeira. E sabe exprimir-se, e fala com entusiasmo e convicção!
Mas outras surpresas, ainda mais incríveis, saltam. Este povo mostra possuir muito boa memória! Mergulha e torna a mergulhar nos seus arquivos individuais, vasculha nas suas recordações, cita leis, regulamentos e regras aplicáveis, compara factos, raciocina com segurança, analisa, conclui...
Quem diz agora que este povo, a tal maioria silenciosa do Portugal profundo, que não tem memória? Que, por exemplo - chegando uma ou duas horas antes ao seu lugar - não participa com entusiasmo nos confrontos que lhe interessam? Quem diz agora que se afunda em apatia quando lhe sobram motivos para reagir e, zangado, se encabritar?
Uma sucessão de escritores aplicaram-se tentando estudá-lo, entender a sua alma esquiva: desde Estrabão até Antero de Quental, Almeida Garrett, Oliveira Martins, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, José Gil… Não concordam entre si e nós, hoje, não podemos concordar com eles.
Dizem por aí que somos um povo enigmático? Tão incompreendido quão incompreensível? Pois seja, os tugas perdem a cabeça no jogo da bola e ficam depois sem cabeça para as questões da política (por isso o neoliberal Gaspar os vê como valioso ativo nacional!), mas nada do que é humano lhes é estranho. [Autor da imagem (parcial): Rafael Bordalo Pereira.]

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A religião em tempo de crise

A situação económica, de crise estrutural, em que se afundam na atualidade tantos segmentos das populações europeias, ajudará realmente os povos a procurar consolo nas igrejas? Ou, inversamente, contribuirá para os afastar e deixar em descrença? A questão torna a pôr-se, pedindo novas avaliações.
O avanço dos conhecimentos científicos e da educação em geral, em coincidência com uma multiplicidade de fatores sociais, tem incentivado um progressivo enfraquecimento da adesão às formas cultuais da religiosidade tradicional. A laicização das populações vulgarizou-se e a religião foi-se resguardando na esfera do privado individual ou de grupo. O anúncio do “fim da fé” sobreveio à proclamada “morte de Deus”, supremo pai da vida substituído, nas sociedades de consumo e da liberdade fictícia, pelo “deus-mercado”.
De facto, Deus é não o criador da vida, logo da humanidade, sim criação humana elaborada em resposta a ignorâncias e medos ancestrais da espécie. Porém, a população católica portuguesa continua a ser maioritária no país, pois representa uns 85%. No entanto, abalada por escândalos de especial impacto (pedofilia, ocorrências no Vaticano), pode ter enfraquecido a fé, concorrendo para o aparecimento de 615.332 habitantes que o recenseamento de 2011 regista sem religião.
Mas a crise socioeconómica, se não anima o valor das côngruas e dos dízimos, pode atrair ao santuário maior peregrinos em renovadas súplicas por um emprego, ainda que lá cheguem de mãos vazias. Por outro lado, nem todas as correntes religiosas sentem a crise de igual modo. Enquanto a católica regista menos fiéis nos templos aos domingos, outras igrejas, da IURD e de outras organizações oriundas do estrangeiro, parece que singram com bom vento.
Nesta situação despontam alguns sinais de uma evolução geral surpreendente. Certas missas e outras celebrações religiosas apresentam-se com liturgias que transformam os templos em teatros e os oficiantes em atores de uma qualquer pantomima, com verbo inflamado e um pequeno sortido de frases repetidas (marteladas) cem vezes até aquecer e levar ao rubro a freguesia. Ora a freguesia aumenta: aprecia o espetáculo, a vozearia, a emocionalidade fácil e mesmo alguma superstição, sai satisfeita e volta.
Deus, lá do Seu etéreo assento, conserva o indefectível mutismo que tomou desde o princípio das idades e, portanto, nada diz. A liturgia deixa-se contaminar pelo lado laico e as celebrações religiosas, com abundantes Bíblias e crucificados, abrem-se para a cultura do espetáculo ruidoso e festivo. A vivência espiritual intimista sai para o exterior a tomar ares, prova da novidade e gosta, fechada num individualismo que não mais distingue religião de religiosidade, fé de crença iluminada por inteligência viva. [Imagem: placa de ugarit, a primeira escrita alfabética.]

sábado, 12 de janeiro de 2013

Mercado fluvial ou canoas em trânsito originam engarrafamento? Pintura de um certo quotidiano?

sábado, 5 de janeiro de 2013

O povo judeu foi inventado

É o que afirma o historiador judeu Shlomo Sand,  professor de História na Universidade de Telavive nascido em Linz, Áustria, em 1946. O seu livro, publicado em 2008 em hebreu e, em 2010, em francês (título: Comment le peuple juif fut inventé - De la Bible au sionisme, edição Fayard), fez desabar sobre o Autor uma chuva de insultos. Porém, a gritaria ajudou a divulgar a obra, depressa traduzida e publicada noutras línguas principais.
Shlomo Sand baseia-se em diversos documentos para, levantando a polémica, negar "que os judeus constituam um povo com uma origem comum e sustentar que foi uma cultura específica e não a descendência de uma comunidade arcaica unida por laços de sangue o instrumento principal da fermentação proto-nacional" - anota o jornalista e escritor Miguel Urbano Rodrigues em artigo que recenseia a obra. Portanto, a criação do Estado "judaico" de Israel, longe de realizar o sonho nacional de uma comunidade étnica com mais de 4 000 anos, deveu-se simplesmente a uma falsificação da história com origem no século XIX, em Theodor Herzl e outros ideológos do sionismo.
Deste modo, Sand deita por terra este mito fundador de Israel. Apoiado em documentação exaustiva, ridiculariza a propaganda sionista desprovida de base científica: afirma que não há afinidades biológicas, ou pontes, entre os antigos habitantes dos reinos da Judeia e de Israel e os judeus do nosso tempo. Observa Miguel U. Rodrigues: “O mito étnico contribuiu poderosamente para o imaginário cívico. As suas raízes mergulham na Bíblia, fonte do monoteísmo hebraico. Tal como a Ilíada, o Antigo Testamento não é obra de um único autor. Sand define a Bíblia como «biblioteca extraordinária» que terá sido escrita entre os séculos VI e II antes da nossa Era. O mito principia com a invenção do «povo sagrado» a quem foi anunciada a terra prometida de Canaã.”
No seu estudo, Shlomo Sand demonstra à evidência que os judeus são um povo filho de uma cadeia de mestiçagens. O que lhes confere uma identidade própria é uma cultura e a fidelidade a uma tradição religiosa enraizada em falsificações da história e num conjunto de mitos que o Autor destrói. Não tem fundamento, por exemplo, a longa viagem de Moisés rumo à Terra Santa, os sucessivos exílios bíblicos, as expulsões de massas de judeus pelos assírios, etc., e deixa em dúvida as “grandes construções” de Salomão.
Sand aponta dados da arqueologia em Jerusalém e na Cisjordânia que desmentem os historiadores israelitas adeptos da alegada pureza da raça, pilar ideológico da “nação judaica”,
e lança dúvidas sobre a origem dos 12 milhões de judeus da diáspora. Por algum motivo, Israel não tem “nacionais”, apenas “judeus” e “árabes” incluso nos passaportes, e não permite casamentos civis. Nota ainda que a língua israelita oficial, o hebraico sagrado dos rabis, era desconhecida do povo da Judeia, que falava aramaico, a língua da Bíblia.
Surpreende um pouco que a investigação do Autor tenha sido publicitada dentro de Israel em face da poderosa desmistificação que introduz na apreciação das razões políticas da organização daquele Estado. Mas tal surpresa resulta do pouco que de oposição interna transpira, atravessando os filtros, para o exterior. Seja como for, Sand prossegue: após Como foi inventado o povo judeu, reaparece, em 2012, com A invenção da Terra de Israel, em inglês.