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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Leitura mata Literatura


Uma investigação de peritos em matemática, anunciada recentemente, analisou o enredo de uma quantidade enorme de romances publicados e, suponho, em leitura na actualidade. Não leram tal quantidade de ficção. Elaboraram um algoritmo, aplicaram-no aos textos e concluíram que existem apenas seis formas básicas de ficções, não mais.
Inspiraram-se em Kurt Vonnegut, escritor dos EUA, autor de uma divertida palestra sobre o tema, porque, sem histórias novas para narrar, como bem sabemos, as ficções andam a repetir-se de mistura com minguados recursos a ingredientes e temperos. O mundo dos consumos literários estagnou de tal modo que a Academia Sueca, ribalta do prémio Nobel, já teve de ouvir que não resta mais diegese fresca para servir. Ficções românticas, científicas, policiais, de espionagem e outras debatem-se com receituários esgotados e escrita criativa quanto baste.
No entanto, o mercado livreiro não aparenta crise. Os escritores escrevem, as editoras publicam, os livros amontoam-se por todo o lado e começa a falar-se de uma “pós-literatura”. O que pode ser ou será mesmo… isso?
Assim se faz lembrar o caso de Albino Forjaz de Sampaio, autor tão popular no início do séc. XX português que foi acusado de ser autor de tanta leitura em circulação que estava a matar a Literatura (ler crónica de 31-10-2016). O tema é interessante, logo irrecusável. Até que ponto um gosto padronizado resultante das leituras populares pode rebaixar o nível da educação estético-literária das populações?
Vejamos de relance a situação. O número de editoras cresceu exponencialmente no país mas são as editoras principais, presentes no mercado, que o abastecem com abundância nunca vista. As fictícias, simples chancelas, ou “marcas”, praticam tiragens ínfimas de cada obra (são, frequentemente, edições dos próprios autores e, portanto, nem chegam, ou mal chegam, ao mercado).
É, pois, do lado da edição comercial – altamente concentrada em grupos – que chovem infindos lançamentos de ficções e mais ficções pleonásticas, meras repetições assinadas por nomes internacionais nobelizados, celebrizados, aclamados por milhares ou milhões de leitores-consumidores. São autores de obras extensas como léguas da póvoa, os tradutores arregaçam as mangas e têm que dar o litro. Os leitores nem tanto: desistem e deixam a coisa arrefecer no arrumo doméstico.
Aumentam os desperdícios de papel e da celulose? Estará a degradar-se o gosto literário dos leitores-consumidores desta produção editorial cacofónica? E sairá daí, concretizada, aquela predita “pós-literatura”?

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O pioneiro da biodiversidade


Foi há um século: o botânico Nikolai Vavilov concebeu em 1916 a ideia pioneira da biodiversidade natural. Percebeu que as plantas, organismos vegetais da natureza, são diferentes devido à genética e a factores ambientais, mas que até são domesticáveis. A ideia empolgou-o tanto que sonhou poder acabar com a fome no mundo.
Vavilov (Moscovo, 25-11-1887) trabalhou em 1913-1914, em Londres, no laboratório de William Bateson, pioneiro da genética, a quem se deve, desde 1901, o sentido actual desta palavra. Os principais artigos que escreveu foram coligidos em volume e publicados em inglês em 1992 com o título Origin and Geography of Cultivated Plants. Além disso, Vavilov dirigiu durante vinte anos o Instituto Vavilov da Indústria Vegetal da União (antes Academia Lenine de Ciências Agrícolas da União [Soviética], fundada em 1920) e em 1924 criou o primeiro banco de sementes do mundo em S. Petersburgo.
Este notável cientista russo bem merece as comemorações do centenário da sua ideia pioneira. Vale a pena conhecer a sua vida e obra e, assim, participar nas homenagens em sua memória. Pelo que fez, Vavilov merece deveras todas as nossas evocações e aplausos.
Foi um viajante incansável e corajoso que percorreu durante dezasseis anos numerosos países, por vezes em guerra, em busca de sementes e conhecimento científico. Aprendeu mesmo quinze idiomas para poder falar directamente com agricultores nos países do globo que visitava. O prestígio internacional que atingia nos anos da Segunda Grande Guerra era indesmentível.
Porém, caiu em desgraça por manobras do seu maior inimigo, Trofim Lisenko (1898-1976), decerto mais político do que cientista e que, por sinal, fora antes promovido por Vavilov. Intrigando, conseguiu que este fosse preso em Agosto de 1940, portanto, nos anos de Estaline, e morreu na prisão de Saratov (Sibéria), em 26-01-1943, com 55 anos, consta que de fome.
Mas não tardou muito a reabilitação do seu nome e obra científica e o próprio Lisenko a cair em desgraça. Foram enormes os prejuízos causados por este à economia, e sobretudo à agricultura, com as suas teorias sem apoio da ciência. Todavia, envolve-se numa espécie de humor negro o facto de Lisenko ter vivido cerca de 78 anos e Vavilov ter sucumbido de fome num subterrâneo secreto.
Outra camada espessa de humor negro estará talvez na situação actual do mundo, onde milhares e milhares padecem e morrem à míngua de alimentos. Parece piada cínica dirigida ao pioneiro da biodiversidade, sonhador confiante no fim das carências alimentares da humanidade. Valha-nos, pelo menos, a existência do Grande Cofre de Sementes Global de Svalbard, nas montanhas do Árctico, inaugurado em 2008 – falta apenas semear todas essas preciosas sementes e banir de vez os transgénicos!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Um futuro sem utopia

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As riquezas dos povos e das nações acumulam-se mais e mais em cada vez menos mãos. Logo, estas linhas, à entrada, devem recordar ao leitor: “Um por cento da população mundial possui 99% da riqueza do planeta, mas apenas uma décima parte do um por cento é que nele manda realmente.” Consequência: os programas de austeridade impostos aos países mais débeis mostram às claras o que antes escondiam, a voragem crescente da alta finança mundial que leva à falência bancos e Estados, pondo a abarrotar os paraísos fiscais.

A alta finança carecia de uma nova via de investimento para escoar tão gigantesca concentração da riqueza (e disso terão falado os participantes do Fórum de Davos). Essa nova via já aparece: aponta para a financeirização da agricultura. Grandes multinacionais estão a comprar extensíssimos terrenos da melhor produtividade em diversos países “acessíveis” para os dedicarem à agricultura intensiva que seja a mais lucrativa.
Por este caminho, a chamada industrialização da agricultura promete avançar até se tornar global. Mas os investimentos da alta finança mundial na produção agrícola em tão larguíssima escala tornam-se inquietantes e mesmo ameaçadores para a relativa estabilidade que o sistema da alimentação da população do planeta tem tido para funcionar. Certamente, vamos todos entrar num período de convulsão.
Vai generalizar-se a produção de alimentos com utilização dos OGM, os populares transgénicos. Por outro lado, as culturas intensivas irão estender-se por áreas de enorme vastidão com solos propícios. Países e regiões serão votados à monocultura.
Isso terá reflexos graves no ambiente e na biodiversidade, num ambiente já comprometido com as mudanças climáticas. Mas a principal ameaça consistirá sem dúvida na concentração da produção mundial dos alimentos – a propriedade dos solos e dos meios produtivos – em poucas mãos… sem nome nem rosto. Será fácil, então impor quantidades, subidas de preços, condições.
Ora a chamada grande distribuição (a rede dos hipermercados), muito rendosa, está em poder do grande capital. Percebe-se o perigo que está à espreita: a alta finança internacional pode, se quiser, adquirir as redes da grande distribuição e ficar na posse do circuito completo da produção-comercialização. Mas nem precisa de tanto para mandar.
Em foco estarão os consumidores concentrados nas cidades. Neste sentido, calcula-se que em 2025 uns 65% da população mundial estejam a viver em zonas urbanas. Esta população ficará exposta ao novo perigo - a rendição pela fome.
É um futuro sem utopia. Quer dizer, sem localização específica. Ai de nós, pode querer engolir o planeta inteiro!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A comida e a cultura

Têm abundância de motivo os adeptos dos prazeres da boa mesa que se justificam repetindo a frase em voga: comer é um ato de cultura. Pois é, mas ocorre a pergunta: quem mastiga comida lenta alcança até que ponto a verdade factual do dito? O sentido da frase é amplo e é rico, vale a pena sondá-lo nem que seja num breve bosquejo.
Teremos, mais uma vez, de pegar em palavras para as abrirmos e vermos os vestígios que nelas se contém, pois em questões idosas como as da comida teremos que nos limitar a uma abordagem filológica. Realmente, relacionadas com o alimento, aparecem palavras cujas raízes etimológicas ainda podem surpreender os leigos. O saber parece ter começado pela capacidade de distinguir o sabor...
O sapore latino (sabor, gosto, odor, perfume, ação de provar) confunde-se com o sapere (saber, ter gosto, exalar cheiro ou odor) e a sapientia (sabedoria). Gustare (gostar, provar, comparar), assim como degustar (provar, apreciar, saborear), remete igualmente para a capacidade humana do paladar enquanto órgão de distinção inteligente. Nesta base, nem admira já que o symposium (banquete, festim) tenha expandido o seu campo semântico até abranger a designação do nutrido volume que víamos nos consultórios médicos.
Os requintes da boca estimularam sempre os requintes da faculdade pensante, eis o que pode concluir-se. Todavia, mesmo com as meninges bem acordadas por ricos manjares, talvez só uns poucos dos comensais sentados à mesa serão capazes de consciencializar que é pela alimentação que todos se integram no sistema da natureza em que vivemos e nos faz viver. O «ato de cultura» ficaria completo.