segunda-feira, 28 de abril de 2014

Galiza lusófona avança

Entrou em vigor na Galiza, há poucas semanas, uma lei que introduz o estudo do Português em todos os níveis do seu sistema educativo. Aprovada por unanimidade no parlamento daquela região autónoma, a lei visa ainda o estreitamento dos laços com os países da comunidade lusófona. É um importante passo em frente que merece registo e caloroso aplauso.
A lei, resultante da proposta designada Iniciativa Valentin Paz-Andrade, teve na base a sociedade civil. Assinada por 17 mil cidadãos galegos, gerou no parlamento uma rara unanimidade das opiniões partidárias. Agora, a lei ordena ao governo galego “incorporar progressivamente a aprendizagem do Português em todos os níveis de ensino”; privilegiar o seu domínio como um mérito especial para aceder à função pública; e a tomar “quantas medidas sejam necessárias” para que o território galego receba as emissões de rádio e tv portuguesas.
Assim, a opinião pública da Galiza parece orientar-se finalmente para um consenso, encerrando o longo período de conflito linguístico em que se debatiam as correntes e se digladiavam as soluções. A adopção do Português abre mesmo o caminho para que o governo da Galiza peça para que a região autónoma entre (“de algum modo”, nota Xose Morell, porta-voz da comissão promotora da proposta) na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Citado na imprensa, Morell assegura que “hoje há mais gente que vê o galego como língua internacional e útil para se comunicar com Portugal, Brasil ou Angola”.
Efectivamente, o galego é o ancestral da nossa língua materna, conforme ensinou Manuel Rodrigues Lapa, saudoso mestre bairradino, profundo conhecedor da cultura e do povo galego, tema de estudo que manteve aberto toda a sua vida. O ensinamento do mestre juntou seguidores, os “lapistas”, e eu fui um deles. Não resta dúvida de que a língua galega se manteve paralisada sob uma conjuntura histórica secular, enquanto o Português evoluiu e se transformou no que é, uma língua de cultura.
Obviamente, a actual aproximação ao Português é, em última análise, a solução mais convincente e conveniente. Todavia, para que não se repita outro “veto de gaveta”, é preciso que o governo autónomo (de maioria absoluta PP) concretize no terreno, com meios financeiros suficientes, a lei emanada da vontade popular. E, em Portugal, será de recordar que uma delegação galega participou em 1990, no Rio de Janeiro, nas negociações da reforma ortográfica unificada, isto a sugerir a substituição da Guiné Equatorial pela Galiza na CPLP para tocar mais fundo no coração dos povos dos dois lados do rio Minho. [Foto: "Alameda das faias", plantadas no séc. XVIII em Antrim, Irlanda do Norte.]

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Um “Som” com 30 anos

Os últimos três “posts” pedem umas palavras de explicação. Ao reeditarem três páginas extraídas de um livro publicado em 1984, interromperam o meu costume de colocar aqui textos inéditos. Creio no entanto que terão tido o sabor de “novos” para muitos leitores.
O livro é de minha autoria, naturalmente, conforme indica a nota inserida no fim de cada página. É o Som de Origem – arte d’escrita, publicado em Lisboa há trinta anos. Então, porque chegaram agora os “sons” a esta coluna?
Explico. Com os três textos (incompletos, obedecendo à regra aqui vigente) quis aguçar o apetite dos leitores para a obra na altura em que ia colocá-la como ebook na lista de “Os meus livros – links”, portanto junto das outras minhas nove obras já presentes na plataforma ISSUU. Realmente, continuo a gostar dela, o que vale dizer que continuo a prezar o que publiquei há três dezenas de anos.
Som de Origem está, desde há uns dias, disponível para os leitores. Foi preciso mudar o suporte do escrito (pois, recorde-se, em 1984 os livros ainda eram entregues dactilografados aos editores; computadores e disquetes surgiriam nos anos seguintes). E foi assim que tive de pegar no livrinho impresso (só tem 80 páginas) para digitar o texto e elaborar a edição digital.
A edição é revista, tal como as outras nove que a acompanham (quer dizer, expurgada de uma ou outra falha de estilo, posto que, por certo, ainda não perfeita), portanto em condições de ficar e perdurar. A tarefa de a reescrever, entretanto, trouxe à memória a sessão (única) do seu lançamento.
Recordo-a com prazer. Decorreu no Porto, na galeria Nazoni, e Som de Origem e eu tivemos a honra de apresentação pelo saudoso Oscar Lopes. Um actor de renome leu na sessão umas páginas emotivas.
O livrinho teve um razoável acolhimento mas nada impediu que resultasse num projecto falhado. Terei ambicionado voo alto em demasia? Pretendi construir um “romance” experimental, com textos algo cronísticos ensaiando um restauro da sensorialidade em plenitude quando a humanidade caía no embotamento.
Creio que o livrinho conserva a actualidade que no momento tinha, se acaso essa actualidade, entretanto, não recrudesceu dramaticamente. Apreciem-no agora os leitores na plataforma de leitura grátis onde estão os dez títulos de que sou autor – volumes de ficções, crónicas, estudos e ensaios, etc. –, mais três títulos de vária autoria com entrada diversa, já antiga. Nota final: mantenho na Amazon doze títulos de ficções “para crianças” cuja encomenda, em edição normal impressa, os interessados terão que pagar.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Corpo ardente


Não temos vida fora do corpo. Melhor, ter corpo é ter vida. Procura então senti-lo intensamente, vagarosamente, até se revelar o denso território dos teus limites e saltarem as primeiras interrogações. Habita-lo, ou é ele que te habita? És o corpo, ou com o corpo?
Não tens olhado quanto baste para o que se passa no seu interior, daí o espanto. Amar, porém, a vida, e fruí-la, implica amar e fruir o corpo, pois nem aqui podes separar o conteúdo do continente. E quem o ama, quem o sente ou preza? Quem, ao menos, o conhece e atende?
A mão que redige é a mesma que avança e procura o corpo dado, ardente tocha de carne, porque interrogar é apalpar o ser no escuro, entre o santo e o sarro, nesta ânsia de o descobrir por inteiro após longo adormecimento.
Eis o corpo em toda a sua apetência sensorial. Tem a forma e a duração exacta da vida que nele se faz. Todavia, poucos o assumem. E ele, mil vezes esquecido, aqui jaz numa câmara a deslado dos percursos quotidianos, à espera, em silêncio mas não silencioso, a estrebuchar desde tempos imemoriais contra as paredes da privação.
O desejo anima-o. Dizem que liberta (quando isso resulta de se desejar pouco). Nada liberta apenas e o próprio desejo é contraditório, sacode e incendeia a carne deixando-a calcinada, porque é vasto e ondulante, infatigável como o oceano. Conduz em emigração partes caras do ser, deixando-o aberto e dorido.
Porque o desejo é uma projecção generosa saída de uma solidão; é uma entrega hedonista do ser a mover-se em direcção a outro. E os desencontros são regra na divisão das encruzilhadas.
/.../ Com tudo isso, desvaloriza-se o corpo, suporte da vida, e (sem compaixão) a própria vida. Até as pessoas aparecem desvalorizadas, desfeadas. E cada vez mais falta quem esteja disponível, agradável e conversador, saudavelmente tranquilo, porque mesmo isso requer o corpo e poucos o assumem.
O corpo deixa de ser motivo de alegria. Morre às mãos de quem com ele respira. É prótese de mutilados de uma guerra invisível, fardo incomodativo que se carrega tal como o viajante leva as provisões para atravessar um deserto, rumo a nenhures.
Em tempos de antanho, o corpo era tido como a parte impura do ser. Agora a dúvida: será menor o menosprezo, tenha ele sentido diverso, que hoje o rodeia?
Devíamos ser para o corpo o que os melhores jardineiros são para os seus canteiros floridos, cultivando nele o prazer das coisas boas, saudáveis, luminosas, cálidas, alegres, e poupando-o a sensações, pensamentos, experiências não gratificantes.
Na verdade, desta ou de outra maneira, com ou sem alegria, com ou sem desprazer, a estrebuchar na câmara onde jaz ou plenamente assumido, o corpo é sempre, porque não pode deixar de ser, tocha de carne ardente. O gelo da morte queima não menos que o fogo da vida. 
[Texto parcial extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Janelas da alma

A pupila glauca, quase bovina, da máquina fotográfica pestanejou diante da janela, à frente dos olhos do seu operador e dos meus, contemplativos, ao colher da rua a imagem. Agora, premiada, faz-me pestanejar a mim. O que a guindou à tribuna das melhores fotografias?
Se os olhos já eram as janelas da alma para Rodrigues Lobo, que alma terão as janelas para assim falarem aos nossos olhos?
Na caverna de Platão, e em todas as cavernas, não havia janelas, apenas aberturas. Os palácios começaram por ter simples frestas na parede para darem entrada à luz e ao ar. Eram janelas, sem o serem completamente.
Mais tarde alastrou pelo planeta uma fúria construtora. Paredes e mais paredes, erguidas, dividiram os espaços e separaram os seres que neles habitavam. Ficámos eu-e-eles, nós-e-os-outros.
Multiplicaram-se e então as janelas, que negam as paredes, transformaram-nas sem as destruir.
A etimologia indica que a palavra surgiu como diminutivo de porta de entrada, ou portazinha, antes de significar caixilho móvel com vidros.
De facto, cada parede requer uma abertura praticável, senão aprisionaria os seus habitantes, tomando-os como moscas apanhadas na sua própria teia.
A parede é uma linha de isolamento e também uma fronteira que estabelece um interior e um exterior, dois lados que pela janela ficam em contacto e comunicação.
A janela é posto de fronteira, poro de epiderme opaca que necessita de processar trocas, de respirar através de pequenas alfândegas.
Permite ao que está fora atravessar a parede e vá para dentro sem invasão mas com filtragem e que o dentro se espalhe, até certo ponto, por fora.
Permite que olhos do interior deambulem com segurança pelas cercanias, em pesquisas discretas, sem se afoitarem no exterior. Persianas, cortinas e vidraças de vários tipos servem para deixar ver sem se dar a ver, estar fora continuando dentro, espiar a redondeza.
Pela janela entra a primeira luz do primeiro dia que não viola as retinas.
Trocámos o primeiro olhar quando estavas à janela, como pomba prestes a alçar voo. Deve ter sido alguém como tu que chorou até conseguir, depois do espelho e do pente, que as portazinhas inteiriças de forte madeira tivessem um postigo praticável virado para a rua.
À janela estavas quando poisaste no peitoril o teu seio farto, como mulher generosa que derrama sobre quem acena adeus um açafate de flores.
Nas janelas escancaradas brilham as colgaduras dos dias de festa.
E quando, na noite de S. Silvestre, por aí os trastes velhos caíam arremessados na rua, era também um passado e um futuro que a janela estabelecia sobre a linha de um interior e um exterior já instituídos. E tudo decorria com a sem-cerimónia que dispensa anúncio de “água vai”, despejo feito.
As defenestrações, de Praga por exemplo, exprimem também esse repúdio terminante do que é velho e aparece condenado e a procura do novo mais prometedor, na decisiva fronteira que cada janela estabelece. /.../ [Texto incompleto extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]

terça-feira, 1 de abril de 2014

Anunciação

Subitamente, hoje de manhã, ao dar com os olhos na rapariga, senti: a Primavera está a chegar!
Esquecera-me de que o Inverno haveria de terminar por fim e ela limitara-se a erguer a mirada do livro quando abri a porta do café, trocando comigo um breve olhar vagamente cúmplice.
Ao sentar-me numa mesa próxima, novamente os nossos olhares se cruzaram em reconhecimento ou saudação. Encontrava-a ali a estudar, matinando numa pequena rima de compêndios, em companhia de calculadora de bolso que, à sua direita, me afligia como um quadro torto na parede e, por isso, sem nos conhecermos, quase nos conhecíamos.
Mas o olhar da rapariga, esta manhã, parecia diferente. Uma anunciação. Vejo-a a sorrir (para si mesma?) e percebo no ar um frémito novo, seivas e sóis a acordar, uma ebulição recôndita a prometer aleluias.
Porém, não entendia o que a tornava diferente. Os seus olhos cor de mel cintilavam, irradiando luz como janelas iluminadas de uma casa aquecida por dentro. Neles, no clarão do seu brilho, podiam ver-se duas figurinhas de crianças a correr entre estevas para colherem flores e uma mulher de corpo maduro voluptuosamente reclinada, em doce expectativa. Apenas isso.
Todavia, aquele olhar abarcava as coisas nos seus lugares, aceitando-as com simpatia; saudava o ressuscitar da natureza no termo da hibernação – concluí eu, pedindo o café e desdobrando o diário. De facto, iluminava-lhe o rosto um esplêndido luar tropical, acrescentei, observando-lhe a epiderme que, revelando a carne escondida, parecia sorrir de contentamento, e os cabelos sedosos como plumagem de rola no cio.
Certamente, o estudo “não lhe rendia” esta manhã, primaveril em excesso para tanta da nossa invernia, e eu tardava a folhear o jornal novo sempre velho, procissão gemebunda de tristuras e misérias. Sabia bem contemplar a rapariga, recebê-las nas retinas como um aceno alegre e cordial, indício cósmico (enganador) de que os piores tempos já haviam passado.
E a rapariga não repelia a observação, agradava-lhe até, como se alimentasse no seu corpo uma fome secreta. Retribuía-os francamente, achando-os naturais, só não compreendendo bem, por certo, que ambos, cada um à sua mesa no café hoje quase ermo, estivéssemos em contacto através de olhares e, como idiotas, não nos apresentássemos a dizer olá, a comunicar oralmente.
/.../ Ela ia afundando mais e mais o rosto nas páginas dos seus livros, rabiscava apontamentos agora com expressão quase diligente. Erguia os olhos cor de mel e passeava-os pelo café, corria-os pela rua através das vidraças. Pareciam rir-lhe na cara luminosa. Ela sabia, de certeza, que “era” bonita, mas provavelmente diria que “estava” bonita, pois as mulheres poucas vezes acham que atingem o ser, basta-lhes o estar.
Eu tinha a sensação reconfortante de que a Primavera já triunfava sobre o frio e a noite, mas comecei a sentir também, de novo, que esta Primavera não nos traria os esperados frutos nem viria como devia vir. [Texto incompleto extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]