quinta-feira, 25 de junho de 2015

O mercado literário

Os autores literários não prescindem hoje de uma imagem pública que os projecte como figuras mediáticas no círculo dos seus leitores. Assim, associada, emerge uma ocupação diversa (cuidar da própria imagem do autor) do seu trabalho da escrita, na medida em que esta careça daquela por necessidade de promoção. Nestas circunstâncias, um caso particular como o de Herberto Hélder parece não ter mais condições para se repetir.

Efectivamente, não basta aos autores mandarem para as livrarias obras assinaláveis. Agora precisam de fazer um esforço suplementar, sair de casa e levar em mão essas obras ainda fresquinhas ao contacto directo com os seus possíveis leitores onde quer que os encontrem. O possível renome ou a popularidade de cada autor, sem mais, de pouco valerão no mercado se ele não se faz presente, aparecendo e reaparecendo, falando e seduzindo os auditórios, pois as regras concorrenciais estão definidas: são exactamente os autores de best-sellers, ou que como tal se pretendam, que mais se afanam a promover o que publicam.
Paralelamente, cada autor tenta manter-se na ribalta, habitar o espaço mediático, ter protagonismo com nome e rosto reconhecidos no mercado como marca” de sucesso, além de ganhar prémios, distinções assinaláveis. Outrossim, vai a encontros, faz conferências, participa em colóquios e debates, dá entrevistas e, evidentemente, não falha as feiras de livros e sessões de autógrafos e lançamentos. Com tudo isto e o mais, estes autores constroem a sua imagem pública tendendo então a ser, de algum modo, public relations bem falantes e de agradável presença para vender o que escrevem.
Nestes termos, os escritores, em quaisquer das dimensões possíveis de cada caso (internacional, nacional, regional ou local), integram hoje no seu perfil umas funções de comunicadores quer tenham já a literatura como profissão ou sonhem vir a tê-la. Enfim, longe vai o (recuado, imemorial?!) tempo em que o escritor, ainda que prestigioso, vivia em tranquila reclusão, escrevendo e reescrevendo sem pressas, publicando pouco e a espaços e, se saía à rua, era ali outro transeunte quase anónimo. As técnicas do marketing, as dinâmicas do mercado literário despontavam outrora escassamente, à semelhança das profissionalizações.
Evidentemente, os autores literários de best-sellers dependem da aceitação que o mercado lhes dê. Logo, produzem para o mercado, atentos à flutuação das procuras, acatando os sinais que recebem de forma a servir as preferências dos consumos. Consequência importante: outros autores, de menor sucesso, tendem a seguir-lhes o exemplo, do que resulta a implantação nefasta de estereótipos formais capazes de empanar ou mesmo de travar a criatividade inovadora da autêntica arte literária.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Tanta “promoção” de livros

O país está a encher-se de feiras de livros, festivais literários, encontros de escritores, sessões de lançamento. Os autores em voga, mobilizados, andam de malas aviadas em corridas para autografarem os seus últimos livros, atentos aos seus próximos que conseguem filas mais compridas de leitores à espera do rabisco. E, assim girando em torno das vendas, dispensam os editores de trabalhar. 

Estará então a eclodir em Portugal um radioso período de criatividade literária tão extraordinária e feliz ao ponto de envolver não apenas os próprios autores mas também, como que por milagre, os seus leitores, agora, por fim, de cultura e educação estética mais refinadas? Seria bom, muito bom, se fosse verdade. Mas, atenção, porque se pronuncia António Guerreiro contra tanta “promoção” das leituras e vendas em curso? 
Guerreiro até vai mais longe. Na última crónica inserida na sua coluna (“Estação meteorológica”, rev. Ípsilon, “Público”, 12-06-15), expressivamente titulada “Menos literatura, por favor”, escreve: “Este discurso da ‘promoção’ da literatura e do livro está certamente cheio de boas intenções, mas em nada se distingue do departamento comercial de uma grande editora.” Continua: “Se as multidões que acorrem aos festivais literários e outras manifestações onde se exalta o valor de certos livros e da literatura criassem uma verdadeira esfera pública literária, a grande república das letras estaria resplandecente.” 
Leio habitualmente a coluna de António Guerreiro com interesse e agora com franco aplauso pelo que vem em seguida: “Ora, o que se passa é exactamente o contrário: dando meios à mediocridade cultural, a única coisa que se consegue é amplificar a mediocridade. E o público (…) sente-se legitimado pela convicção de que se ocupa de problemas importantes e aparentemente sofisticados.” 
Saúdo com especial apreço estas afirmações (suscitadas por opinião de quem está a responder pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas) e que levam Guerreiro a propor a “despromoção” de tanto festival literário. São ainda escassas, parece-me, atitudes com este rasgo e clarividência, apesar de continuar em expansão a banalização dos livros que sufoca o mercado, a indústria dos best-sellers e da designada literatura light radicada no seu artesanato contador de histórias quando já não restam histórias novas para contar sem que haja coragem e arte para falar da vida real no mundo de hoje. Por mim, lembro que em 1994, quando os efeitos nefastos da cultura de massas se evidenciavam, adverti num “manifesto” as consequências previsíveis do que iria atingir a Literatura que mais nos interessa… e não me enganei. [Foto: flor de batata: originária da América, de onde a trouxeram os navegadores; os povos europeus admiraram longo tempo a garridice vegetal da planta, desaproveitando o valor nutricional do tubérculo, o “conteúdo”.]

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O poder da palavra impressa

Uma amiga folheava há dias o caderno dos meus primeiros recortes das crónicas e artigos que começava a publicar em jornais. Comigo ao lado, insistia em me convencer de que aqueles escritos tinham interesse, ainda eram actuais, quando eu via amarelecidos e ressequidos os velhos papéis. Ela parou então numa página e leu em voz alta o primeiro parágrafo.
Eu aplaudia ali o que a prática desportiva tinha de salutar advertindo porém que no futebol não temos resumido todo o Desporto. Aliás, o futebol não pode ser considerado como espectáculo por multidões sentadas vendo a correr no campo os seus reais praticantes, jogadores profissionais. Logo, sobram espectadores e escasseiam praticantes das diversas modalidades desportivas, amadores autênticos capazes de experimentar o prazer do jogo.
“Isto é perfeitamente actual ou não?” - exclamou, vitoriosa, a minha leitora. Abanei a cabeça sem botar palavra. Aquela prezada amiga tinha razão mas só eu podia medir quanta razão lhe faltava!
Realmente, defendo tais ideias e opiniões desde sempre, ou seja, desde que entrei a publicar na imprensa. Ora, quando escrevi os textos guardados naquele primeiro caderno ia nos 21 ou 22 anos de idade e hoje estou nos 85, à distância de uns 63 anos…
Posso medir toda a distância contida nestes anos. Em 1951-52, Lisboa tinha o Estádio Nacional inaugurado em 1944, no “Dia da Raça” salazarista, e o futebol merecia uma singela meia página à segunda-feira nos diários (ainda não tabloides) e uma única foto. Hoje é como se sabe e se vê, uma farturinha de estádios e de futebois, de estridentes “academias”, treinadores, especta-comentadores.
O 25 de Abril permitiu ao país ter, conforme entenderam as inteligências da época, “finalmente, futebol com liberdade” e depois, já com o país bem abastecido de estádios a mais, um jornal dito de referência ergueu em parangonas os heróis dos estádios à categoria de “deuses”. É verdade, opinar que o futebol, assim como outras modalidades desportivas, não deve servir como espectáculo, até parece ter hoje bastante mais actualidade do que há sessenta anos. Mas, nesse caso, levanta-se a questão: que valor tem, ou pode ter, a palavra impressa?
Aparentemente, nenhum. O texto permaneceu “actual” ao revelar a sua provada inutilidade perante factos concretizados, o mundo a girar. Neste caso, resta-nos desejar que os “deuses” do futebol, possuídos por uma santíssima determinação, decidam entrar em greve geral por tempo indeterminado para resgatar os cidadãos da passividade e acabar com tão pobre cenário.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Dinheiro, a pior droga

“O dinheiro é a pior droga do mundo”, disse o homem. Sentado ao balcão, na fila dos bancos altos, parecia absorto, de olhar mergulhado no copo que bebia. Murmurou apenas, como quem medita e, perante a evidência, não pode mais e desabafa, mas eu, sentado num flanco, escutei-o porque o televisor no instante se calou. 

“É pior do que a coca ou de qualquer outra, o dinheiro cria uma dependência muito maior”, considerou o homem. Observei-o de soslaio, intrigado, pois reconhecia naquelas frases uma ideia já experimentada por mim em conversas ocasionais mas nunca exposta por escrito. E via nascer ali a ideia na cabeça de um desconhecido em aturada congeminação! 
Tive que falar e conceder alguma concordância para abrir o diálogo com o homem. A aproximação, sem dúvida, interessava-me. Queria trocar umas frases, mas a sua conversa, conforme já esperava, começou por ser rara e banal para logo se tornar soturna e densa como pedra perdida no meio do trânsito em noite sem iluminação. 
Evidentemente, continuou a desabafar: atacou com ásperas censuras o valor quase supremo que hoje tem a riqueza material, ou a sua mera aparência, o triunfo fácil e rápido a obter em qualquer competição. O “sonho americano” é agora também de tantos europeus que ambicionam ganhar rapidamente o primeiro milhão para, a seguir, trepar aos saltos pela escada de outros milhões. Veja, dizia-me o homem, a quantidade obscena de novos milionários a medrar por aí, os casos de corrupção descobertos no topo das elites que mandam e que possuem. 
As novas gerações foram educadas pelo espectáculo do futebol, a grande escola que ensina que todo o jogo é para ganhar; ganhar a qualquer custo durante os noventa minutos se não puder ser disputado mais rápido. Uma veloz erosão moral varreu o idealismo dos valores éticos e deu lugar ao materialismo dos interesses concretos egoístas. Honestidade, honra, carácter, recta consciência, vergonha na cara, pudor, tudo isso, tal como boa educação, dignidade humana, princípios cívicos, o que valem hoje? 
Ora, enquanto esta crise lança no desespero tantas famílias arruinadas pela concentração da riqueza em poucas mãos e que é a outra face da austeridade que nos impõem, o que acontece? A dialéctica natural das coisas promove uma justiça invisível mas certeira que castiga multimilionários e novos milionários à pena contida na sua fortuna: “ter” tudo o que têm, isto é, imensamente mais do que precisam ou irão precisar para viver, nunca lhes chega, pede sempre mais, e obriga-os a cuidar sem descanso do que têm… Nem dormem, receando o descalabro, serem engolidos por um tubarão maior. 
Não desfeiteei o homem perguntando-lhe se estava com pena dos capitalistas, indaguei somente onde aprendia tais ideias. Disse-me: “A ler os livros do mundo”. Adivinhei logo: mas não a ler no mundo dos livros, claro!