terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Sobre Democracia

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Diversos povos vivem há décadas sob modelos de democracia tão esvaída que apenas mantém do conceito a forma, não o autêntico conteúdo. É verdade, porém, que falar de democracia remete para um conceito controvertido por inúmeras manipulações ou aproveitamentos oportunistas. Mas o próprio conceito mostra geometria variável apontado para o idealizado “governo do povo pelo povo”, a evidenciar quanto o sistema democrático é projecto inesgotável, em constante realização e devir.

Este sistema torna-se efectivo e legítimo, realmente, na medida em que desenvolva as estruturas económicas, culturais e ideológicas da sociedade, ou seja, a igualdade. Realizar eleições periódicas para apurar a vontade da maioria será, em tal sentido, bem pouco, mas já parece tornar-se uma formalidade, um ritual obrigatório numas quantas sociedades actuais onde dois partidos hegemónicos se alternam no poder. Se os eleitores, em substancial maioria, se repartem, oscilando, por esses partidos ao longo dos anos, estão, em última análise, a desistir da democracia, cristalizando-a.
O poder exercido pelos dois partidos alternantes aproxima-se assim de uma ditadura a funcionar, perigosamente, com fisionomia democrática (e onde haverá ditadura que não seja “democrática”?). As opções eleitorais, restringidas, conduzem as massas para uma passividade que as afasta do dinamismo vivo da autêntica democracia, alheando-as do debate político. Curiosamente, isto tanto pode ocorrer com povos de elevados índices de bem-estar e prosperidade nacional bem como com outros atingidos por grave crise: recessão, estagnação económica, austeridade, desemprego, empobrecimento.
A alternância bipartidária empalidece o vigor da democracia porque mascara a realidade social representando-a resumida a traço grosso (traço duplo na aparência mas, numa afinidade fatal, único). Nestas condições, o simples processo eleitoral dificilmente permitirá a formação do melhor governo. Os resultados eleitorais, diminuídos por crescente abstenção, tendem a seguir muito de perto o teor da narrativa que ecoa nos noticiários dos meios informativos (tendenciosos: omitem o que diz a “outra parte”) e sai da boca dos comentadores (“não há alternativa”, entoa o coro).
No entanto, são os defensores da Verdade Única que reagem imediatamente para lançar alarmes e atoardas delirantes quando o sistema bipartidário da rotina chega ao fim. Declaram o que gostariam de calar: o seu incómodo perante a viragem operada por novos movimentos de opinião social que irrompem e alteram o quadro das forças bipartidárias tradicionais, reagindo contra o estado dos interesses instalados. Contra os negócios, contra a corrupção-cliente dos paraísos fiscais.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Prendinhas de Natal

As minhas primeiras leituras não escolares foram, em autêntica estreia, o que deveriam ser: histórias para crianças. Mas iniciava-se o quarto decénio do século passado, a designada literatura infanto-juvenil era então raridade ainda maior do que bibliotecas públicas no Portugal salazarento. Havia pouca e pouco havia que escolher. 

ler.livros.jpgO entusiasmo, o deslumbramento que essas primeiras leituras me proporcionaram parece que continuam presentes no cabouco da pessoa que o rapazinho viria a ser, pois as vivências de então, determinantes, nele ficaram guardadas em memória indelével. Nunca mais deixei de gostar, gostar apaixonadamente, de literatura infanto-juvenil, quer dizer, de Literatura, logo contos para crianças. Quando entrei a colaborar na imprensa não tardei a escrever sobre o tema – a situação geral, os seus impasses. 
Assim tenho vindo a acompanhar a produção e circulação de tal género de livros no país ao longo dos anos (mais de cinquenta), de modo que alinhei ao longo do tempo uma grande quantidade de artigos, crónicas, pequenos estudos. Algumas dessas abordagens encontram-se recolhidas em volumes que publiquei de abrangência temática afim, outros permaneceram dispersos. E agora, perante essas dezenas e dezenas de textos, esboçou-se a ideia de os reunir para perceber se algo deles poderia extrair-se. 
Porém, a simples tarefa de ir aos jornais e revistas e livros recolher os escritos deixou-me a recapitular a matéria. Requeria um esforço enorme. E mais: com resultado à vista, a bem dizer, incerto e assaz duvidoso. 
Afinal, o que tenho vindo a escrever sobre literatura para crianças, ou infanto-juvenil, reflecte, acima de tudo, julgo eu, as transformações essenciais por que passou o género em cerca de 60 anos. Assim evoco o contributo proporcionado pela Fundação Calouste Gulbenkian (bibliotecas itinerantes e fixas) que dinamizou muitíssimo os sectores nacionais da edição e da leitura pública desde a sua criação, em 1958. Quando muito, interessaria uns poucos: uma franja de leitores atentos e algum sociólogo ou historiador da literatura. 
Quer dizer, a matéria não serviria para, demonstrando, ensinar coisa alguma a alguém. Estamos todos colocados numa realidade em flagrante, sabemos quanto o crescimento das publicações infanto-juvenis já contribuem para activar as editoras. Mas seria interessante analisar e documentar quanto a evolução em foco, sendo positiva, banalizou os livros “para crianças” ao ponto de esbater, e até abolir, com a expansão do mercado, a noção de que somente os (poucos) livros capazes de encantar os adultos têm mérito real suficiente para chegarem aos pequenos leitores.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Derivações da deriva

O dicionário dissipa quaisquer dúvidas: deriva é isto de ir à sorte, ao sabor das ondas; derivar é a acção que desvia uma coisa do curso natural, é afastar a coisa do seu rumo, apartar. Habituámo-nos neste mundo em convulsão a constantes derivas, dramáticas mudanças, alterações radicais. Acumulam-se tão vertiginosamente que o esforço maior é o da adaptação à mudança e não à compreensão do que mudou, de modo que as derivas quedam nebulosas, inexplicadas.

Todavia, algumas derivas resistem à mudança, parecem imóveis ou inamovíveis. Exemplo, a permanência da NATO (24 anos após a ex-União Soviética ter dissolvido o “seu” Pacto de Varsóvia acreditando decerto no fim da guerra fria), que interveio nos Balcãs em 1992-1995 deixando a Jugoslávia fragmentada, em cacos, entre os quais Kosovo avulta como eloquente símbolo. A NATO, organização militar liderada pelos Estados Unidos, confunde-se por vezes com a nação líder na visão de comentadores que apontam na sociedade americana a feição violenta e no exterior o seu comportamento belicoso, militarista, de potência agressiva, envolvida em frequentes guerras.
As intervenções no Vietnam e, mais remota, na Coreia, ambas terríveis, ficam quase sem memória perante a invasão do Iraque, em 2003, que o governo de Bush justificou com recurso a mentira e falsa propaganda. Nasceu então o alegado “terrorismo” (quer dizer, a agressão do “outro lado”, não a nossa), transformado em serviçal bandeira com o colapso das torres gémeas em Nova Iorque mais qualquer coisa no Pentágono. O que a retórica da anunciada “Primavera árabe” prometia viu-se logo: a Tunísia entrou em ebulição imparável, a Líbia idem, Kadafi acabou algures, misteriosamente executado, como Bin Laden ou Sadam Hussein.
Chegou a vez do Egipto. Em 2011, Morsi, da Irmandade Muçulmana, ganhou a presidência numas eleições muito saudadas que observadores europeus acharam livres e democráticas. Porém, não terminou ali o reinado dos faraós pois o general el-Sissi achou por bem substituir, em 2013, o presidente eleito. Na vizinhança, a Síria sofria martirizada pela guerra entre grupos fundamentalistas rivais…
A Ucrânia também realizou eleições consideradas muito livres e democráticas. Yanukovich foi eleito presidente mas uma certa agitação civil quis aderir à União Europeia até que obrigou o presidente a exilar-se. Evidentemente, esquecido da União, a Ucrânia viu-se com um governo descrito como pró-nazi.
Entretanto, o jihadismo espalhava fogo e sangue por Argélia e vários países africanos, o Sudão se dividia em norte e sul e a Arábia Saudita agredia o Iémen. Quem olhar para o panorama de tais derivas e não souber extrair do que vê a conclusão óbvia deve estar distraído por excesso de mentalidade tecnocrática (ou seja, sem ver refugiados, perda de direitos humanos, democracia, segurança, bem-estar). Tem cunho americano reconhecível e ocupa o lugar matricial deixado pela cultura humanista abandonada pelo ensino geral europeu.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A deriva vai indo


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Um certo amigo, quando me encontra, não só me abraça com efusão e me retém num diálogo breve mas prazenteiro como parece fazer questão de me deixar os miolos a ralar. Aconteceu agora outra vez. Não afirmou nada, apenas comentou, de chofre, que a União Europeia até pode ter sido organizada apenas para que os Estados Unidos consigam contactar rápida e comodamente com os seus líderes, assim se dispensando de ligar para cada um dos líderes nacionais do euro-grupo.
A hipótese, mera hipótese do meu animoso amigo, inquietou-me logo ali e continuou a inquietar-me. Surpreendeu-me tal como a aceitação tácita dos Portugueses que em 1999 trocaram os seus valiosos escudos pelos euros a um preço caríssimo que ninguém ousou questionar e ainda menos discutir. Escaldado, já começo a sofrer ao avistar aquele amigo e a perguntar-me que prego novo irá ele cravar-me na cabeça.



As ralações agravaram-se, agora que três países principais da União Europeia (França, Alemanha e Reino Unido) entram na guerra contra o Estado Islâmico. Colocaram-se portanto ao lado dos Estados Unidos com apoio de uma espectacular campanha na comunicação social focada no terrorismo jihadista que, por outro lado, vai justificando restrições de liberdades cívicas, nacionalismos, xenofobias, insegurança social… Estaremos realmente a ensaiar, ou já a entrar na terceira guerra mundial (70 anos depois da segunda e outra vez na Europa)?
Mas enquanto a corrente de refugiados prossegue imparável, de olhos acusadores fitos no velho continente, os noticiários aparecem com novidades de estalo. Michael Flynn, chefe das informações militares dos EUA, falando em programa que passou pela RTP em 30-11-2015, às 23h32, considerou que a invasão do Iraque (Bush, 2003) foi um “erro gigantesco” pois “criou o Estado Islâmico”. O escritor britânico de origem paquistanesa Ziauddin Sardar, nascido em 1951, descrito como reformista muçulmano, afirmou em Lisboa, onde esteve para uma conferência, que “o Estado Islâmico sempre existiu, é a Arábia Saudita” - o que, neste ponto, concorda com Noam Chomsky (entrevista sobre o EI, Youtube).
Por outro lado, o ex-chefe da polícia secreta portuguesa, em declarações feitas no âmbito de um processo judicial notório que também o abrangeu, falou do “porto militar grego Astakalos usado para operações encobertas, para transporte de armas dos Estados Unidos para o Médio Oriente”, porto esse que em 2010-14 estava em vias de ser privatizado. Coincidência: naqueles anos o presidente da Turquia viu-se acusado de ter recebido cinco mil milhões de dólares para apoiar a guerra na Síria, então a desenvolver-se. Actualmente o governo da Turquia, membro da NATO, é apontado como apoiante do Estado Islâmico, o que não o impede de receber três mil milhões do euro-grupo para conter o afluxo dos fugitivos das guerras entrecruzadas que se guerreiam na região, martirizando as populações e os seus poços de petróleo.
A deriva? Vai indo bem, obrigado.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A mim, popularidade!

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O nosso espaço público encheu-se de comentadores e de articulistas que opinam na imprensa e na rádio ou têm porta aberta na televisão. São em chusma pródiga, infinita, de gente da política além de treinadores, jogadores, presidentes e etc. do mundo do futebol, actores de telenovela em exibição ou a cambulhada de autores de livros autoeditados. O espaço não sobra, será mesmo acanhado para acolher tanta gente a fluir de todos os cantos, ansiosa por alcançar imagem pública, protagonismo.
A mim, popularidade!, parece ser a exclamação contida no desígnio máximo que mobiliza os estratos da população. Construir uma imagem, senão pública, pelo menos reconhecível, personalizada, vale agora como passaporte para viver e circular de corpo inteiro. Quer dizer, para banir a própria extinção pelo anonimato.
Evidentemente, a popularidade não se confunde com a celebridade. Mas esta, conforme é demonstrado pela sabedoria das nações, bafeja umas raridades, de modo que pessoas de vulgar bom senso acabam satisfeitas com bastante menos. Quando o facto se impõe, basta-lhes um nadinha fugaz de reconhecimento público, seja de multidões, seja de bairro, de paróquia ou da rua onde habitam.
Daí a necessidade de cada pessoa briosa construir de si uma imagem, na pose convicta e convincente de ás da comunicação modelar, de agrado certo, no café e em todo o lado, porque só pondo à prova a crisálida de novato sem treino que nele lateja irá nascer o comunicador. A aparência (a fotogenia, o look), a maneira de falar, toda a sua gesticulação têm que irradiar bom humor, sendo sedutora, sexy. O que se tenha a dizer importa bem pouco e muito mais que seja dito com graça, entre risos, piadas e estórias divertidas.
Parece, realmente, que jamais como na actualidade (isto é, desde o início do segundo milénio), tanta gente se aplique na obtenção possível de alguma notoriedade mais ou menos pública, assim como náufragos esbracejando para não se afundarem de todo no obscuro pélago dos zés-ninguéns. É preciso despertar as atenções, apertar a mão a milhares, espalhar a cara pela cidade e pelo país, ser conhecido e notório, popular como qualquer carinha mediática (porque quem assim as inveja também quer ter nomeada, quer dizer, ter cara com o seu nome apenso). E ninguém tente convencer a gente de que as carinhas mediáticas perdem liberdade pessoal na medida em que sejam conhecidas na rua – serão esses os invejosos…
Sabe-se: o que corre pelo espaço público é artificioso, frívolo, efémero, espectacular. Mas vivemos todos numa instabilidade geral que é, sem dúvida, a maior marca do tempo presente. Nesta situação, a fraqueza da mobilidade social (dissuasora da luta de classes) parece estimular o fenómeno detectável nas massas: a exploração de comportamentos sociais como promoção individual de compensação meramente simbólica.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A Europa-fortaleza


A União Europeia considera as suas próprias populações. Votam, logo são mais valiosas do que outras que a União até ajuda a dizimar. E agora, atacada, a União tenta escudar-se: estende ao longo das suas fronteiras muros quilométricos de arame farpado.
Quer travar ou impedir o ingresso de refugiados que fogem da Síria e de países próximos martirizados por conflitos bélicos intrincados, tão terríveis e destruidores que quem a eles assiste de longe não os consegue entender devidamente (pois o jornalismo, hoje, funciona com trava-línguas). Todavia, a União Europeia, fiel apoiante das estratégias americanas desenvolvidas naquela região, clama por vingança após atentados de Paris e França declara guerra ao designado Estado Islâmico. Quer dizer, a força que antes exibia mostra-se em fraqueza.
A tineta securizante alastra pelo mundo e o medo instala-se nas populações expostas a ataques terroristas de qualquer tipo desferidos de súbito em qualquer lugar. Mas haverá verdadeira segurança contra a eventualidade de tais ataques, persistindo o fechar-de-olhos às dezenas de regimes que negoceiam com o E. I. e, portanto, o financiam? Dará resultado tentar uma cura da doença sem tratar do que a provoca?
Vê-se que a União Europeia não se mostra em condições de responder à crise dos refugiados e agora não parece preparada para enfrentar a iminência de novos atentados (e, lembre-se, nos de Paris aparecem cidadãos europeus). A Europa-fortaleza pode proteger de um terrorismo deste tipo quem, onde, quantos? Por este caminho, o seu isolamento e as suas contradições internas vão crescendo.
Os países do Sul distanciam-se, os do Leste arquivam o tratado de Schengen, Londres ameaça com referendo, Catalunha avança para a independência… Os refugiados que chegam ansiosos por paz e segurança são recebidos por hipocrisia e mais hipocrisia envolvida em retórica e mais retórica.
Todavia, o envelhecimento da população, isto é, o fraco nível dos nascimentos nos Estados-membros não é problema demográfico resolúvel de uma penada. Deriva de um complexo de crises que exigem múltiplas abordagens, não apenas a assimilação de massas jovens imigradas. A União Europeia encontra-se sob uma acentuada paralisia económica geral e mesmo à beira da deflação (que tanto faz sofrer os centros financeiros) para a qual a política da austeridade quis ser remédio - e foi estímulo.
Por outro lado, o sistema monetário não ajuda tal como a diversidade das políticas fiscais, a existência das ilhas-paraísos onde se acoitam os lucros das maiores empresas. Os governantes e a governança da União debatem-se em sérias dificuldades. Entretanto, o aumento das despesas (policiais e militares) a fazer por países sob ameaça talvez sirva para demonstrar quanto a “indústria do terrorismo” pode ajudar a desenvolver a estagnação da economia graças a uma economia de guerra (que a comunicação social, difusora multidireccional do medo, está a pedir).

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O petróleo do séc. XXI


Opinião piedosa será a que pretende justificar a televisão e a imprensa ocidentais que se recusam a mostrar imagens das terríveis destruições de pessoas e bens realizadas dia a dia em variados países somente para poupar as populações às cenas de tamanhas violências, tão atrozes sofrimentos. Mas a comunicação social não abdica da sua função por piedade em intenção dos seus públicos, sim por indiferença por quem sofre. O mundo enche-se de horrores entrando na terceira guerra mundial e os públicos esperam que a valsa continue nos salões onde nada mais pode acontecer.
Entretanto, acontecem maravilhas absolutamente extraordinárias que ligeiríssimos reparos merecem. Veja-se: o petróleo, energia fóssil que continua a subordinar as economias mundiais, tem mantido o preço quase pela metade apesar de – eis a primeira maravilha - o seu custo de exploração tenha saltado para cima tanto quanto os furos extractivos caíram para a fundura. Agradados, os consumidores finais só lamentam que o preço do produto no mercado não acompanhe o seu embaratecimento.
Todavia, a exploração do petróleo prossegue em alta, indiferente tanto à quebra dos lucros quanto ao problema gerado pelos combustíveis fósseis no ambiente planetário. Estará a dar prejuízo? Uma ONG anuncia agora que o Fundo Monetário Internacional (FMI) declara que os países industrializados gastam mais em subsídios para combustíveis fósseis do que em saúde - uns dez milhões de dólares por minuto!
Com efeito, os países industrializados já acordaram em subsidiar os países mais pobres com cem mil milhões de dólares por ano, até 2020 – oceanos de dinheiro que, naturalmente, os contribuintes desses países vão pagar. Mas há cientistas que responsabilizam os combustíveis fósseis pelas catástrofes climáticas, prevenindo que estas se agravarão a partir de 2020. Nesta base, os países pobres exigem aumentos sucessivos das contribuições…
Aliás, os países pobres, exportadores de outras matérias-primas importantes que baixaram de preço no mercado internacional tal como o petróleo, ficaram com as suas economias desbaratadas. O mundo inteiro parece ter entrado numa estagnação económica expansiva e crescente, transferida por capilaridade, traduzida em desemprego, pobreza e maior desigualdade social que avassala os povos dos países emergentes e já atinge os industrializados. Venezuela, Irão, Angola e Brasil, nomeadamente, apertam o cinto que, apesar de tudo, para a Arábia Saudita, grande amiga da América, continua largo.
Suprema maravilha estará em concluir que forças poderosíssimas são capazes de assim condenarem o mundo. Não têm nome nem rosto visíveis em público. São um por cento do tal um por cento de que nos fala o Outro – conhecem?

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Ana Hatherly e Cértima

Ao receber em 1993 o espólio do escritor António de Cértima, isto é, ao manusear em sua casa os papéis e outros documentos integráveis na doação feita pela sua viúva, descobri um pequeno conjunto de folhas assinadas por Ana Hatherly e, nas estantes da sua biblioteca, os primeiros livros publicados pela então jovem escritora. Ali soube que Cértima era tio de Ana. Nasceu uns 35 anos antes da sobrinha, mas a diferença de idades não obstou a terem sido “muito afeiçoados”.
As relações de Ana (Porto, 8-05-1929 / Lisboa, 5-08-2015) com Cértima (Oliveira do Bairro, 27-07-1894 / Caramulo, 20-10-1983) são certamente posteriores a 1949, quando Cértima deixa o consulado de Sevilha e se fixa em Lisboa para se casar e retomar plenamente a criação literária. O parentesco trouxe-me logo à lembrança que o bairradino autor de Epopeia Maldita frequentou o círculo intelectual do Porto, onde tinha familiares. Nesta cidade terá composto o poema “Oração a Dionyso” publicado na primeira página do quinzenário de afirmação galega “Rexurdimento” (Betanzos, nº 2, de 16-08-1922). 
Todavia, em 1949 Ana estudava na Alemanha canto lírico, carreira que abandonou por motivos de saúde. Em Lisboa, nos anos ’50, decidiu optar pela literatura e então aproximou-se do tio, escritor bem conhecido no ambiente da época. Cértima conservou no conjunto dos papéis uma carta de Ana, talvez de Dezembro de 1953, cujo teor parece esboçar um primeiro gesto dessa aproximação em admirativa exaltação. 
Os papéis que o tio dela quis conservar são, em breve súmula, três cartas manuscritas; duas páginas em papel bíblia com texto dactilografado intitulado Le Danse de l’Oubli e autógrafo ao tio em 19-12-1956; um poema manuscrito, em jeito de improviso, datado de 11 de Julho de 1957 e a nota “Em casa de António de Cértima”; três poemas dactilografados; mais três poemas manuscritos (dois com datas: Janeiro de 1959 e 1964). 
Ana Hatherly frequentava a universidade e aparecia com os primeiros livros: uma antologia da “Moderna Poesia Portuguesa”, em 1960, que a autora baniu da lista dos seus livros decerto por causa da epígrafe de Salazar, e a narrativa O Mestre em 1963. Depois adviria um certo afastamento, também ideológico, do tio, a sua adesão à poesia concreta e experimental, o doutoramento em literaturas hispânicas, o cinema (que foi aprender a Londres), a consagração como “pintora da palavra”. Neste percurso, o traço que mais vincadamente marcou Ana foi a reserva com que manteve a sua vida pessoal. 
A relação que manteve com o tio terá sido tão discreta que, em geral, passou inadvertida, mas Cértima quis documentá-la nos papéis que guardou, assim como a existência de filha de Ana, Catherine, vítima mortal de acidente automóvel perto de Londres, em 1970. Conhecendo-os, convidei Ana Hatherly em 1994 a participar num ciclo de conferências que assinalou o centenário do nascimento do tio, mas ela recusou. Gorou-se a minha intenção de restituir os papéis à autora. 
A eles tornei aquando da morte de Ana Hatherly. Achei-os significativos. Que destino dar-lhes? 
Resolvi oferecê-los à Biblioteca Nacional de Lisboa, entidade que já havia recebido uma doação da própria Ana. Entretanto, julgo ser meu dever dar pública notícia deste conjunto de papéis, aqui e em artigo a sair na revista digital TriploV de Dezembro próximo. Podem interessar ao eventual investigador. [Foto de Ana Htherly na contracapa de «O Mestre», 1963.]


Post scriptum


O texto supra, editado em 10-11-2015, ficou para mim tingido por desgosto e tristeza. Parece que as relações pessoais estabelecidas pelos dois autores em foco, que descrevo em poucas linhas (mas remeto para o estudo mais desenvolvido que assinei então na revista «TriploV»), resulta em assunto assaz incomodativo. Ora eu, no caso, sempre me senti completamente neutro, isento de qualquer interesse particular. Lembro: dei alguma atenção a António de Cértima para assinalar o seu centenário, publiquei livro «António de Cértima - vida, obra, inéditos» (Figueirinhas, Porto,1993), etc., porque ele nascera na minha terra natal e eu corria pelo restauro do património cultural daquela região (sendo eu de esquerda e ele tivesse feito carreira apoiando a ditadura de Salazar); quanto a Ana Hatherly, respeito-a pelo seu perfil académico, de escritora e de mulher. Se algo me move no caso é apenas o desejo de contribuir para o melhor conhecimento de Ana, pessoa tão ciosa da sua privacidade que, por exemplo, nem sabíamos que tivera uma filha. Apesar de tudo, colhi fortes motivos de perplexidade e aborrecimento: a recusa da directora da Biblioteca Nacional de receber a minha doação dos documentos (recusa peremptória, inexplicável, pois a directora e a BN poderiam tratar e divulgar os papéis conforme quisessem; a publicação na revista também não correu bem, foi mais perplexidade e aborrecimento. Outras ocorrências deixaram-me a considerar o caso desagradável de tal modo que o descartei da agenda. Acontece, porém, que o texto supra tem vindo a receber constantes leitores de variados países e isso traz-me por fim a cumprir o que talvez seja uma obrigação: esclarecer o caso, encerrar o assunto. De facto, mantive-me tonta e longamente persuadido de que o estudo editado na revista digital «TriploV» era acompanhado pelas digitalizações dos documentos principais (cujo teor transcrevo). Por isso, o meu livro Inclinações Pontuais [ISBN 978-989-54234-82-49], publicado na plataforma digital da SPA em Agosto, 2018, indica no final, em nota, que as digitalizações eram acessíveis no endereço da revista, indicação errónea não corrigida. Mas os leitores eis a surpresa! podem hoje encontrá-las aqui. Finalmente! No cabeçalho, em «Página» (tem duas entradas: uma tem capas e links de meus ebooks); abram a segunda, «Ana Hatherly-digitalizações»). Entram na página e visionem as 24 imagens com o tamanho dos documentos originais. Mostram mensagens de Ana, poemas inéditos (?), duas pp em papel bíblia dactilografadas; nota do punho de Cértima em fl A4 que regista morte da filha; carta de Catherine para os tios António e Arminda, um autógrafo anotado por Cértima, etc. (a menina já projectava livros desenhando a lápis a capa). A foto que Cértima guardava no conjunto - o retrato de Catherine - já saiu no texto da revista e agora é aqui repetido. [09-07-2019]

Acrescento


Resolvi ampliar a exposição dos papéis de Catherine, filha de Ana Hatherly, integrados no conjunto deixado pronto por António de Cértima e recebido por mim junto com o seu espólio geral. Acrescento sete novas digitalizações de textos elaborados por Catherine atendendo a dois motivos essenciais: documentam as aptidões extraordinárias que a menina já demonstrava (chegam a ser aptidões impressionantes e bem mereciam referência especial); e poderão auxiliar um eventual investigador num esforço pela definição do perfil humano, como pessoa e como mãe, de Ana, detectando o que dela própria possa encontrar-se reflectido na filha. O «tio» Cértima e «tia» [Ar]Minda terão acompanhado afectuosamente o talento de Catherine, autora do poema «A Morte» (4 pp, peq. dim.) A menina enviou-o ao casal, considerando no poema que a morte «é uma ave branca e pura» e que «Mais vale entrar na vida sendo poeta». Note-se também o «romance O amor Falso» com capa, prefácio e apontamentos sobre personagens, cenários, etc., que Catherine, com 10 anos de idade, escreveu a lápis em folhas de papel costaneira usadas outrora por merceeiros em cadernos de folhas soltas.  Era papel de fraca qualidade e daí a fraqueza das imagens -, decerto sua mãe dava-lho para que ela rabiscasse. A infantil autora assume-se como Catherine d’Elche (pseudónimo?) e supõe: «Mas parece que Deus me escolheu para ser mais uma serva de arte para ele.» Também estes esboços chegaram aos «tios» e talvez a Fátima (ou Fati, diminutivo familiar), a filha do casal com quem a filha de Ana brincou. Ignoro o ano e onde nasceu Catherine, o nome do progenitor. Atentei no ano inscrito na «capa» do «romance», 1960, quando a menina teria 10 anos. Poderá deduzir-se que teria nascido em 1950? E tendo falecido em 15-01[ou 02?]-1970 (talvez já com 20 anos?!), conforme regista Cértima? Ora, em 1960, Ana Hatherly contaria uns 21 anos pois, conforme se sabe, nasceu em 8-05-1929. Quanto a mim, cingido ao factual, dispenso-me de interpretações, deixando-as para alguém que se disponha, séria e competentemente, a investigar e estudar todos os dados existentes. Se esse alguém, em tempo útil, me contactar em tal sentido obterá de mim acesso adequado a todos estes papéis. Se ninguém comparecer, prevejo desde já uma solução de mero recurso: irei levá-los em mão e doá-los ao arquivo da Biblioteca da Universidade de Aveiro, para juntar aos dois espólios (o meu e o de António de Cértima) ali constituídos por mim há anos.  Assim ficará arrumado este assunto. Missão cumprida!
Lembro que A. de C. tem nome em blogue que criei, onde estiveram presentes dois livros de sua autoria, inéditos: uma peça de teatro não representada e uma colectânea de contos, em edições digitais: «Ela e o Homem» e «Os Que Sentem e os Que Pensam». Foram retirados do blogue por perda da plataforma que os mantinha. [28-07-2019 e 26/28-11-2019]

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Encontro de jornalistas JN

À beira do terceiro encontro da malta JN (31-10-2015, de novo em Coimbra), recordo: apareci pela primeira vez no segundo. Falhei o inicial por impedimento que já se me varreu, mas lembro-me da pena que isso me deixou. O meu nome tinha sido agregado à lista dos contactos preparatórios pela mão do Fernando Mendes, que me apareceu a desencadear a iniciativa e que antes da concretização do evento foi tristemente levado pelas Parcas.
É bem verdadeiro o meu gosto por reencontrar os companheiros do nosso jornal e por trocar com eles um abraço. Partilhámos experiências, vida vivida e mesmo algum sonho. Mas confesso que duvido se alguns dos meus velhos companheiros terão tanto gosto quanto eu pelo reencontro e o abraço que nos poderemos dar.
Naturalmente, no jornal tal como em convívio gratificante, criam-se subgrupos dentro do grupo pela força de correntes espontâneas que crescem em liberdade. Serão expressão de simpatias pessoais compartilhadas, afinidades ou de outro «algo» humano que por vezes resiste ao entendimento, ou resultantes de simples desencontros ocasionais. Mas o facto é que «passei» pelo JN sem levar dali a lembrança de uma relação de amizade digna desse nome.
Assinalo somente o pormenor (com autocrítica: corria demais naquele tempo, logo sem tempo para acamaradar?), reconhecendo porém que me congratulo deveras com estimas ou simples considerações pessoais que sinto merecer de antigos camaradas para mim especiais. Na verdade, dei-me sem restrições ao nosso Jornal. Comecei a colaborar nas suas colunas bastante cedo, em 1954, no designado «Suplemento Literário» coordenado pelo dr. António Ramos de Almeida e, em 1960, por convite do director Manuel Pacheco Miranda, como cronista semanal e logo, em 1963, num passo seguinte, encetei paralelamente a profissão.

Escolhi-a desistindo de um lugar em biblioteca itinerante da Gulbenkian, em Chaves, que me foi proposto em dia frígido, de intenso nevão. Recusei-o e optei por me fixar no Porto. Já tinha livros publicados, algum nome literário, bons relacionamentos no meio portuense, e o jornalismo aproximava-me do que mais queria - escrever.
Tive que pagar a factura: os jornalistas tarimbados olharam-me como «literato», isto é, de algum modo, como um intruso, duvidosos se eu seria capaz de escrever uma notícia chapa cinco, uma reportagem convincente ou de fazer uma entrevista e, entre os escritores, só uns poucos acharam que terei dado algum brilho à profissão.
O Jornal morava na Avenida dos Aliados. Chefe de Redacção era o sr. Brochado; passava o tempo com novelas policiais. O subchefe, Manuel Ramos, o nosso familiar Raminhos, sempre em luta com a Censura, de manguitos enfiados até aos cotovelos, encarregava-se do expediente.
Foi abreviado aquele meu primeiro período de serviço no JN. Em Junho de 1964, a PIDE quis obsequiar-me com três meses de clausura e no regresso encontrei o ambiente geral muito carregado de antigamente, o que acabou por me empurrar para a demissão. Voltei após a democratização, em 1978. Permaneci até sair (em 1992) na «Cultura» (como editor, quando esta figura ainda não existia no país), secção que surgiu, pequenina, mas depois botou corpo.
Fui cronista regular (semanal) em diversas ocasiões - trabalho de casa, pura oferta. Fiz de tudo quanto um jornal daqueles precisava, afora, é claro, o desporto, praticando abundantemente nas suas páginas a cartilha dos géneros redactoriais. Cheguei a crer que pequei por excesso, ao ponto de cair - erro crasso! - em dizer um dia ao então director: «Gosto tanto disto que até pagava para o fazer!»
Mas, vejamos, se não estamos apaixonadamente na profissão, que sentido terá a nossa vida? Lembro o filósofo: «Escolha um trabalho que ame e não terá que trabalhar um único dia na sua vida.» Enfim, tudo aquilo já se dilui num passado que pouco ou nada interessa, pelo que torno ao filósofo para assentar: «É fácil apagar as pegadas; difícil é caminhar sem pisar o chão.»

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-2


Honra-se um autor de modesta condição como a minha colocado nesta prestigiosa companhia tendo embora em conta a diferença das respectivas estaturas. Na verdade, consagrei imensas energias a uma espécie de animação cultural que, a meus olhos, sempre integrou uma certa dimensão de participação cívica pro bono. Neste sentido, creio que uma pessoa, máxime um autor, não pode negligenciar ou truncar a relação com a sua comunidade sem grave perda para si e para a comunidade.
Olhando para trás, penso ver espelhar-se no percurso que segui a coerência do que foi ou terá sido o meu crescimento. Andei longamente a encanar a perna à rã, posso dizê-lo, mas, para minha desculpa, fiquei possuído desde a juventude pela tineta do pagador de promessas que ninguém fez mas que alguém teria que pagar. Animado decerto por um voluntarismo sôfrego, este rapaz, já sexagenário, e mesmo depois, ainda acudia, peregrinando com armas e bagagens, na defesa das causas públicas que encontrava despejadas nos baldios.
Documentada ficou a surpreendente antiguidade histórica do lugar onde nasci e de alguns outros topónimos da redondeza. Pois não tende o homem a considerar o seu lugar de nascimento como centro do mundo?
Do pequeno lugar de origem pude abranger a região que o envolvia. Até meados dos anos ’80, a Bairrada era entidade quase sem referência que não fosse coloquial. O vinho e o leitão punham os sápidos à mesa. Porém, para além disso, demonstrada ficou a existência, ali, de um vasto e rico património, também surpreendente, que teve méritos para integrar a minha região natal no universo da cultura.
Estudei as questões fundamentais da informação e do jornalismo pois, a trabalhar na Imprensa, precisei de enquadrar a prática da profissão nas funções da comunicação social no Estado republicano e democrático. Parei onde estou, a apalpar as paredes da liberdade…
Debati as questões da edição literária, da crítica e da recensão das novidades, do mercado livreiro, da tradução, da leitura pública e da divulgação dos clássicos… Cuidei do Português, que por aí anda a empobrecer-se tanto e tanto carece de bons amigos que o estimem…
Frequentei alguns ateliers de artistas estimáveis. Convivi com figuras proeminentes do neo-realismo (Mário Sacramento, Óscar Lopes, Fernando Namora, Alexandre Cabral, Álvaro Salema, Mário Braga, entre tantos outros, como Ferreira de Castro). Em 1962 (remoto ano!), ao entrar nas ficções, de um varandim de outra margem acusaram-me de mostrar maior pendor existencialista do que adesão à estética neo-realista que noutras páginas defendia. Acolhi o reparo na medida em que a eclosão do existencialismo literário ocorria entre nós ao mesmo tempo, mas isso não impediu a doação do meu espólio a este Museu, onde cabe no lugar que se vê.
Em suma, pouco tempo útil me sobrou para a criação literária de maior fôlego. Volumes de contos e crónicas são, julgo, o que pela quantidade sobressai na misturada da minha bibliografia (onde até figura um dicionário de autores). Por lá ficou, em amostra estratificada, um pouco de tudo, incluindo uns naipes de “histórias para crianças” – mais contos -, resultantes de incursão também encetada em meados dos anos ’80 que acompanhei com umas ideias ensaiadas sobre a matéria. Tudo isso foi decerto a mais “infantil” (e adulta, difícil, envolvente) “brincadeira” que pude experimentar.
Que fiz eu? Confesso que vivi, direi, tomando para mim o título da obra de Neruda que traduzi. Mas, vejamos: olha que confissão! O sonho chamou-me e pelo sonho andarei enquanto anima me restar, a exemplo de quantos temperam a vida com o seu grãozinho de loucura.
Cresci rodeado de livros e com eles (agora apenas com uns poucos escolhidos), quero continuar a viver. A viver e, felizmente, a resolver por fim uns problemas de coabitação. Livrei a casa do recheio das estantes, que o mesmo é dizer: acredito numa cultura viva e na função prestimosa das bibliotecas públicas. Que os livros, com cheiro ou sem cheiro, em papel impresso ou formato digital, cresçam, cresçam sempre e nos ajudem a crescer! [Na expo, com Erika Zavala -  do México um sinal / a brilhar em Portugal]

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-1

O texto anterior, inédito publicado pelo Museu do Neo-Realismo (V. F. de Xira) no livrinho ali referido, foi gesto com esta consequência: colocou-me perante um outro texto meu, igualmente inédito, também ali presente. O livrinho teve escassa tiragem, pelo que resolvo trazê-lo para aqui, dividido em dois posts.


Pessoas que tenho próximas sustentam que sou organizado, metódico. Repetem-me a opinião como se isso fosse um atributo raro, elogiável como a pontualidade que nos deixa à espera de quem a não tem. É certo que aprendi a caligrafar as letras na antiga escola primária escrevendo dentro das duas linhas mas cedo me habituei a ultrapassar as pautas azuis para salientar o poder das maiúsculas ou para desenhar as pernas dos pp e dos qq, letras pequenas com que se escreve “por quê”.
De facto, não me considero assim tão notadamente organizado, arrumadinho. Pensando no percurso existencial que fiz, vejo em mistura o que a norma dos percursos individuais separa com bastante nitidez. A mistura começa logo no período juvenil com a minha formação escolar: trabalhei estudando e longamente estudei, trabalhando.
Quer dizer, o trabalho foi a minha escola porque a Escola propriamente dita pouco trabalho me deu. Naquele tempo, que foi o meu tempo, aprendi fazendo e, pondo-me à prova, fazendo me fiz. Continuo a ser, evidentemente, o que sempre fui: um apagado e eterno aprendiz de tudo – do mundo, das ideias, da arte, da vida. A misturada que realmente me aconteceu na trajectória existencial com a preparação escolar e cultural, e logo depois com a literatura, o jornalismo, a participação cívica, continuou, continuou… Sou vizinho da Ria de Aveiro, gosto da caldeirada!
Para tudo o que me importava, não precisei de diplomas. Bastou-me querer e demonstrar na prática a competência real que prometia ou já possuía. Mas era o tempo, hoje incrível, em que a profissão jornalística não exigia curso ou formação escolar prévia (então inexistentes) e a criação literária era já o que continua a ser, a ilha do tesouro atreita a todas as abordagens.
Estou a ver ali na estante um volumezinho escrito por Carlos Ceia, professor universitário lisboeta, que põe o assunto na capa interrogando: “A literatura ensina-se?” Não se ensina, aprende-se.
Sobrou-me ousadia para expandir ainda mais a misturada. Transpus “a salto” diversas fronteiras de géneros consagrados, gostando de gerar híbridos onde deles sentia falta. Quem pode arriscar, por exemplo, uma definição cabal do que seja texto jornalístico ou texto literário?
A verdade é que a expressão escrita me cativou desde que me conheço. Quis experimentá-la, fazê-la toda minha para a amar. Derramei-me pelos seus diversos registos – o comentário ligeiro, o poema, a crónica, a ficção, o ensaio – para depois considerar, muito sinceramente, que estou no que escrevo. Aí me encontro. A pulsão da escrita associada à pulsão da leitura (duas ocupações solitárias, silenciosas) arredou-me de convivências festivas, camaradagens de grupo, cumplicidades. E não produzi senão migalhas, umas pequenas migalhas que, reunidas em monte, estarão longe de constituir Obra.
Quem assim se derramou, esmigalhando-se página a página, talvez desenhe um perfil. Aparecerá essa “obra” como “a sua vida” conforme a legenda da capa desta brochura sugere? Lembro neste ponto uma página de David Mourão-Ferreira (em Tópicos Recuperados, 1992, p 191) que distingue com especial agudeza, no plano dito da nossa “acção cultural”, duas “famílias” (assim Mourão-Ferreira as nomeia). Cito: “a [família] daqueles que vivem exclusivamente para a sua arte (quando não mesmo egoisticamente para a promoção ou a propaganda do que julgam ser a sua arte) e a daqueles que pelo contrário se entregam – quantas vezes com sacrifício de si próprios – ao serviço da Arte ou da Cultura em geral, no definido propósito de mais amplamente as fazerem usufruir por parte da comunidade a que também eles pertencem.”
David Mourão-Ferreira foi poeta, ficcionista, crítico literário, ensaísta, professor, além de divulgador de poesia, conferencista e, enfim, animador cultural de invulgar envergadura. Em sua homenagem, ponho aqui o trecho completo em foco: “Nem os primeiros, por via de regra, são os que se mostram mais exigentes com aquilo que fazem, nem os segundos os que menos têm para exprimir ou comunicar. Talvez possa dizer-se que uns são apenas o que são, enquanto os outros, além do que são, se impõem como homens de Cultura; e trata-se ainda, num caso e noutro, de algo que deriva e depende da estrutura moral dos indivíduos, do grau de percepção que manifestam ou não manifestam acerca das suas responsabilidades sociais – e, prioritariamente, da percepção e assunção dessas suas responsabilidades no próprio domínio da Cultura, em relação à própria Cultura.” [continua]

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Combustão humana


Estas duas palavras até podem parecer mas não são metáfora para as massas migrantes que podem fugir das devastações causadas pelas guerras do capitalismo globalista e que cruzam o Mediterrâneo já não berço, e sim, agora, cemitério da civilização. Uma crónica intitulada “Humanidade combustível” foi escrita por mim creio que em 1960 para o “Jornal de Notícias” do qual era então colaborador semanal. Porém, o regime da Censura prévia interditou a publicação e o jornal enviou-me a prova tipográfica. O texto permaneceu inédito até data recente, pois o Museu do Neo-Realismo reproduziu a prova (que guardei e depois doei, junto com outro espólio, ao Museu) no livrinho com que acompanhou a exposição documental denominada “Uma vida como obra”. Dali transcrevo os parágrafos iniciais.

“Quem pôde abeirar-se, no último Inverno, dum bom fogão de lenha crepitante e se deteve uns minutos a observar o bailado das línguas de fogo consumindo as achas, deve ter pensado que estava ali uma imagem da vida.
Com efeito, a vida é uma acha que incandesce os homens à nascença e depois, ao longo dos anos, os vai percorrendo e devorando, transformando-os em archotes ardentes. Que são os velhos senão tições de brasa morrediça no meio das cinzas? Que são os homens irrealizados, frustrados por mutilações sem remédio senão achas húmidas que jamais tiveram um calor benfazejo que as secasse?
Arder é, pois, o destino unânime de todos os homens. Existimos ardendo, consumindo a matéria que nos faz, confiando-nos à fogueira que nos habita, à vida que, afinal, servimos. Somos pasto das chamas que, empolgando-nos, nos libertam. Se há homens que se poupam à destruição, crendo ingenuamente garantir-se uma durabilidade, tais homens iludem o sentido do seu destino, traem-se de algum modo a si mesmos.
À semelhança de algumas achas que alimentam as cálidas fogueiras de salão ou de borralho rural, há homens que não “ardem” tão bem como outros. Esses não amam o fogo quanto ele revela de insano, irremediável, definitivo. Incombustíveis, o fogo da vida apenas os chamusca…
É digno de nota o facto de uma acha sozinha não arder facilmente. As achas ardem na fogueira porque fabricam e repartem calor entre si, porque se irmanizam no sacrifício capital, ajuntando-se mutuamente para guardarem no centro o potencial calorífico necessário ao atear da fogueira. Um graveto sozinho não arde porque lhe falta exactamente o concurso, a solidária adesão de outros gravetos em número capaz de fazer monte e crepitar.
Podemos aplicar este fenómeno às relações humanas. Ninguém se realiza isoladamente, eis o caso. Um homem só é sempre um homem diminuído na sua humanidade. É repartindo o seu calor fraternal que os homens dignificam a vida que é deles, mas que é de todos, enriquecendo-se termicamente”…

sábado, 15 de agosto de 2015

A parte do escriba que partiu há semanas para o Oriente era imaterial, i. e., virtual. Do Sri Lanka, antigo Ceilão, vem portador de uma pesada mas também virtual sentença: que os grandes especuladores financeiros do planeta e os governantes que lhes obedecem (e que em breve se reunirão em Paris na cimeira do clima), sejam obrigados pela opinião pública mundial a subir ao topo deste penedo a pé (não há heliporto, elevadores, apenas trilhos cavados na rocha) e a viver ali um ano exclusivamente da sua agricultura.

sábado, 11 de julho de 2015

Férias em Julho





Este ano, as férias do escriba ao serviço desta coluna arribam mais cedo. Ainda pouco entrado o Verão, o mês de Julho aparece a antecipar o de Agosto. E mais uma vez, o escriba vê ao longe as águas mansas de oceanos longínquos, onde as praias têm areais dourados quase sem rasto de pés humanos e o sol brilha num céu limpo e aberto. Mas… poderá existir ainda um lugar assim perdido e achado neste mundo revolto? A imagem anexa parece vir do Sri Lanka, antigo Ceilão, ilha que os tripulantes das caravelas portuguesas sentiam próxima pelo aroma das caneleiras que, adejando acima das ondas, lhes alvoroçava as narinas. Amigos, previnam-se, o escriba está em crer que se encontra por lá um lugar assim. Parte agora em sua busca, não sabe é quando - e como - volta.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

O vento é invisível, mas as ervas, agitadas pelo vento rasteiro, evidenciam-no.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

O que diz o Outro

Quem está lá fora merece ser ouvido. É pessoa habilitada, grande amigo da verdade e da paz com justiça, defensor dos direitos humanos. Conheço-o há longos anos e peço licença para dizer que o senhor director de conferências desta instituição bem faria se lhe permitisse vir falar, expor aqui as suas ideias.
Quem está lá fora, senhor director, acumulou muita experiência. É pessoa das mais viajadas do mundo. Observou-o de longe, pela janela, mas isso não prejudicou a observação; pelo contrário, livrou o Outro de respirar as camadas da poluição ambiente em que vivemos, tantas campanhas publicitárias, propagandas maliciosas, maquinações confusas, golpes de teatro que nos atordoam, nos escandalizam ou nos revoltam.
O que ele tem a dizer não é atendido e entendido pelas multidões que correm nas ruas mesmo sem pressa e se endividam a consumir imensos bens supérfluos, todas as novidades das telecomunicações, os famosos gadgets, que põem as multidões a dormir e a sonhar como criancinhas ao colo do Big Brother. Se aqui o não ouvirem, onde mais será? A sua mensagem está a perder-se irremediavelmente, e devo notar-lhe, senhor director, porque é importante, o Outro segue a religião da humanidade, para ele sagrada e consagrada.
Mas continua lá fora, à espera. Lamentavelmente, digo eu. Porque ele viajou tanto que sabe ver e entender as trapaças do mundo com meridiana clareza.
Note, senhor presidente, que o Outro andou pelo mundo, vendo-o a girar e a arrastar consigo ventos e nuvens que a espaços o cobrem. Da sua janela, teve o benefício de contemplar três auroras por dia e pôde seguir a devastação que extinguia imensas indústrias produtoras de bens nos países desenvolvidos, onde fazia crescer o desemprego, baixar os salários e espalhar uma estagnação contagiosa para mobilizar legiões de escravos do outro lado do mundo. Obviamente, a globalização resultava da máxima concentração da riqueza, portanto de uma desigualdade despótica, expressão acabada do imperialismo.
Os verdadeiros donos do mundo, que efectivamente mandam e querem mandar, são agora os tentáculos poderosos do polvo gigantesco que o envolvem e espremem. São os comandantes da alta finança, que especulam e se aproveitam dos Estados endividados, dos programas de austeridade, das falências, sempre a lucrar mais depressa e melhor que nunca. Servidos por um sistema de organismos internacionais, bancos, partidos e políticas neoliberais, bocejam quando lhes falam da democracia, eleições, vontade expressa por maioria, brincadeiras de crianças que eles, adultos, desdenham.
Senhor presidente, quer saber quem é o Outro? Convide-o a entrar! Verá que o conhece tão bem quanto eu.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O mercado literário

Os autores literários não prescindem hoje de uma imagem pública que os projecte como figuras mediáticas no círculo dos seus leitores. Assim, associada, emerge uma ocupação diversa (cuidar da própria imagem do autor) do seu trabalho da escrita, na medida em que esta careça daquela por necessidade de promoção. Nestas circunstâncias, um caso particular como o de Herberto Hélder parece não ter mais condições para se repetir.

Efectivamente, não basta aos autores mandarem para as livrarias obras assinaláveis. Agora precisam de fazer um esforço suplementar, sair de casa e levar em mão essas obras ainda fresquinhas ao contacto directo com os seus possíveis leitores onde quer que os encontrem. O possível renome ou a popularidade de cada autor, sem mais, de pouco valerão no mercado se ele não se faz presente, aparecendo e reaparecendo, falando e seduzindo os auditórios, pois as regras concorrenciais estão definidas: são exactamente os autores de best-sellers, ou que como tal se pretendam, que mais se afanam a promover o que publicam.
Paralelamente, cada autor tenta manter-se na ribalta, habitar o espaço mediático, ter protagonismo com nome e rosto reconhecidos no mercado como marca” de sucesso, além de ganhar prémios, distinções assinaláveis. Outrossim, vai a encontros, faz conferências, participa em colóquios e debates, dá entrevistas e, evidentemente, não falha as feiras de livros e sessões de autógrafos e lançamentos. Com tudo isto e o mais, estes autores constroem a sua imagem pública tendendo então a ser, de algum modo, public relations bem falantes e de agradável presença para vender o que escrevem.
Nestes termos, os escritores, em quaisquer das dimensões possíveis de cada caso (internacional, nacional, regional ou local), integram hoje no seu perfil umas funções de comunicadores quer tenham já a literatura como profissão ou sonhem vir a tê-la. Enfim, longe vai o (recuado, imemorial?!) tempo em que o escritor, ainda que prestigioso, vivia em tranquila reclusão, escrevendo e reescrevendo sem pressas, publicando pouco e a espaços e, se saía à rua, era ali outro transeunte quase anónimo. As técnicas do marketing, as dinâmicas do mercado literário despontavam outrora escassamente, à semelhança das profissionalizações.
Evidentemente, os autores literários de best-sellers dependem da aceitação que o mercado lhes dê. Logo, produzem para o mercado, atentos à flutuação das procuras, acatando os sinais que recebem de forma a servir as preferências dos consumos. Consequência importante: outros autores, de menor sucesso, tendem a seguir-lhes o exemplo, do que resulta a implantação nefasta de estereótipos formais capazes de empanar ou mesmo de travar a criatividade inovadora da autêntica arte literária.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Tanta “promoção” de livros

O país está a encher-se de feiras de livros, festivais literários, encontros de escritores, sessões de lançamento. Os autores em voga, mobilizados, andam de malas aviadas em corridas para autografarem os seus últimos livros, atentos aos seus próximos que conseguem filas mais compridas de leitores à espera do rabisco. E, assim girando em torno das vendas, dispensam os editores de trabalhar. 

Estará então a eclodir em Portugal um radioso período de criatividade literária tão extraordinária e feliz ao ponto de envolver não apenas os próprios autores mas também, como que por milagre, os seus leitores, agora, por fim, de cultura e educação estética mais refinadas? Seria bom, muito bom, se fosse verdade. Mas, atenção, porque se pronuncia António Guerreiro contra tanta “promoção” das leituras e vendas em curso? 
Guerreiro até vai mais longe. Na última crónica inserida na sua coluna (“Estação meteorológica”, rev. Ípsilon, “Público”, 12-06-15), expressivamente titulada “Menos literatura, por favor”, escreve: “Este discurso da ‘promoção’ da literatura e do livro está certamente cheio de boas intenções, mas em nada se distingue do departamento comercial de uma grande editora.” Continua: “Se as multidões que acorrem aos festivais literários e outras manifestações onde se exalta o valor de certos livros e da literatura criassem uma verdadeira esfera pública literária, a grande república das letras estaria resplandecente.” 
Leio habitualmente a coluna de António Guerreiro com interesse e agora com franco aplauso pelo que vem em seguida: “Ora, o que se passa é exactamente o contrário: dando meios à mediocridade cultural, a única coisa que se consegue é amplificar a mediocridade. E o público (…) sente-se legitimado pela convicção de que se ocupa de problemas importantes e aparentemente sofisticados.” 
Saúdo com especial apreço estas afirmações (suscitadas por opinião de quem está a responder pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas) e que levam Guerreiro a propor a “despromoção” de tanto festival literário. São ainda escassas, parece-me, atitudes com este rasgo e clarividência, apesar de continuar em expansão a banalização dos livros que sufoca o mercado, a indústria dos best-sellers e da designada literatura light radicada no seu artesanato contador de histórias quando já não restam histórias novas para contar sem que haja coragem e arte para falar da vida real no mundo de hoje. Por mim, lembro que em 1994, quando os efeitos nefastos da cultura de massas se evidenciavam, adverti num “manifesto” as consequências previsíveis do que iria atingir a Literatura que mais nos interessa… e não me enganei. [Foto: flor de batata: originária da América, de onde a trouxeram os navegadores; os povos europeus admiraram longo tempo a garridice vegetal da planta, desaproveitando o valor nutricional do tubérculo, o “conteúdo”.]

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O poder da palavra impressa

Uma amiga folheava há dias o caderno dos meus primeiros recortes das crónicas e artigos que começava a publicar em jornais. Comigo ao lado, insistia em me convencer de que aqueles escritos tinham interesse, ainda eram actuais, quando eu via amarelecidos e ressequidos os velhos papéis. Ela parou então numa página e leu em voz alta o primeiro parágrafo.
Eu aplaudia ali o que a prática desportiva tinha de salutar advertindo porém que no futebol não temos resumido todo o Desporto. Aliás, o futebol não pode ser considerado como espectáculo por multidões sentadas vendo a correr no campo os seus reais praticantes, jogadores profissionais. Logo, sobram espectadores e escasseiam praticantes das diversas modalidades desportivas, amadores autênticos capazes de experimentar o prazer do jogo.
“Isto é perfeitamente actual ou não?” - exclamou, vitoriosa, a minha leitora. Abanei a cabeça sem botar palavra. Aquela prezada amiga tinha razão mas só eu podia medir quanta razão lhe faltava!
Realmente, defendo tais ideias e opiniões desde sempre, ou seja, desde que entrei a publicar na imprensa. Ora, quando escrevi os textos guardados naquele primeiro caderno ia nos 21 ou 22 anos de idade e hoje estou nos 85, à distância de uns 63 anos…
Posso medir toda a distância contida nestes anos. Em 1951-52, Lisboa tinha o Estádio Nacional inaugurado em 1944, no “Dia da Raça” salazarista, e o futebol merecia uma singela meia página à segunda-feira nos diários (ainda não tabloides) e uma única foto. Hoje é como se sabe e se vê, uma farturinha de estádios e de futebois, de estridentes “academias”, treinadores, especta-comentadores.
O 25 de Abril permitiu ao país ter, conforme entenderam as inteligências da época, “finalmente, futebol com liberdade” e depois, já com o país bem abastecido de estádios a mais, um jornal dito de referência ergueu em parangonas os heróis dos estádios à categoria de “deuses”. É verdade, opinar que o futebol, assim como outras modalidades desportivas, não deve servir como espectáculo, até parece ter hoje bastante mais actualidade do que há sessenta anos. Mas, nesse caso, levanta-se a questão: que valor tem, ou pode ter, a palavra impressa?
Aparentemente, nenhum. O texto permaneceu “actual” ao revelar a sua provada inutilidade perante factos concretizados, o mundo a girar. Neste caso, resta-nos desejar que os “deuses” do futebol, possuídos por uma santíssima determinação, decidam entrar em greve geral por tempo indeterminado para resgatar os cidadãos da passividade e acabar com tão pobre cenário.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Dinheiro, a pior droga

“O dinheiro é a pior droga do mundo”, disse o homem. Sentado ao balcão, na fila dos bancos altos, parecia absorto, de olhar mergulhado no copo que bebia. Murmurou apenas, como quem medita e, perante a evidência, não pode mais e desabafa, mas eu, sentado num flanco, escutei-o porque o televisor no instante se calou. 

“É pior do que a coca ou de qualquer outra, o dinheiro cria uma dependência muito maior”, considerou o homem. Observei-o de soslaio, intrigado, pois reconhecia naquelas frases uma ideia já experimentada por mim em conversas ocasionais mas nunca exposta por escrito. E via nascer ali a ideia na cabeça de um desconhecido em aturada congeminação! 
Tive que falar e conceder alguma concordância para abrir o diálogo com o homem. A aproximação, sem dúvida, interessava-me. Queria trocar umas frases, mas a sua conversa, conforme já esperava, começou por ser rara e banal para logo se tornar soturna e densa como pedra perdida no meio do trânsito em noite sem iluminação. 
Evidentemente, continuou a desabafar: atacou com ásperas censuras o valor quase supremo que hoje tem a riqueza material, ou a sua mera aparência, o triunfo fácil e rápido a obter em qualquer competição. O “sonho americano” é agora também de tantos europeus que ambicionam ganhar rapidamente o primeiro milhão para, a seguir, trepar aos saltos pela escada de outros milhões. Veja, dizia-me o homem, a quantidade obscena de novos milionários a medrar por aí, os casos de corrupção descobertos no topo das elites que mandam e que possuem. 
As novas gerações foram educadas pelo espectáculo do futebol, a grande escola que ensina que todo o jogo é para ganhar; ganhar a qualquer custo durante os noventa minutos se não puder ser disputado mais rápido. Uma veloz erosão moral varreu o idealismo dos valores éticos e deu lugar ao materialismo dos interesses concretos egoístas. Honestidade, honra, carácter, recta consciência, vergonha na cara, pudor, tudo isso, tal como boa educação, dignidade humana, princípios cívicos, o que valem hoje? 
Ora, enquanto esta crise lança no desespero tantas famílias arruinadas pela concentração da riqueza em poucas mãos e que é a outra face da austeridade que nos impõem, o que acontece? A dialéctica natural das coisas promove uma justiça invisível mas certeira que castiga multimilionários e novos milionários à pena contida na sua fortuna: “ter” tudo o que têm, isto é, imensamente mais do que precisam ou irão precisar para viver, nunca lhes chega, pede sempre mais, e obriga-os a cuidar sem descanso do que têm… Nem dormem, receando o descalabro, serem engolidos por um tubarão maior. 
Não desfeiteei o homem perguntando-lhe se estava com pena dos capitalistas, indaguei somente onde aprendia tais ideias. Disse-me: “A ler os livros do mundo”. Adivinhei logo: mas não a ler no mundo dos livros, claro!

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Imagem da globalização


Um amigo deu-me a ver uma colecção de fotografias de navio porta-contentores chinês que, se não é o maior do mundo, pelo menos será um dos mais gigantescos. A torre de comando excede a altura de dez pisos, mede quase quatrocentos metros de comprimento e é tão largo que não passa pelos canais do Suez e do Panamá. Mas, navegando somente no alto mar, corre vinte vezes mais rápido do que a concorrência, o que lhe permite chegar da China à Califórnia em quatro dias.

O olho leigo embasbaca perante a dimensão colossal do bloco do motor ou da cambota, o diâmetro dos onze cilindros em linha, a força de 110 mil cavalos na hélice entre outras particularidades técnicas, e talvez avalie o peso do investimento, algo como 145 milhões de dólares postos a navegar. Em foco principal fica a carga que o adamastor oceânico pode transportar: quinze mil contentores! Mas, quando o assunto já se esvai para ceder lugar a outro, ouve-se um clique… e não é de máquina fotográfica.
O olho leigo que apreciou o adamastor detém-se a reflectir e então aparece, sobreposta, uma imagem da globalização. Nos seus quinze mil contentores, o cargueiro leva não apenas a mão-de-obra chinesa barata e sem direitos; carrega também os bens de consumo que o Império antes produzia e exportava (passou a importar e não se importa). E quando as onze gruas, quatro dias depois, puserem em terra californiana as mercadorias, bem podem os desempregados queixar-se por lá do desemprego e os empregados trabalharem mais por menores salários.
De regresso à China, o cargueiro leva encomendas urgentes a atender e os contentores atafulhados de rimas imensas de papel, ditas notas de pagamento. Foram produzidas igualmente em quatro dias e valem até que num qualquer canto do planeta algum desesperado tenha o assomo de gritar que o rei vai nu e de pedir a quem de direito que o vista decentemente. Entretanto, a potência imperial espalha oceanos de papel impresso, atolando-se em buracos negros de dívida impagável…
O vaivém pendular do navio porta-contentores desenha no oceano a imagem da globalização, que não consiste apenas na liberdade planetária exigida e obtida pelos movimentos especulativos da alta finança e toda a clientela dos paraísos fiscais. Lembra também uma velha sentença segundo a qual “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos”, ou seja, em linguagem actual, que tudo o que interessa à alta finança internacional interessa à nação. Fiquem, pois, os povos a suportar os défices, os programas da austeridade, do empobrecimento generalizado, da estagnação económica e, a seu tempo, o brinde extremo: a perda da civilização que temos como nossa calcada pelos avanços da barbárie.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Na barafunda ortográfica


Consumou-se o facto: sozinho, Portugal nada em seco nas águas estagnadas do Acordo Ortográfico assinado no Rio de Janeiro em 1990. Sozinho porque nenhum outro dos países lusófonos o ratificou até hoje ou parece interessado na sua aplicação. Mas cá no rectângulo ibérico, “orgulhosamente a sós” como se sabe, o AO90 passou a ser artigo de lei.
A situação consumou a barafunda. Nenhum país lusófono segue a ortografia acordada ou uma mesma ortografia com poucas e pequenas variantes. Vinte e cinco anos depois, o Acordo descambou em desacordo, o tratado (que realmente a ninguém servia), foi destratado.
O governo, que desgoverna Portugal, pode ter muito jeito para lidar com as estratégias do neoliberalismo e os negócios escuros das privatizações dos bens nacionais lucrativos cobiçados por especuladores internacionais. Pode até pretender-se convincente a evangelizar o povo para o empobrecimento. Mas é completa a sua falta de jeito para avaliar simplesmente o valor patrimonial principalíssimo da nossa língua materna.
Assim chegámos à situação actual, tão incomodativa, desagradável e acabrunhante, que põe na boca expressões de repúdio e desconforto, contundentes e feias que a pessoa cordata tem de evitar. É deprimente, canhestra e mesmo algo idiota. Deixou o país encurralado na caricata figura em que se vê.
Não se entende à primeira, nem talvez à segunda, que uma instituição idónea como a Academia das Ciências continue a assistir aos acontecimentos sem esboçar intervenção correctiva rápida e eficaz. A “nova ortografia” das consoantes mudas não unificou nada, serviu apenas para criar divisões no ambiente nacional e agravar a confusão de quem escreve. Urge resolver a situação, encontrar uma saída, de modo a libertar as escolas, as editoras de jornais e livros, enfim, toda a comunicação social da sujeição à ortografia que a lei estabeleceu definitivamente como a única legal.
O lado dos críticos que se opunham ao AO90 de facto não tem parado de crescer. Ganham força as evidências do que se passa no terreno, a barafunda ortográfica que se estabeleceu. É preciso que esta questão, de relevo verdadeiramente nacional, ganhe sem delongas espaço no parlamento e, também ali, as posições e decisões que a emergência da situação aconselhe.