segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Manuel Simões: Poesia reunida

O percurso de um poeta como este não justificava apenas o que sobremodo exigia: a reunião e reedição dos livros que publicou. De facto, este autor encetou o seu percurso em 1971, portanto há mais de 45 anos. Logo, avultava a necessidade de estabelecer, digamos “em presença”, uma visão global das entregas poéticas que o autor veio fazendo a espaços, década após década.
Manuel Simões proporciona agora aos leitores essa visão de conjunto com O Fluir do Tempo – Poesia reunida (Lisboa, Novembro, 2015: Edições Colibri, 258 pp). Uma espécie de balanço e de retrospectiva que vem a público em volume muito cuidado e estimável a que, por sinal, não faltam motivos para resultar surpreendente. E a surpresa começa porque compagina em sucessão os diversos livros publicados pelo autor.
A voz do poeta, contida em cada entrega, aparece aqui organizada num corpus que permite e pede mesmo uma reavaliação de cada uma dessas partes integrada no todo finalmente constituído. Quer dizer, Manuel Simões recolhe neste volume Crónica Breve os seus outros cinco títulos posteriores (um foi editado em Veneza), incluindo também poemas dispersos e inéditos. Não falta mesmo ao volume um prefácio, de Ettore Finazzi-Agró e um posfácio, póstumo, de Sílvio Castro.
A surpresa maior, para o leitor, está em ter finalmente esta produção poética global nas mãos, convidando-o a sentir inteira a voz que se lhe oferecia como que repartida pedaço a pedaço e, assim, tão contida como se algo a velasse. “Poeta de um Eu que atravessa o Nós mas também poeta da poesia – escreve Finazzi-Agró (pp 11-12) – Manuel Simões interpreta a escrita como incisão de uma instância que é, ao mesmo tempo, individual e colectiva; como presença de uma Voz que reflecte sobre si mesma e sobre a sua origem, ecoando no silêncio que a rodeia e solicitando esse silêncio a exprimir a presença do ausente.” 
Por seu lado, Sílvio Castro situa Simões numa “tradição da modernidade” e em particular na neo-vanguarda que, no quadro político português, teve “necessidade de alargar-se à poética do neo-realismo, já então em posse da própria estabilidade criadora” (pp 241-2). No seu posfácio, Castro sublinha a relevância expressa de temas como lugares e viagem, e exílio, sem dúvida reflectidos nos longos anos (1971-2003) que o poeta passou na Itália a ensinar em diversas universidades. Será de lembrar, para concluir esta breve recensão, que Manuel Simões (ou Manuel G. Simões) nasceu em Ferreira do Zêzere em 1933 e, além de poeta, tem abundante obra de ensaísta e tradutor. [Imagens: capa do livro e foto do autor (à direita) com amigos.]

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Vicente Campinas: evocação


Vendo-o, ninguém diria quem estava ali. Vulto pequeno, de aparência vulgar, António Vicente Campinas abrigava convicções firmes, energia combativa e sonho inesgotáveis. Republicano e democrata com sensibilidade social, identificou-se com as causas operárias e populares (foi, desde cedo, militante comunista) num sentido que o aproximou e integrou na corrente neo-realista expressa em literatura e cinema.
Algarvio, Vicente Campinas publicou mais de trinta obras, de poesia, ficção (conto e romance) e prosas diversas. Começou em 1938, com Aguarelas, poesia, e avançou até 1994, com Guardador de Estrelas, antologia. O seu poema “Cantar alentejano”, em memória de Catarina Eufémia, ficou bastante famoso com música de Zeca Afonso (álbum “Cantigas de Maio”, 1971).
Muitos dos seus livros saíram em edições do próprio autor (alguns sob pseudónimo) e alguns tiveram-me como “editor”. Esta singularidade pede explicação. Vicente Campinas nasceu em Vila Nova da Cancela, concelho de Vila Real de Santo António, em 28-12-1910, e morreu em Lisboa em 3-11-1998, de modo que a vida vivida entre estes anos, quase 88, nada teve de fácil…
Abriu caminho a pulso. Foi tipógrafo, guarda-livros num escritório, livreiro. Jovem autodidacta, as suas ideias políticas atraíram a repressão do regime de Salazar então a implantar-se. Sofreu prisões, resistiu mas teve que exilar-se – “saltou” para Paris.
Contactou-me nessa altura, sem nos conhecermos pessoalmente, para me pedir um favor: receber em minha casa umas quantas caixas com livros da sua biblioteca que depois lhe enviaria, em pequenos pacotes, pelo correio normal para o seu endereço parisiense. Assim fiz e, viva!, não houve extravios. Campinas sentiu-se grato (deixara de trabalhar na dureza do bâtiment, arranjara por fim lugar de contabilista, já tinha consigo sua mulher) e convidou-me a ir visitá-lo e… conhecê-lo no aeroporto.
Ele sabia da colaboração que, como “parteiro” de edições eu dava à Nova Realidade, de Tomar, e pediu-me para o ajudar de tal jeito. Arranjei tipografia e orçamentos, fiz as revisões de cada livro, recebia a tiragem pretendida e despachava-a para o endereço indicado e pagava a factura com o dinheiro que me mandava. O caso repetiu-se, que me lembre, desde Proa ao Vento, 1966, Preia-mar, 1969, Raiz de Serenidade e Reencontro, 1971, entre outros.
Campinas era autor compulsivo. Colaborou intensamente na imprensa, fundou o “Jornal do Cinema” e o “Foz do Guadiana”. E apenas quando regressou do exílio, após o 25 de Abril, pude verificar que o recém-chegado era militante comunista.
O centenário do seu nascimento foi comemorado em Vila Real de Santo António em 2010. Neste município, Campinas também é patrono da biblioteca municipal e tem o nome numa rua. É com homens desta têmpera que existe cultura viva!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Evocação: Lília da Fonseca


Gostaria de repegar no meu álbum de afeições particulares. Por diversos motivos, a vida vivida aproximou-me de pessoas estimáveis que me apraz recordar agora que pouco espaço nos resta do que anda por aí consagrado aos heróis mediáticos do tempo efémero. Recordo-as já desaparecidas, vitimadas pelo cutelo da dupla morte que nem tento esconjurar.


Lília da Fonseca é uma dessas pessoas amigas. Nasceu em Benguela, Angola, em 1916 e morou prolongadamente em Lisboa, onde faleceu em 1991. Maria Lígia Valente da Fonseca Severino, seu nome civil, pouco conhecido foi mas o nome literário que adoptou chegou a ser, sobretudo na segunda metade do século XX, bastante apreciado e querido pelos leitores de jornais, revistas e livros em Angola, Moçambique e Portugal. Destacou-se ainda por ter sido a primeira mulher que teve a coragem de concorrer às eleições legislativas para a Assembleia Nacional, em 1957, como candidata pela Oposição Democrática.
Lília da Fonseca foi jornalista (começou em “A Província de Angola”) e escritora. Fundou “Jornal Magazine da Mulher” (1950-56), em Lisboa, que dirigiu, e colaborou em numerosas publicações, como “Século Ilustrado”, “Mundo Português” e “Seara Nova”. A qualidade geral da sua intervenção cívica evidenciou-a como palestrante activa. Na literatura estreou-se com o romance Panguila, 1944, a que se seguiu Poemas da Hora Presente, 1958, Filha de Branco, contos, 1960, e, em 1961, O Relógio Parado, romance que o regime da ditadura proibiu mas que a autora reeditou após a democratização do país.
Porém, foi como autora de literatura infanto-juvenil que Lília da Fonseca especialmente se distinguiu. Publicou mais de trinta títulos, conquistou o prémio João de Deus em 1960 e em 1963, e a colecção “Carrocel”, que dirigiu, teve o apoio da Fundação C. Gulbenkian. Fundou ainda o Teatro de Branca Flor, em 1962, de fantoches, com peças e bonecos também de sua autoria.
Em Lília encontrei a vontade que quer melhorar as misérias do mundo, vontade utópica, evidentemente (e não será a utopia alimentada por alguma poesia?), mas pulsão imperecível. Com ela, com a sua amizade e com os seus livros entrei na aventura que me deixou a experimentar escrever para crianças. O caminho faz-se a andar e é pelo sonho que vamos...

Todavia, anotar o perfil da vida e obra de Lígia numas poucas linhas de extensão limitada é problemático e frustrante. O essencial fica talvez sumariado. A faltar ficará o restante, o que com ela desapareceu. [Foto: Lília da Fonseca no Porto (1970?).]

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Estamos na 3ª GG ?

guerra.jpgE entraremos nela de manso, tão devagarinho que pouca atenção suscita? Apenas uns fulanos tidos como lunáticos profetas da desgraça insistem que vem aí a Terceira Grande Guerra, mas não assustam sequer as criancinhas. Porém, de repente, milhões de refugiados (quando não se afogavam) cruzavam o Mediterrâneo e aportavam à Europa do tratado de Schengen e obrigavam o velho continente adormecido a acordar.
Realmente, vendo bem, havia lá longe uns fogos esparsos, a crepitar aqui e ali, onde cheirava a petróleo. Afinal, coisa pouca (apesar de envolver a Arábia Saudita e a Turquia, aliados firmes dos EUA). Até que o papa Francisco, apontando para a Síria, advertiu que a guerra agora estava a fazer-se aos pedaços.
Ninguém sabe nada desta guerra, apenas que já começou, e ainda menos que nada de quanto tempo vai durar e como irá terminar. A Segunda durou uns seis anos (1939-45) e, além das destruições materiais, de inenarráveis sofrimentos, ceifou uns 50 milhões de vidas. Mas pudemos descansar - prometia ser a última!
Todavia, as despesas militares mundiais têm vindo a aumentar desde 1998, atingindo já uns 45% apesar do fim anunciado da guerra fria. Segundo a ong SIPRI, de Estocolmo, a NATO continua no topo da despesa mundial militar, representando dois terços. Apenas 15 países gastam 80% da despesa militar mundial: EUA, China, Reino Unido, França, Rússia, Alemanha e Japão entre os oito restantes. Entretanto Washington anunciou há dias um aumento considerável da presença militar EUA nos países europeus que rodeiam a Rússia, de modo que o orçamento do Pentágono para 2017 vai crescer ainda mais.
Esta rematada loucura de tamanha corrida às armas é sustentada pelos contribuintes de cada país (e, por sinal, num período de acentuado recuo de crescimento económico geral, ou mesmo de estagnação, que parece atravessar o mundo inteiro). Tanta loucura é possível porque se processa sobre uma manta de amorfismo das massas passivas, desligadas da política e da participação cívica, que os lóbis dos fabricantes de armamento, pressionando os governantes, aproveitam. É esse o grande negócio do século XXI, mais apetitoso do que fabricar remédios ou traficar drogas, sexo e etc.
Evidentemente, ninguém deseja a guerra, mas países da Europa já a declaram como “guerra ao terrorismo” (de quem, contra quem?) sem disposição para reconhecerem o problema dos refugiados. Contemos nós os milhões de sírios, a somar aos milhões de palestinianos, afegãos, iraquianos e os tunisinos, líbios e etc. do magrebe que fogem das bombas.

Estamos realmente metidos noutra grande guerra? A Terceira? E onde soam uns sonoros e veementes clamores em defesa da Paz, pelo menos alguns, que não se fazem ouvir?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Um futuro sem utopia

abutre.jpg
As riquezas dos povos e das nações acumulam-se mais e mais em cada vez menos mãos. Logo, estas linhas, à entrada, devem recordar ao leitor: “Um por cento da população mundial possui 99% da riqueza do planeta, mas apenas uma décima parte do um por cento é que nele manda realmente.” Consequência: os programas de austeridade impostos aos países mais débeis mostram às claras o que antes escondiam, a voragem crescente da alta finança mundial que leva à falência bancos e Estados, pondo a abarrotar os paraísos fiscais.

A alta finança carecia de uma nova via de investimento para escoar tão gigantesca concentração da riqueza (e disso terão falado os participantes do Fórum de Davos). Essa nova via já aparece: aponta para a financeirização da agricultura. Grandes multinacionais estão a comprar extensíssimos terrenos da melhor produtividade em diversos países “acessíveis” para os dedicarem à agricultura intensiva que seja a mais lucrativa.
Por este caminho, a chamada industrialização da agricultura promete avançar até se tornar global. Mas os investimentos da alta finança mundial na produção agrícola em tão larguíssima escala tornam-se inquietantes e mesmo ameaçadores para a relativa estabilidade que o sistema da alimentação da população do planeta tem tido para funcionar. Certamente, vamos todos entrar num período de convulsão.
Vai generalizar-se a produção de alimentos com utilização dos OGM, os populares transgénicos. Por outro lado, as culturas intensivas irão estender-se por áreas de enorme vastidão com solos propícios. Países e regiões serão votados à monocultura.
Isso terá reflexos graves no ambiente e na biodiversidade, num ambiente já comprometido com as mudanças climáticas. Mas a principal ameaça consistirá sem dúvida na concentração da produção mundial dos alimentos – a propriedade dos solos e dos meios produtivos – em poucas mãos… sem nome nem rosto. Será fácil, então impor quantidades, subidas de preços, condições.
Ora a chamada grande distribuição (a rede dos hipermercados), muito rendosa, está em poder do grande capital. Percebe-se o perigo que está à espreita: a alta finança internacional pode, se quiser, adquirir as redes da grande distribuição e ficar na posse do circuito completo da produção-comercialização. Mas nem precisa de tanto para mandar.
Em foco estarão os consumidores concentrados nas cidades. Neste sentido, calcula-se que em 2025 uns 65% da população mundial estejam a viver em zonas urbanas. Esta população ficará exposta ao novo perigo - a rendição pela fome.
É um futuro sem utopia. Quer dizer, sem localização específica. Ai de nós, pode querer engolir o planeta inteiro!