segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Canção da solidão radical


O nosso tempo puxa pelo radical. Parece ter perdido a noção do equilíbrio, está aberto a todos os extremismos. Não o demonstra apenas o que cada um de nós observa no seu dia-a-dia, agora até uma canção popular o exprime.
Agora? Não. Desde 1991, ou seja, há quinze anos que o país anda a ouvir a canção “Nasce selvagem”.
Essa canção está no CD “Palavras ao vento” do grupo Resistência e continua a integrar as playlists em voga, de maneira que percorre os pátrios ares. Mas a letra, musicada com inegável brilho, veicula uma mensagem atroz, pesada, intragável. Declara, ostensiva e rotundamente, o individualismo mais irredutível, feroz, irremediável.
A mensagem não se limita a observar uma certa marginalidade social, avança para mais longe; recomenda e aconselha: “Vive selvagem / E para ti serás alguém / Nesta viagem”.
Explica o porquê da opção: “Mais do que a um país / Que a uma família ou geração / Mais do que a um passado / Que a uma história ou tradição / Tu pertences a ti / Não és de ninguém // Mais do que a um patrão / Que a uma rotina ou profissão / Mais do que a um partido / Que a uma equipa ou religião / Tu pertences a ti / Não és de ninguém”.
Se esta mensagem pretende dirigir-se a um (ou uma) jovem, quer persuadi-lo de que se encontra de facto no mais completo desgarramento, numa absoluta solidão. Não pertence a nada, sejam pais, irmãos, amigos, parentes. Não tem pátria, tradições, história ou religião e, menos ainda, profissão, clube desportivo, sindicato, partido.
Que espécie de ser humano, assim concebido, isto é, assim tão despojado de atributos humanistas, poderá ser este, radicalmente separado de todas as redes de pertenças que o definem socialmente? Despojado de uma dimensão social e, por decisão própria, feito “selvagem”, estará tal ser humano preparado para viver enfrentando um mundo eventualmente ainda mais selvagem? Pior: esse “selvagem” terá de viver dentro na sua “selva” e, muito mais, consigo mesmo!
Nada resta aqui do lembrado “selvagem” de J. J. Rousseau, “bom” porque ainda se mantinha integrado na natureza em que nascera. A canção “Vive selvagem” insiste na sua mensagem dissolvente, repetindo: “Quando alguém nasce, / Nasce selvagem / Não é de ninguém”. Talvez a quadra natalícia seja apropriada para questionar pais irmãos, amigos, partidos, associações culturais, filantrópicas, desportivas e etc.: uma nova geração nasceu e cresce ouvindo isto – não há nadinha, influência nenhuma, a reportar?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Leitura mata Literatura


Uma investigação de peritos em matemática, anunciada recentemente, analisou o enredo de uma quantidade enorme de romances publicados e, suponho, em leitura na actualidade. Não leram tal quantidade de ficção. Elaboraram um algoritmo, aplicaram-no aos textos e concluíram que existem apenas seis formas básicas de ficções, não mais.
Inspiraram-se em Kurt Vonnegut, escritor dos EUA, autor de uma divertida palestra sobre o tema, porque, sem histórias novas para narrar, como bem sabemos, as ficções andam a repetir-se de mistura com minguados recursos a ingredientes e temperos. O mundo dos consumos literários estagnou de tal modo que a Academia Sueca, ribalta do prémio Nobel, já teve de ouvir que não resta mais diegese fresca para servir. Ficções românticas, científicas, policiais, de espionagem e outras debatem-se com receituários esgotados e escrita criativa quanto baste.
No entanto, o mercado livreiro não aparenta crise. Os escritores escrevem, as editoras publicam, os livros amontoam-se por todo o lado e começa a falar-se de uma “pós-literatura”. O que pode ser ou será mesmo… isso?
Assim se faz lembrar o caso de Albino Forjaz de Sampaio, autor tão popular no início do séc. XX português que foi acusado de ser autor de tanta leitura em circulação que estava a matar a Literatura (ler crónica de 31-10-2016). O tema é interessante, logo irrecusável. Até que ponto um gosto padronizado resultante das leituras populares pode rebaixar o nível da educação estético-literária das populações?
Vejamos de relance a situação. O número de editoras cresceu exponencialmente no país mas são as editoras principais, presentes no mercado, que o abastecem com abundância nunca vista. As fictícias, simples chancelas, ou “marcas”, praticam tiragens ínfimas de cada obra (são, frequentemente, edições dos próprios autores e, portanto, nem chegam, ou mal chegam, ao mercado).
É, pois, do lado da edição comercial – altamente concentrada em grupos – que chovem infindos lançamentos de ficções e mais ficções pleonásticas, meras repetições assinadas por nomes internacionais nobelizados, celebrizados, aclamados por milhares ou milhões de leitores-consumidores. São autores de obras extensas como léguas da póvoa, os tradutores arregaçam as mangas e têm que dar o litro. Os leitores nem tanto: desistem e deixam a coisa arrefecer no arrumo doméstico.
Aumentam os desperdícios de papel e da celulose? Estará a degradar-se o gosto literário dos leitores-consumidores desta produção editorial cacofónica? E sairá daí, concretizada, aquela predita “pós-literatura”?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O poema de Maiakovski

“Na primeira noite, eles aproximaram-se e colheram uma flor do nosso jardim. E não dissemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. / Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.”
Maiakovski é, de longe, mais conhecido mundialmente como autor deste poema do que como autor de Os Banhos ou outros livros seus. A força poético-dramática da mensagem contida nestas poucas palavras torna o poema absolutamente notável, inesquecível. Celebrizou-se ao ponto de ter sido glosado por variados autores: Martin Niemöller, Bertolt Brecht e outros, apelando sempre para uma resistência cidadã contra a invasão de qualquer tirania
; o mais recente será talvez Cláudio Humberto, brasileiro, com poema de 09-02-2007, que começa: “Primeiro roubaram-nos os sinais, mas não fui eu a vítima”.Vladimir Maiakovski nasceu em 1893 e morreu em 1930. Martin Niemöller (1892-1984) parece ter aparecido com a sua glosa em 1950, quando também a de Brecht (1898-1956) surgia, embora Niemöller possa ter aflorado o mesmo tema em 1933, após Maiakovski falecer. Prevenia: “Primeiro vieram buscar os comunistas e eu não disse nada pois não era comunista. Depois vieram buscar os socialistas e eu não disse nada pois não era socialista. Depois vieram buscar os sindicalistas e eu não disse nada pois não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus e eu não disse nada pois não era judeu. Finalmente, vieram buscar-me a mim – e já não havia ninguém para falar.”
Realmente, o poema de Maiakovski começou a circular pelo mundo em meados do século XX, quando os países europeus se reconstruíam a custo, erguendo-se dos horrores sofridos com a Segunda Grande Guerra, já sem Hitler e o fascismo de Mussolini na Itália mas com Franco ainda a reinar em Espanha. A divulgação do poema veiculava portanto uma rejeição apelativa de mais ditadores, guerras, destruições, e vem de novo à memória de quem lobriga no seu horizonte idêntico perigo. Como foi o caso de um texto de opinião de Tiago Moreira de Sá («Público», 29-11-2016, p. 23, tit. «Donald Trump e a lição de Martin Niemoller»).
Moreira de Sá cita Niemöller e
repete o argumentário corrente do discurso anti-Trump mas omite o autor do poema original, o que é grave. Deixa em suspenso duas hipóteses: involuntariamente, por escassez de cultura literária, ignora que o poema até celebrizou Maiakovski; ou, voluntariamente, por um poeta soviético, logo comunista, provocar urticária até em quem está, como ele se diz, com tanta preocupação: “pode estar em causa a qualidade da democracia na América”. Ali, na pátria da Democracia Modelar, onde por sinal uma candidata à Presidência com mais de dois milhões de votos cidadãos do que o antagonista perderá a eleição por decisão, talvez, dos Grandes Eleitores, 280 votos! [Imagem: desenho de Emerenciano.]

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Língua portuguesa e Literatura

A cultura, nomeadamente a cultura literária, não vem somente nos livros. Aliás, cada vez menos os milhares das novas edições que se registam em Portugal trazem no miolo substância que realmente valha a pena ler. Em alternativa, olhemos portanto, ao menos como quem espreita, algo do que vai saindo em revistas periódicas.
Atidos apenas a publicações impressas (i. e., em papel), notemos o panorama das revistas académicas. Surpreende. Continua animado e extenso, vigoroso e rico, como que alheio à expansão dos formatos digitais.
Nestes termos, saúde-se a “Revista de Estudos Literários” que o Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras de Coimbra vem publicando anualmente. Saiu o nº 5, relativo a 2015, coordenado pelo Prof. J. L. Pires Laranjeira. Conta 700 pp e traz no sumário um naipe de ensaios de especialistas da área temática deste volume dedicado ao tema Literaturas africanas de Língua Portuguesa.
Os textos aparecem arrumados nas secções Temática, Não-Temática (resultante do projecto que elaborou o Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa), Profissão, Arquivo (última entrevista de Manuel Ferreira concedida a Lopito Feijóo, inédita), Recensões e notas sobre os autores dos textos. Em nota prévia, o Prof. Carlos Reis sublinha a “área muito ampla de produção literária, com manifestações desiguais” nos países africanos de língua portuguesa. Neste sentido, é naturalmente maior o relevo aqui dado a escritores de Angola, Cabo Verde ou Moçambique do que a Guiné-Bissau ou S. Tomé e Príncipe. Também, entre os autores mais focados, se distingue Manuel Ferreira, que Pires Laranjeira, na introdução, evoca justamente como “cabouqueiro, divulgador, editor, professor, cavaleiro andante das sete partidas, apaixonado das cinco literaturas [africanas], referência mundial incontornável”. Mas outros autores são estudados: Domingas Samy, Mia Couto, Paulina Chiziane, Eduardo White, João Melo, Alfredo Troni...
São perto de duas dúzias os autores destes estudos: Pires Laranjeira, Luís Kandjinho, Inocência Mata, Ana Mafalda Leite, Carmen Lúcia Tindó Secco, Francisco Topa, Mário César Lugarinho, Solange Luís, Rui Guilherme Silva, Majda Bojic’, Fátima Mendonça, Miguel Filipe Mochila, Rosinda Aires Bezerra, Ana Belém García Benito, Jorge Valentim, Elena Brugioni, Inês Nascimento Rodrigues, Laura Padilha, Ana Teresa Peixinho, Daniela Côrtes-Maduro, Maria Eduarda Santos e Marisa das Neves Henriques.
Estes nomes indiciam a diversidade das proveniências nacionais dos autores dos ensaios inseridos neste volume, sugerindo de algum modo a amplitude e a vitalidade da língua portuguesa em África, no Brasil e, enfim, no mundo.