sábado, 29 de dezembro de 2012

O direito à pensão

Tenho um amigo a ferver de indignação, pronto a explodir em revolta acesa. Tal como a tantos outros comeram-lhe, além dos subsídios, um pedaço da sua pensão. E, oh espanto em cima de espanto!, preparam-se para continuar a comer com imenso à vontade e declarada desfaçatez.
O percurso existencial e profissional daquele amigo tem alguma semelhança com o meu (jornalismo, literatura, livros), daí o confronto que ele faz dos nossos casos. Talvez procure consolação mas termina cada conversa a espirrar desespero. É mais novo, nasceu uma dezena de anos depois...
Evidentemente, toda a pessoa de boa fé reconhece sem hesitar o direito que nos assiste à indignação e mesmo à revolta. Estamos a ser espoliados - ilegalmente, imoralmente - de uma parte da pensão, palavra esta cuja semântica, neste caso, requer explicitação para lhe realçar o significado: pensão é renda vitalícia, foro, encargo, ónus, pois o vocábulo deriva de pensione = «pagamento». É, portanto, um direito essencial para o trabalhador usufruir quando as forças o abandonam e chega ao crepúsculo da vida.
Pagou esse direito mês a mês, ano a ano, sem regatear e por fim o receber tão proporcional quanto o pagou. Mas até neste ponto o meu amigo se encrespa, lembrando o período que dedicou a traduzir livros para editoras (antes do 25 de Abril) em que pagou Imposto Profissional sem usufruir da mínima contrapartida. E lembra bem: eu e outros tradutores pagámos o imposto, abrangidos por equiparação a profissão liberal.
Quer isto dizer - clama e reclama o meu amigo - que pagámos bem pagas as nossas reformas, assim negando o que afirmou o tagarela governante. O Estado não nos dá nada que não tenhamos entregado confiadamente, por imposição da lei, à sua guarda, assumindo connosco uma dívida... de honra. E o Estado é a tal «pessoa de bem», ou não é?
Parece que o governo, administrador do Estado, tem opinião diversa e avisa sem descanso que a Caixa Nacional de Pensões vai falir. Ouvindo-o, o meu amigo explode. Aos berros, aponta uma lista de factos como se para mim fossem novos, como se eu ignorasse os saques e outros desmandos que têm comido o bolo amassado com o suor dos descontos obrigatórios, isto é, como se eu não tivesse aturado a ditadura, vivido o processo da democratização e esteja só agora a aturar uns rapazinhos saídos da catequese neoliberal... 

sábado, 22 de dezembro de 2012

No país das cantigas

Alguém deve pensar que o povo está a ter o que quer em medo e repressão. Engana-se, mas, no seu tolo contentamento, não o admite. Então este país em crise fica a rever-se outra vez, como num espelho baço, na metáfora criada por um rançoso filme dos anos '50.
Portugal torna a ser um «pátio das cantigas», pois se foi enchendo de música, muita música, para alegrar todos os gostos à medida que, por outro lado, se foi enchendo de depressão e desespero, desemprego e baixos salários, raiva e opressão. Música, a ligeira, mais abundante, ou a outra, dita culta, são cultura apreciável, é verdade. Mas a dificuldade talvez seja já a de ouvi-la, tanta é a que se espalha pelos quatro cantos da agitação sem conseguir distrair ou acalmar as dores dos brutais apertos de cinto.
Não há dúvida, porque é facto evidenciado, o comércio da música gravada caiu a pique. Os autores queixam-se da pirataria que a Internet permite, embora permita também imensas cópias legais gratuitas entre outras pagas. Alterada pela generalização do formato digital, a situação atingiu duramente editores e sociedades de autores, que reclamaram contra a liberdade na Net reagindo contra a «liberdade da pirataria» (duas questões distintas, julgo eu).
Mas, neste tempo de terríveis carências, é música embaladora o que mais abunda. As rádios debitam-na, torrencial, e os diversos aparelhos de reprodução portátil em uso levam-na para todo o lado. Somando os festivais, não é pequena a romaria, mas falta ainda agregar qualquer coisa.
Temos, estrategicamente semeados pelo país, uma apreciável quantidade de antigos cine-teatros que foram adquiridos pelos municípios (lembre-se, com subsídios europeus tão generosos como os que serviram para construir isto e paralisar aquilo - a agricultura, as pescas, a produção nacional de bens de consumo) e transformados em modernos auditórios onde realizam concertos bandas nacionais e estrangeiras em itinerância. E temos a jóia da coroa, a Casa da Música, a funcionar no Porto, com subvenção anual do Orçamento de dez milhões, agora reduzido apenas a sete, imagine-se o revés musical!
Todavia, o povo dispõe-se a abrir a boca cada vez menos para cantar modas de embalar meninos. Prefere gritar, de goela aberta, os seus protestos pelas avenidas, erguendo bandeiras vermelhas e negras e exibindo palavras de ordem em faixas que estendem de lado a lado. Já não vai em cantigas.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Um discurso na canção

Foi há um monte de anos tão farto que até nos permite apreciar o caso percebendo nenhuma mudança histórica apesar das aparências. Estou a lembrar 1961, ano em que escrevi uma nota em página cultural de semanário de Águeda sobre as letras das canções para lamentar a fraca categoria poética de muitas das que andavam em voga. O assunto surpreendeu mas, como se desejava, despertou interesse.
A surpresa e o interesse resultavam da quase nula atenção que as pessoas davam às palavras que ouviam cantar ou cantavam com gosto. Embaladas pela música, distraíam-se do resto. Porém, nesse «resto» pode estar o gato atrevido a miar com o rabo de fora...
Realmente, é com base na sonoridade das palavras que começa muitas vezes a articular-se a melodia, como acontece de forma mais reconhecível quando a letra é anterior à canção. As palavras não têm apenas conteúdo melódico, essa «coloração» especial que o compositor transpõe para as notas que inscreve no pentagrama. Possuem também o seu ritmo próprio, de maneira que numa canção perfeita tudo se harmoniza: as palavras e a melodia que as canta de acordo com o ritmo que melhor as diz.
Mas nem todas as canções que andam no ar são perfeitas, nem quem as ouve - outrora como hoje - lhes dá a devida atenção. Esquecem que, inoculadas nessas letras (aparentemente inofensivas), podem ir mensagens ideológicas um tanto subliminares e, nessa medida, invasivas. Desejável é, sem dúvida, que um belo poema surja «vestido» com uma inspirada composição para nos agradar e ficar na outiva se não nos puser desde logo a cantarolar.
Todavia, as modas e os ventos sopram pouco nesta direção, confundindo tristemente duas épocas que deviam permanecer contrastadas (o ambiente da ditadura e o da atualidade). o que mais anda no ar não prima pelo bom gosto qualificador. Certas letras parecem inventadas em cima do joelho por principiantes, não por poetas experientes, conhecedores do fenómeno poético e do gosto literário bem formado.
Evidentemente, a melodia que apareça a revestir banalidades surradas, pacóvias e popularunchas de tais letras sucumbirá à mesma banalidade, repetindo uns acordes caçados aqui e ali para compor um tema novo-velho igualmente para esquecer. Ai que saudades temos de autores como Zeca Afonso, Ary dos Santos e tantos outros que refulgiram com o dealbar da democratização! Paro aqui para, em homenagem, os recordar.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Palestina desaparece esmagada pelo expansionismo israelita sem consideração pelo Acordo de Oslo, de 1967.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Dizemos que o rei vai nu

A opinião expressa dos portugueses mostra-se nestes dias arrumada em dois campos bem contrastados. Um recusa a «refundação do Estado» proposta pelo governo ultra-neoliberal, rejeitando com indignação e mesmo revolta as políticas de desgraça nacional; o outro campo apoia a prossecução das políticas do governo em nome de uma pretensa «estabilidade» que de estável nada tem, ou seja, apoia a continuação da crise e o aumento imparável da dívida soberana conforme a troika impõe. Entre os dois campos de opinião deve achar-se a velha «maioria silenciosa», a tal que ninguém sabe ao certo onde está porque não se manifesta.
De facto, o povo começou a aperceber-se deveras da verdadeira situação. Generaliza-se portanto a percepção de que o sistema capitalista mudou em geral e que mudou também o comportamento de governos ditos democráticos. Servem agora não os seus eleitores e sim a máxima concentração do poder financeiro, expressão de imperialismo.
Esses governantes, com o seu alegado combate ao défice e mais e mais e mais programas de austeridade (tão bons cristãos que eles são!) estão alegremente a pôr a rabiar de fome e a vasculhar nos contentores do lixo milhões de pessoas no país. Querem obrigá-las a aceitar a miséria, ou a miséria do salário mínimo nacional. Em vez de civilização, promovem a barbárie para agradar aos senhores das terras e dos céus sentados nos tronos dos seus tantos biliões e triliões - é preciso juntar forças e varrer do poder os partidos que há 35 anos o corrompem para começar uma vida nova em novo caminho.
Clamores enérgicos ressoaram por ruas, praças e avenidas a ferver de indignação, ali onde as massas populares se encontram, reconhecem e solidarizam. Os sonoros protestos do povo atroaram os ares e chamaram para a rua quem ainda dormia em casa diante do televisor. Uma interrogação salta agora: quem apoia hoje essas políticas de desgraça nacional?
Apenas os governantes, os dirigentes dos partidos coligados, alguns dos seus adeptos ferrenhos ou ceguetas e poucos mais. Aparentemente, só nesta minoria o governo encontra apoiantes (excluída a «maioria silenciosa», claro). Este cenário traz à lembrança a história do menino que aponta e diz que o rei vai nu.
Quem diz o rei diz o governo e quem diz o menino diz toda a gente capaz de soltar o grito que restabelece a verdade dos factos. Os cortesãos do rei, interesseiros, suportam-lhe as mentiras até que a gente descomprometida (e agredida) no caso grite «basta!». É esta a límpida moralidade da história... [Imagem: clique para ampliar.]

sábado, 1 de dezembro de 2012

Quem luta pela causa

A causa é humana e é universal, incontestavelmente. Consiste em lutar com a máxima entrega e a maior coragem pela democracia e o socialismo, aspirações as mais fundas e ardentes que percorrem pulsando no coração de sucessivas gerações. A legenda «Liberdade, Igualdade, Fraternidade», bandeira da Revolução Francesa, enuncia essas mesmas aspirações latentes e sempre postergadas.
São aspirações irreprimíveis. Percorrem os séculos da história do mundo até aos nossos dias, sulcando-os de luminosas lutas, vitórias e derrotas num rasto imenso de sangue e sofrimento.  Nesse esplendoroso espelho é que a humanidade pode contemplar-se em retrato inteiro, de corpo e alma, sabendo que democracia e socialismo são as duas margens de um único caminho, o da emancipação em liberdade.
São, bem entendido, aspirações inesgotáveis como a esperança que povoa os sonhos dos povos humilhados e ofendidos. E são inesgotáveis porque assim são as lutas, travadas no terreno com vista ao melhor futuro coletivo, que atribuem o conteúdo real, mais ou menos largo, que tem ou pode ter a democracia ou o socialismo. Lembra-o com oportunidade o livro agora publicado Os Revolucionários (edição Anáfora, Lisboa, 424 pp).
O autor, escritor Manuel de Seabra, dedica a obra a Jacques Le Puil, Leonardo Freitas e Vimala Devi. Em nota, Leonardo Freitas (quem o não recorda à frente da Editorial Escritor?) regista o acrescento posterior, nesta obra, de três «valorosos militantes da luta por uma sociedade menos selvagem»: Manuel Pedro, Conceição Matos e António Gervásio, com retratos na capa. O leitor encontra nestas páginas uma vasta galeria de figuras exemplares.
São cerca de duzentas as figuras resenhadas em breves biografias, desde 133 antes da nossa era (com os Gracos, da primeira reforma agrária) até à atualidade. Portugueses são Militão Ribeiro, Bento Gonçalves, Catarina Eufémia, H. Palma Inácio, José Dias Coelho, Júlio Fogaça e Álvaro Cunhal; mas aparecem também Luís Carlos Prestes, Agostinho Neto, Samora Machel, entre outros. Naturalmente, poderão discutir-se algumas das escolhas feitas, mas é óbvio o interesse cultural da antologia. 
Finalmente, atendendo às inquinações e aos conformismos do tempo presente, convem sublinhar a semântica daquele título. Revolucionário é o ato insubmisso ou insurreto causador de mudança  e profunda renovação social. Não será esse o verdadeiro motor do progresso humano?