sábado, 29 de dezembro de 2012

O direito à pensão

Tenho um amigo a ferver de indignação, pronto a explodir em revolta acesa. Tal como a tantos outros comeram-lhe, além dos subsídios, um pedaço da sua pensão. E, oh espanto em cima de espanto!, preparam-se para continuar a comer com imenso à vontade e declarada desfaçatez.
O percurso existencial e profissional daquele amigo tem alguma semelhança com o meu (jornalismo, literatura, livros), daí o confronto que ele faz dos nossos casos. Talvez procure consolação mas termina cada conversa a espirrar desespero. É mais novo, nasceu uma dezena de anos depois...
Evidentemente, toda a pessoa de boa fé reconhece sem hesitar o direito que nos assiste à indignação e mesmo à revolta. Estamos a ser espoliados - ilegalmente, imoralmente - de uma parte da pensão, palavra esta cuja semântica, neste caso, requer explicitação para lhe realçar o significado: pensão é renda vitalícia, foro, encargo, ónus, pois o vocábulo deriva de pensione = «pagamento». É, portanto, um direito essencial para o trabalhador usufruir quando as forças o abandonam e chega ao crepúsculo da vida.
Pagou esse direito mês a mês, ano a ano, sem regatear e por fim o receber tão proporcional quanto o pagou. Mas até neste ponto o meu amigo se encrespa, lembrando o período que dedicou a traduzir livros para editoras (antes do 25 de Abril) em que pagou Imposto Profissional sem usufruir da mínima contrapartida. E lembra bem: eu e outros tradutores pagámos o imposto, abrangidos por equiparação a profissão liberal.
Quer isto dizer - clama e reclama o meu amigo - que pagámos bem pagas as nossas reformas, assim negando o que afirmou o tagarela governante. O Estado não nos dá nada que não tenhamos entregado confiadamente, por imposição da lei, à sua guarda, assumindo connosco uma dívida... de honra. E o Estado é a tal «pessoa de bem», ou não é?
Parece que o governo, administrador do Estado, tem opinião diversa e avisa sem descanso que a Caixa Nacional de Pensões vai falir. Ouvindo-o, o meu amigo explode. Aos berros, aponta uma lista de factos como se para mim fossem novos, como se eu ignorasse os saques e outros desmandos que têm comido o bolo amassado com o suor dos descontos obrigatórios, isto é, como se eu não tivesse aturado a ditadura, vivido o processo da democratização e esteja só agora a aturar uns rapazinhos saídos da catequese neoliberal... 

sábado, 22 de dezembro de 2012

No país das cantigas

Alguém deve pensar que o povo está a ter o que quer em medo e repressão. Engana-se, mas, no seu tolo contentamento, não o admite. Então este país em crise fica a rever-se outra vez, como num espelho baço, na metáfora criada por um rançoso filme dos anos '50.
Portugal torna a ser um «pátio das cantigas», pois se foi enchendo de música, muita música, para alegrar todos os gostos à medida que, por outro lado, se foi enchendo de depressão e desespero, desemprego e baixos salários, raiva e opressão. Música, a ligeira, mais abundante, ou a outra, dita culta, são cultura apreciável, é verdade. Mas a dificuldade talvez seja já a de ouvi-la, tanta é a que se espalha pelos quatro cantos da agitação sem conseguir distrair ou acalmar as dores dos brutais apertos de cinto.
Não há dúvida, porque é facto evidenciado, o comércio da música gravada caiu a pique. Os autores queixam-se da pirataria que a Internet permite, embora permita também imensas cópias legais gratuitas entre outras pagas. Alterada pela generalização do formato digital, a situação atingiu duramente editores e sociedades de autores, que reclamaram contra a liberdade na Net reagindo contra a «liberdade da pirataria» (duas questões distintas, julgo eu).
Mas, neste tempo de terríveis carências, é música embaladora o que mais abunda. As rádios debitam-na, torrencial, e os diversos aparelhos de reprodução portátil em uso levam-na para todo o lado. Somando os festivais, não é pequena a romaria, mas falta ainda agregar qualquer coisa.
Temos, estrategicamente semeados pelo país, uma apreciável quantidade de antigos cine-teatros que foram adquiridos pelos municípios (lembre-se, com subsídios europeus tão generosos como os que serviram para construir isto e paralisar aquilo - a agricultura, as pescas, a produção nacional de bens de consumo) e transformados em modernos auditórios onde realizam concertos bandas nacionais e estrangeiras em itinerância. E temos a jóia da coroa, a Casa da Música, a funcionar no Porto, com subvenção anual do Orçamento de dez milhões, agora reduzido apenas a sete, imagine-se o revés musical!
Todavia, o povo dispõe-se a abrir a boca cada vez menos para cantar modas de embalar meninos. Prefere gritar, de goela aberta, os seus protestos pelas avenidas, erguendo bandeiras vermelhas e negras e exibindo palavras de ordem em faixas que estendem de lado a lado. Já não vai em cantigas.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Um discurso na canção

Foi há um monte de anos tão farto que até nos permite apreciar o caso percebendo nenhuma mudança histórica apesar das aparências. Estou a lembrar 1961, ano em que escrevi uma nota em página cultural de semanário de Águeda sobre as letras das canções para lamentar a fraca categoria poética de muitas das que andavam em voga. O assunto surpreendeu mas, como se desejava, despertou interesse.
A surpresa e o interesse resultavam da quase nula atenção que as pessoas davam às palavras que ouviam cantar ou cantavam com gosto. Embaladas pela música, distraíam-se do resto. Porém, nesse «resto» pode estar o gato atrevido a miar com o rabo de fora...
Realmente, é com base na sonoridade das palavras que começa muitas vezes a articular-se a melodia, como acontece de forma mais reconhecível quando a letra é anterior à canção. As palavras não têm apenas conteúdo melódico, essa «coloração» especial que o compositor transpõe para as notas que inscreve no pentagrama. Possuem também o seu ritmo próprio, de maneira que numa canção perfeita tudo se harmoniza: as palavras e a melodia que as canta de acordo com o ritmo que melhor as diz.
Mas nem todas as canções que andam no ar são perfeitas, nem quem as ouve - outrora como hoje - lhes dá a devida atenção. Esquecem que, inoculadas nessas letras (aparentemente inofensivas), podem ir mensagens ideológicas um tanto subliminares e, nessa medida, invasivas. Desejável é, sem dúvida, que um belo poema surja «vestido» com uma inspirada composição para nos agradar e ficar na outiva se não nos puser desde logo a cantarolar.
Todavia, as modas e os ventos sopram pouco nesta direção, confundindo tristemente duas épocas que deviam permanecer contrastadas (o ambiente da ditadura e o da atualidade). o que mais anda no ar não prima pelo bom gosto qualificador. Certas letras parecem inventadas em cima do joelho por principiantes, não por poetas experientes, conhecedores do fenómeno poético e do gosto literário bem formado.
Evidentemente, a melodia que apareça a revestir banalidades surradas, pacóvias e popularunchas de tais letras sucumbirá à mesma banalidade, repetindo uns acordes caçados aqui e ali para compor um tema novo-velho igualmente para esquecer. Ai que saudades temos de autores como Zeca Afonso, Ary dos Santos e tantos outros que refulgiram com o dealbar da democratização! Paro aqui para, em homenagem, os recordar.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Palestina desaparece esmagada pelo expansionismo israelita sem consideração pelo Acordo de Oslo, de 1967.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Dizemos que o rei vai nu

A opinião expressa dos portugueses mostra-se nestes dias arrumada em dois campos bem contrastados. Um recusa a «refundação do Estado» proposta pelo governo ultra-neoliberal, rejeitando com indignação e mesmo revolta as políticas de desgraça nacional; o outro campo apoia a prossecução das políticas do governo em nome de uma pretensa «estabilidade» que de estável nada tem, ou seja, apoia a continuação da crise e o aumento imparável da dívida soberana conforme a troika impõe. Entre os dois campos de opinião deve achar-se a velha «maioria silenciosa», a tal que ninguém sabe ao certo onde está porque não se manifesta.
De facto, o povo começou a aperceber-se deveras da verdadeira situação. Generaliza-se portanto a percepção de que o sistema capitalista mudou em geral e que mudou também o comportamento de governos ditos democráticos. Servem agora não os seus eleitores e sim a máxima concentração do poder financeiro, expressão de imperialismo.
Esses governantes, com o seu alegado combate ao défice e mais e mais e mais programas de austeridade (tão bons cristãos que eles são!) estão alegremente a pôr a rabiar de fome e a vasculhar nos contentores do lixo milhões de pessoas no país. Querem obrigá-las a aceitar a miséria, ou a miséria do salário mínimo nacional. Em vez de civilização, promovem a barbárie para agradar aos senhores das terras e dos céus sentados nos tronos dos seus tantos biliões e triliões - é preciso juntar forças e varrer do poder os partidos que há 35 anos o corrompem para começar uma vida nova em novo caminho.
Clamores enérgicos ressoaram por ruas, praças e avenidas a ferver de indignação, ali onde as massas populares se encontram, reconhecem e solidarizam. Os sonoros protestos do povo atroaram os ares e chamaram para a rua quem ainda dormia em casa diante do televisor. Uma interrogação salta agora: quem apoia hoje essas políticas de desgraça nacional?
Apenas os governantes, os dirigentes dos partidos coligados, alguns dos seus adeptos ferrenhos ou ceguetas e poucos mais. Aparentemente, só nesta minoria o governo encontra apoiantes (excluída a «maioria silenciosa», claro). Este cenário traz à lembrança a história do menino que aponta e diz que o rei vai nu.
Quem diz o rei diz o governo e quem diz o menino diz toda a gente capaz de soltar o grito que restabelece a verdade dos factos. Os cortesãos do rei, interesseiros, suportam-lhe as mentiras até que a gente descomprometida (e agredida) no caso grite «basta!». É esta a límpida moralidade da história... [Imagem: clique para ampliar.]

sábado, 1 de dezembro de 2012

Quem luta pela causa

A causa é humana e é universal, incontestavelmente. Consiste em lutar com a máxima entrega e a maior coragem pela democracia e o socialismo, aspirações as mais fundas e ardentes que percorrem pulsando no coração de sucessivas gerações. A legenda «Liberdade, Igualdade, Fraternidade», bandeira da Revolução Francesa, enuncia essas mesmas aspirações latentes e sempre postergadas.
São aspirações irreprimíveis. Percorrem os séculos da história do mundo até aos nossos dias, sulcando-os de luminosas lutas, vitórias e derrotas num rasto imenso de sangue e sofrimento.  Nesse esplendoroso espelho é que a humanidade pode contemplar-se em retrato inteiro, de corpo e alma, sabendo que democracia e socialismo são as duas margens de um único caminho, o da emancipação em liberdade.
São, bem entendido, aspirações inesgotáveis como a esperança que povoa os sonhos dos povos humilhados e ofendidos. E são inesgotáveis porque assim são as lutas, travadas no terreno com vista ao melhor futuro coletivo, que atribuem o conteúdo real, mais ou menos largo, que tem ou pode ter a democracia ou o socialismo. Lembra-o com oportunidade o livro agora publicado Os Revolucionários (edição Anáfora, Lisboa, 424 pp).
O autor, escritor Manuel de Seabra, dedica a obra a Jacques Le Puil, Leonardo Freitas e Vimala Devi. Em nota, Leonardo Freitas (quem o não recorda à frente da Editorial Escritor?) regista o acrescento posterior, nesta obra, de três «valorosos militantes da luta por uma sociedade menos selvagem»: Manuel Pedro, Conceição Matos e António Gervásio, com retratos na capa. O leitor encontra nestas páginas uma vasta galeria de figuras exemplares.
São cerca de duzentas as figuras resenhadas em breves biografias, desde 133 antes da nossa era (com os Gracos, da primeira reforma agrária) até à atualidade. Portugueses são Militão Ribeiro, Bento Gonçalves, Catarina Eufémia, H. Palma Inácio, José Dias Coelho, Júlio Fogaça e Álvaro Cunhal; mas aparecem também Luís Carlos Prestes, Agostinho Neto, Samora Machel, entre outros. Naturalmente, poderão discutir-se algumas das escolhas feitas, mas é óbvio o interesse cultural da antologia. 
Finalmente, atendendo às inquinações e aos conformismos do tempo presente, convem sublinhar a semântica daquele título. Revolucionário é o ato insubmisso ou insurreto causador de mudança  e profunda renovação social. Não será esse o verdadeiro motor do progresso humano?

domingo, 25 de novembro de 2012

Porque se arruínam os Estados

Não há mais lugar para dúvidas: o chorrilho diário de subtilezas, enganos e mentiras nada pode contra tão fortes evidências. Agora até os mais distraídos percebem, com toda a clareza, o que se pretende com essa treta da «refundação do Estado». Não liquidaria apenas os derradeiros vestígios conquistados com a democratização do 25 de Abril; quer recuar mais para trás da previdência do Estado Novo salazarista, de negregada memória.
A cada ano, com cada orçamento, temos mais desemprego, mais paralisia económica, mais cortes de serviços públicos, mais endividamentos e dependências do exterior, ou seja, mais austeridade em acumulação irremediável. Todavia, os cidadãos vão pagando impostos mais e mais elevados e todos os sacrifícios que façam não chegam, alegadamente, para pagar as migalhas que ainda sobram do Estado social. Para onde vai então o dinheiro dos contribuintes?
Esse dinheiro vai saindo do país para pagar os juros das dívidas do Estado, mas acontece que essas dívidas e juros tem vindo a crescer loucamente, sem travão. Pergunte-se então que sorte de governantes endividam assim tanto os seus países ao ponto de os arruinar, deixando cativa a respetiva soberania. Faz-se lembrar, neste ponto, o Tratado de Maastricht, de 07-02-1992 - para ele somos remetidos.
No Artigo 104, o tratado consagrou a proibição de os bancos centrais de cada país financiarem os governos. Era e é uma condição inexplicável e notavelmente absurda, mas os governantes da zona euro assinaram-na e passaram a depender dos bancos (isto é, não diretamente do Banco Central Europeu) para obter financiamentos. Ora os bancos pedem e recebem os financiamentos do BCE a 1%, ou menos, e depois, emprestando ao Estado, obtem lucros chorudos de mão beijada. 
«Calcula-se que os Estados europeus vêm pagando à banca privada uns 350 mil milhões de euros por ano a título de juros desde que deixaram de ser financiados pelos seus antigos bancos centrais e depois pelo Banco Central Europeu» - afirmaram Jacques Holbecq e Philippe Derudder no estudo-denúncia La dette publique, une affaire rentable: A qui profite le système? (Paris, 2009), obra publicada em Portugal; quanto pagarão em 2012?! Uma demonstração concreta de que são os juros financeiros e não a despesa social do Estado a causa da dívida soberana deve-se a Eduardo Garzón Espinosa: «se os saldos primários que o Estado espanhol foi tendo desde 1989 houvessem sido financiados a uma taxa de juro de 1% por um banco central (como é lógico que deveria ter sido) o peso da dívida pública espanhola seria agora de 14% do PIB e não os 87% actuais». Por sua vez, Juan Torres López, professor de Teoria Económica na Universidade de Sevilha, sustenta que é «esse, portanto, o verdadeiro fardo que agora lastra [sobrecarrega] as economia europeias e não o peso insuportável, como querem fazer crer, do Estado Previdência.»
Conclusão: a alta finança especulativa, com o FMI à testa, entranhou-se na zona euro ao ponto de lhe inspirar as políticas e deixar a União Europeia em risco de implosão. O fim da moeda única é previsto pelo menos para os países sob «resgate» e, se tal ocorrer, teremos a consumação da desgraça. Vozes prudentes aconselham: mais vale antecipar a saída para minorar os custos... 

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A faixa de Gaza, bloqueada e metralhada por Israel, sofre - até quando?!

sábado, 17 de novembro de 2012

Energias fósseis vão durar?

Vozes credíveis vinham avisando: o declínio da exploração mundial do petróleo iria acentuar-se nos próximos tempos. A quebra não se deveria só ao período de recessão socioeconómico em que se afundam tantos países e sim, principalmente, às reservas naturais planetárias que estariam a esgotar-se. Mas temos agora a novidade: o futuro das energias fósseis ainda parece radioso.
As explorações correntes do crude estão de facto a estagnar e a diminuir até à exaustão final. Porém, a quebra sofrida por esse lado vai ser compensada por outro. Depois de se atreverem a explorar os próprios fundos oceânicos, descendo até profundidades consideráveis (e perigosas: os custos ambientais tem sido enormes, mas a BP paga-os baratinho, por 4,5 mil milhões) e de avançarem sobre o Alasca, os capitães da indústria descobrem petróleo e gás natural em areias betuminosas e mesmo em rochas.
Essas novas áreas de exploração tornam-se viáveis e mesmo apetitosas decerto porque a cotação do produto vai trepar pela escala acima. Mas outra novidade se anuncia: neste quadro, os Estados Unidos irão ocupar o lugar cimeiro da produção mundial das energias fósseis no decurso de uns vinte anos, dispensando então, completamente, o recurso atual à importação. Consequências?
Se tal vier a acontecer, teremos o planeta condenado por mais umas quantas décadas a queimar energias fósseis e portanto a acumular os gases causadores do conhecido «efeito de estufa». Por outras palavras: a «economia do petróleo», adaptada à situação, continuará a expandir-se. Poderá dizer-se, assim, que o século XX, conturbado como ficou por esta «economia» tão cega, agressora e poluente quanto se sabe, irá alastrar através do século XXI.
O planeta inteiro será empurrado pelo «império do petróleo» para um verdadeiro cataclismo ecológico, com mudanças dramáticas que atingirão desgraçando inevitavelmente milhões de habitantes. A própria fisionomia de muitas zonas naturais sofrerá destruições apocalípticas às mãos gananciosas dos capitães da indústria. Se o governo dos EEUU o permitir, serão eles - bichos homens, com perdão dos bichos - os únicos a rir-se, sentados na hecatombe em cima dos seus novos milhares de milhões. [Foto: mancha de petróleo no Golfo do México, EEUU, derramado por plataforma da British Petroleum.]

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Menos justiça, menos liberdade

Um ponteiro serve para apontar mas agora vai servir para molhar a ponta na superfície de um tema. Na gota que fica a pender, iluminada por este sol frio de outono, aparece refletido o anúncio há poucos dias feito pela ministra da Justiça. Aquele e alguns outros ministérios vão ter menos 500 milhões para gastar no próximo ano...
Não vão ser eliminadas «gorduras» do orçamento. Vão ser eliminados serviços estatais de indiscutível e primeiríssima necessidade social. É nestes serviços que o governo ultra-neoliberal «economiza» mais e mais, cortando a eito, para deixar o Estado entregue aos donos dos bancos e às empresas dos amigos que os governantes tratam por tu.
O Estado é pago pelos cidadãos contribuintes mas cada vez os serve menos e acaba mesmo por não os servir conforme lhe competia. Estou de olhos postos na gota que, vergando ao seu peso, vai cair, e nela vejo, miniatural mas nítida, a imagem de um caso particular. Na miniatura pode perceber-se o resultado prático que vai ter o anúncio da ministra na cobrança coerciva de uma pequena dívida - um dos tantos processos que aos milhares e milhares entopem os tribunais.
Há anos o carro de um sujeito foi abalroado por outro num cruzamento da cidade. Os semáforos estavam intermitentes, no amarelo, desde há muitos dias, e o carro abalroado surgiu da direita - logo, tinha prioridade. Além disso, o para-choques foi embater sobre a roda traseira do lado do condutor atingido.
O choque foi ligeiro, mas, como o carro abalroador nada sofreu, a sua condutora alegou que os semáforos estavam a verde e recusou-se a assumir a responsabilidade. A polícia recolheu todas as provas, havia testemunhas e a própria câmara municipal documentou que, ali, a sinalização luminosa, avariada há meses, estava ligada a amarelo intermitente.
Não havia dúvida nenhuma, nenhuma escapatória: o seguro do carro causador do dano devia proceder à indemnização (a módica quantia de uns 1.300 euros, desembolsados). Último recurso: o tribunal. Porém, tão entupido ele está que o anúncio da srª ministra o dispensará de julgar o caso tarde e a más horas graças ao bendito dispositivo da prescrição.
Em suma, não há justiça que acuda os pequenos credores. E porque não há justiça (ficam impunes as patifarias dos pequenos que aprenderam a imitar os grandes), também não há liberdade. Assim, onde iremos encontrar escondida a democracia?

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A crise exposta

Deixai aqui toda a esperança quantos ainda teimam em acreditar que foi benéfica para Portugal a sua adesão à União Europeia. Arruinou a agricultura, desbaratou as pescas e abriu a zona marítima nacional a outras frotas, limitando mais e mais a exploração do mar que é nosso. As «ajudas» que deu ao país serviram quase sempre para ampliar a corrupção em obras de luxo ou de fachada, não para fomentar a produção de bens, e criaram camadas de milhares de novos milionários.
Deixai aqui toda a esperança quantos ainda teimam em acreditar que a adesão à moeda única europeia contemplou o interesse do povo. Serviu o sistema bancário e, através dele, os interesses dos Estados da zona euro mais fortes e desenvolvidos lançados na exploração dos menos desenvolvidos. E agora se vê quanto isso serviu também para atrelar a União Europeia às ganâncias especulativas da alta finança internacional.
Deixai aqui toda a esperança quantos ainda teimam em acreditar que os partidos que tem sido governo desde há trinta anos agiram inocentemente ao endividar o Estado, isto é, pondo-o a jeito para desmantelar a pouco e pouco, com a rapidez conveniente, o Estado Social. Esses partidos aplicaram aqui e ali as políticas neoliberais aprendidas nos centros onde uma colossal acumulação da riqueza gerava o imperialismo e ensinava como este devia ser servido por governantes em geral. Só uma radical mudança de governantes, portanto dos partidos que se revezam no poder, poderá impor outro caminho por uma maioria de eleitores esclarecidos.
Deixai aqui toda a esperança quantos ainda teimem em acreditar que pode ser encontrada uma solução para a crise nacional mediante os processos eleitorais. Os partidos apropriaram-se do sistema democrático colocando-o deveras ao seu serviço. E a maioria da população (as classes médias), atormentada pela crise, talvez ganhe medo a mais crise até por fim rebentar.  
Deixai aqui toda a esperança quantos ainda teimem em crer que esta crise irá acabar, porque em breve ficará controlada a dívida soberana, e acabar a austeridade (iniciada há três anos; na Grécia há seis), o desemprego, a depressão económica e social, a emigração forçada da melhor força de trabalho. Desenganem-se: são as dívidas, melhor do que as armas, que vergam as nações. Os salários baixos e os empregos sem direitos vão generalizar-se pois o desemprego vai continuar alto e a maioria da população continuará sem dinheiro para consumir.
Deixai aqui toda a esperança quantos ainda teimem em acreditar que os bancos e todo o sistema bancário não lucram e prosperam com o esmagamento atual das classes médias. Esta governação que empobrece o povo trabalha para os engordar junto com as maiores empresas internacionais. A política sem máscara aproximou-se do que é descaradamente mafioso a coberto da manta protetora estendida por quantos esconjuram os perigos do «papão comunista».

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Querem apagar a LUSA !

Quando há jornalistas em greve, o país inteiro deve ficar atento. Algo de grave se passa no campo da informação portuguesa e isso importa aos cidadãos. Ora, nestes dias, estão em luta, de braços caídos, redações da agência LUSA e do jornal «Público» com todas as suas delegações nacionais.
São casos diferentes (a agência é pública, o jornal é privado) mas, ainda assim, são aparentados e, não por acaso, simultâneos. A ofensiva ultra neoliberal avança para abocanhar tudo o que possa luzir, na LUSA ou no «Público». Engana-se redondamente quem se ponha a supor que esta ofensiva dos radicais, enfim cheios de boa consciência, se vai deter aqui depois de ter feito as desgraças que já fez.
O caso da agência, que é única, reveste-se de especial relevância. Atrofiá-la, reduzindo-lhe os redatores, determina uma atrofia do caudal diário da sua informação. Acontece porém que essa informação, variada e abundante, emanada de e para todo o país, é essencial para alimentação de jornais, rádios e televisões.
É assim que, agora também por este lado, mais uma vez fica em causa a democracia, a liberdade. Logo, o país informado solidariza-se com os jornalistas em greve, compreende-os e apoia-os. A sua luta é a de todos os que sentem a violência da agressão em curso.
O patrão do «Público», jornal considerado de referência, quer despedir para minorar prejuízos; o governo regateia, querendo poupar seis milhões no orçamento não de hipotéticas «gorduras» mas sim de «osso». O patrão manda na sua casa mas na agência pública tem a sua palavra a mandar os cidadãos contribuintes. Não está nada bem, nem é bonito, regatear seis unidades e continuar a dar centenas aos mesmos de sempre que, coitadinhos, beneficiaram e beneficiam do Estado que nós suportamos até ao desfalecimento.
Uma informação abundante, livre e plural é indispensável ao sistema democrático, sobretudo quando reina o alheamento, o abstencionismo, entre tanto espetáculo de  futebol e telenovela. Iniciativas destas escondem (mal) uma aversão à democracia e à liberdade. Não lhes chega a desinformação, a manipulação?!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Em nome da equidade

Basta ver o ambiente social da Índia para o sentir: a pobreza é «normal» onde a riqueza é «exceção». Portanto, são precisos muitos pobres para que haja um rico, o que não é novidade nenhuma. Muitos autores, portugueses incluídos, tem registado por escrito o facto que é realidade tão óbvia e assente que cabe na sabedoria das nações.
Todavia, no mundo de hoje, o ambiente social da Índia repete-se a esmo, por Ásia, África, América Latina... As riquezas dos povos atingem níveis de concentração tão brutais, fazendo crescer zonas de pobreza e miséria tão extensas que ameaçam a estabilidade dos continentes e mesmo do planeta. Sagaz foi quem previu, no século XX, que o imperialismo seria a fase suprema do sistema capitalista (agora em versão selvagem).
Em causa temos, assim, a equidade. A equidade que se perde e que, por isso mesmo, se impõe resgatar em nome dos valores que consideramos supremos. A equidade que é pedra de toque da justiça, da democracia, da liberdade.
De facto, como estamos a ver, uma delirante concentração da riqueza tem consequências destruidoras de tremenda violência nas sociedades. Agrava até à loucura as desigualdades (nos Estados Unidos superam hoje as de 1930, ano do crash), desigualdades que são a negação viva de tudo quanto afirma esta civilização e esta humanidade que a criou. Entrámos numa guerra implacável em que os estampidos das explosões são os programas de austeridade impostos para travar os défices dos Estados endividados.
Esta guerra ameaça varrer o mundo e fazer recuar o viver dos povos, um a um, às escuridões de outra Idade Média. Às estratégias da alta finança internacional e da ganância desmedida da sua especulação dão os governos espaços de manobra. Na União Europeia, agora com o Mecanismo Europeu de Estabilidade instalado para garantir o pleno domínio dos Estados pelas estratégias especulativas, vai o FMI continuar presente e de bandeira desfraldada.
É suposto que os recursos planetários explorados até ao limite não iriam permitir a prossecução dos modelos socioeconómicos que conhecemos e designamos como consumismo desenfreado. Um novo paradigma de vida tem que ser adoptado pelos povos. Mas não este, imposto, que quer convencer-nos a largar já aqui toda a esperança. Quem vai poder calar massas expropriadas explodindo em fúria?

domingo, 7 de outubro de 2012

A edição literária, hoje

A cambalhota foi rápida. Efectivou-se nuns meses, de modo que o sector da edição literária nacional ficou virado de pernas para o ar. Já lá vão uns três anos e resta por aí ainda quem, escrevendo ou lendo livros, não tenha percebido claramente o que aconteceu e, portanto, estranhe a situação.
As principais editoras caíram na mão do poder financeiro. O livro reduziu ou perdeu de todo a sua dignidade cultural, transformando-se em objecto de negócio puramente lucrativo. Os autores literários mediáticos passaram a produzir para o mercado e os sobrantes viram-se obrigados a aceitar a condição de supranumerários senão mesmo a invisibilidade.
As consequências objectivas da viragem tinham de ser desastrosas nos planos da cultura e de uma normal renovação das linguagens literárias. Os autores de best-sellers, os nossos e os outros, proclamados escritores profissionais, produzem as obras (romances, muitos romances) que o mercado gosta de consumir depressa e em quantidades o mais possível industriais. Os editores querem que sejam os autores a vender com a força da sua imagem mediática e diligência aplicada no terreno, enquanto os próprios autores, profissionalizados, se tornam necessariamente produtores de obras vendáveis por «encomenda» do mercado.
Num pequeno país e, para mais, afundado em profunda crise, cabem poucos autores de best-sellers. A máquina da edição literária lança o preciso para funcionar e refuga os demais (não lucrativos). A comunicação social, orientada para a actualidade mediática que chama às luzes da ribalta os autores badalados, segue na corrente que, por outro lado, a inexistência de uma crítica pronta e actuante deixa correr sem baias.
O resultado ficou à vista. Os leitores, pegando nos livros à venda em supermercados, correios, papelarias e etc. (isto é, consumindo o que lhes metem pelos olhos), estratificam o gosto em leituras padronizadas, feitas para eles pelos fabricantes de textos seguindo indicações estratégicas do marketing. Em suma, a edição literária torna-se monocórdica e repetitiva tanto quanto a imprensa, também caída em poucas mãos convenientes, é tendenciosa e unilateral.
O número das editoras e chancelas em actividade cresceu até à desmesura e a quantidade total  dos livros novos publicados a cada ano causa verdadeira estupefacção. As lojas e barracas de saldos de volumes a pataco mal esvaziam os armazéns atulhados com verbos de encher. Nas livrarias, os clientes arreliam-se porque, entre tanta livralhada, falta lá espaço para as obras de autores clássicos ou mesmo para obras lançadas há dois ou três meses e, se querem encomendar, o livreiro faz má cara - a distribuição está num caos.
Predomina na paisagem o preciosismo da escrita criativa com talento para extrair de  banalidades imenso suco de barbatana. Anemiza-se o envolvimento social do narrador, a palpitação humana autêntica na união sincera da arte com a vida. Boa escrita (liofilizada) não serve a boa literatura.
A intensificação da circulação desta literatura (dita descartável, light) espalha no terreno consequências indesejáveis a vários níveis. A mais saliente consistirá na imposição de um tipo de «cultura popular» capaz de submergir a cultura popular de raiz. Contribuirá também para estratificar nos seus leitores o conformismo ideológico, a debilidade do sentido crítico, o consumismo acéfalo.
Nesta situação confusa, ficam condenados a uma marginalidade nada inocente bons autores interventivos carecidos de «vedetismo» porque vendem pouco e devagar. Tinham editoras, leitores, renome, e a cambalhota reduziu-os quase ao emudecimento. Na sua visceral solidão, vêem-se constrangidos a conservar inéditos originais que não tiram da gaveta.
Mas agora são abundantes, numerosíssimos, os novos «escritores». Surgem e multiplicam-se pelos quatro cantos, parece que está na moda isso de publicar livros e qualquer estreante os publica, pagando a edição, com tiragens reduzidíssimas, do seu próprio bolso, e depois corre a vendê-los a conhecidos e vizinhos dos conhecidos. Escrevem, editam, distribuem e fazem venda directa - será este o caminho que resta aos autores não mediáticos?!
Quem isto escreve optou pela solução que se sabe: publica os seus livros com formato e-book numa plataforma da Internet. Nesse escaparate já alinhou dez títulos e pretende continuar. Os milhares de visitantes que os folheiam nada pagam ao autor mas deixam-no perfeitamente gratificado.
A conjuntura sociopolítica, dominada pelas ganâncias da máquina ultra e neoliberal que tudo oprime e devora, acicata a criatividade individual e colectiva. De qualquer modo, é preciso, é urgente elaborar respostas, rasgar saídas. A liberdade de expressão, a necessária renovação cultural e literária, e a democracia pedem-nas.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Fumadores postos na rua

Bem podem os viciados do tabaco arder em fogachos de escândalo. Compram os cigarros cada vez mais caros e tem ainda que admitir nos maços o aviso de que fumar mata, obrigando-os a fazer de conta que são cegos ou analfabetos. Mas, pior que tudo, a determinação de proibir o fumo em locais públicos e certos  espaços comerciais, em vez de revolta, implantou-se no povo manso sem provocar chispa.
Habituámo-nos a vê-los, incluso em tempo de rigorosa invernia, sentados à beira de cafés e restaurantes, nas esplanadas que parece terem sido criadas para seu uso exclusivo. Livram do fumo os interiores e quem lá trabalha, junto com a clientela, agradece. Por outro lado, não os ouvimos a reclamar mais abundantes lugares onde possam atentar livremente contra a própria saúde.
Também nos acostumámos a vê-los parados nos passeios, encostados às paredes, a fumar sozinhos ou em pequenos grupos. São funcionários de escritórios e repartições contíguas, o vício expulsa-os para o exterior. Conversam, falam ao telemóvel ou aquecem a pele com um pouco de sol.
Sucedeu, portanto, o que podia esperar-se: os fumadores saíram em quantidade para as vias públicas. Quer dizer, foram postos na rua. Alguns capricham em fumar postados no umbral dos cafés e outros locais comerciais, como que a dividir salomonicamente o corpo entre o dever de largar para o exterior as baforadas e o seu direito antigo de permanecer no interior - acharão acaso que a equidade estará no meio termo, naquela meia porta?
Acontece assim que os passeios das ruas se enchem de fumadores e de fumo. Vai o cidadão abstémio caminhando e avançando através das exalações sucessivas de cigarradas que, tendo que respirar, tem que inalar. Pode mudar de passeio, mas é luxo que nem sempre o trânsito lhe permite.
Sorte idêntica cabe a quem segue um fumador solitário de cigarro nos dedos, a ir adiante com a mesma pressa e que acelera quando vai ser ultrapassado. O cheiro que o abstémio sente no ar (o nariz emenda: não é cheiro, é fedor)  provoca-lhe náuseas decerto porque foi fumador ativo e passivo. Todos já fumámos demais «fumando» de variadas maneiras e mesmo sem cigarro aceso - precisamos urgentemente de ar puro, no mínimo de mais ventilação!

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Numa figueira, o mundo

Hei-de ser sempre um fervoroso amigo das figueiras, dessas que nascem pelos cantos e por lá ficam a crescer ao abandono. São árvores generosas, que não pedem cuidados e dão sombras frescas e perfumadas quando mais precisamos delas. Além disso, penduram nos ramos os seus frutos, com diversos feitios e deliciosos sabores à escolha.
Já tive uma figueira tão grande, tão imensa, que me parecia o mundo. Trepava pelo seu bojudo tronco, percorria as avenidas que eram, na minha fantasia, os ramos mais grossos, e as ruas, que eram as ramificações menores, aventurava-me depois pelos becos sem saída para estender o braço para os figos maduros. Tinham pele fina e luzidia, quase esmeraldina, de forma oblonga e cheia.
Apeteciam-me mais os que via já de pele morena engelhada como o rosto dos vizinhos muito idosos. Eram intensamente doces e tão deliciantes que, ao abri-los ao meio, sentia logo que eram quase figos secos prontos a elevar-me ao céu das doçuras. Prefiro desde então peças de fruta também idosas, incluso com algum podre para limpar, porque avalio o bem que tem dentro.
Assim também são algumas pessoas de idade. O tempo secou-as por dentro, encarquilhou as peles por fora, mas o melhor conservou-se no seu interior. Quanta riqueza de sentimento, compreensão, humanidade!
Todavia, poucos eram os figos, como as pessoas, assim deliciantes figos secos que eu podia encontrar então nos ramos daquela figueira ou, hoje, nas ruas deste mundo. Os pássaros, em bandos, bicavam-nos e comiam-nos quase todos. Estendia a mão para colher um na ponta de um raminho que repuxava para mim, tão lindo, apertava-o na mão e de repente largava-o porque dele saíam vespas por uma fenda aberta do outro lado e eu, num susto, recuava para não me picarem.
Mas não eram só as vespas que voejavam em torno da frondosa copa de grandes folhas verdes. Nem só os pássaros. Também as abelhas e outros insetos a envolviam com um zumbir de asas tão perfeito e leve como nuvem de gaze. Da ponta redonda como um beijo dos figos maduros saía o pingo de mel que lhes dava o nome. Outros, rechonchudos e bonitos, olhavam para mim com uma expressão sorridente que me lembrava caras conhecidas. Eram os primeiros que os pássaros atacavam: davam-lhes umas bicadas breves e deixavam-nas ali a secar, como certas raparigas enganadas que depois nem os pássaros, só as vespas, queriam.
Era pródiga aquela figueira querida dos meus tenros anos. Desapareceu com a minha infância. Estou agora a lembrar os seus frutos tendo na mão uns outros, escuros, também saborosos, sim, mas não os meus doirados e pródigos pingos de mel. 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

E sempre sem diplomas!

Pegando na deixa da crónica precedente, devo notar que temos por aqui uma outra crónica de sucesso comparável. É a «Sem diplomas» (25-07-10), que tem sequência na «Pois, sem diplomas!» (04-07-11). O espanto, talvez mesmo o escândalo de certos leitores provinha claramente do facto de me apresentar sem licenciatura e de, sem pudor, dir-se-ia com um orgulho mal disfarçado, assumir a condição de autodidata.
As duas crónicas ficaram recolhidas no segundo volume de E Foi Assim por nelas se espelhar o que se me afigura um dos mais vivos paradoxos do nosso tempo. Cursos superiores com licenciatura multiplicaram-se ao abrigo da democratização do ensino e, como se sabe, lamentavelmente, até ficaram ao alcance de quem tem pressa e poder para obter o apetecido diploma em universidade carecida de receitas. Todavia, todos reconhecem também que, contra as aparências, esse avanço parece não corresponder a grande melhoria do nível de cultura geral dos portugueses...
Nesta situação, fazem-se ouvir os idosos que, vindos de outrora - quando valia a valer a capacidade do indivíduo afirmada na prática e, portanto, valor traduzido em ato -, encaram com reserva ou suspeita o ensino superior, desdenhando dos canudos de licenciados dos tais ditos «de aviário». Acham preferível a escola antiga, onde se aprendia com aplicação e disciplina. Radicam-se na atitude que acredita nos méritos demonstrados pela pessoa concreta e não nos seus diplomas. 
É, quer-me parecer, atitude prudente e defensável. Nas crónicas supracitadas referencio alguns casos de escritores que se afirmaram na nossa Literatura desprovidos de canudo apropriado. Mas quem, recuando um pouco no tempo, lance o olhar para lá de 1930 e entre no século XIX, bem pode estarrecer.
Abundam os casos frisantes. Por exemplo, Rodrigues Sampaio (António), Rebelo da Silva (Luís Augusto) ou Oliveira Martins não passaram por universidade e, escrevendo livros ou na imprensa, deixaram memória cintilante no liberalismo luso. Saboreie-se agora a surpresa maior: Camilo Castelo Branco, consagrado mestre da língua vernácula, e Alexandre Herculano, poeta, romancista e egrégio fundador da nossa historiografia, formaram-se igualmente sem universidade.
Quem o lembra é nada menos que Sampaio Bruno (1857-1915), outro autodidata, portuense espantoso que sabia latim, inglês, francês, italiano, espanhol, além de possuir profundos conhecimentos de filosofia, religião, matemática, música. Recordei há semanas o seu livro A Ideia de Deus onde o tema é equacionado. Então, muito a propósito, de Eça de Queirós, bacharel, José Pereira de Sampaio (Bruno em memória de Jordano Bruno) evoca a página queirosiana que fala dos quatrocentos mil bachareis portugueses capazes de requererem nestes termos: «Diz Fulano de Tal, bacharel formado em direito, não sabendo ler nem escrever, pela mão dum pedreiro, que este firma a seu rogo, etc.»

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Nudez, verdade exposta

Muito diversos são os visitantes deste sítio e tanto que me deixam admirado. Uns, a maioria, vem ler aqui os novos textos ou navegando em buscas temáticas, outros chegam na pesca de imagens e com elas na linha partem satisfeitos. E todos deixam por cá vestígios da sua passagem.
O sistema regista-os automaticamente, quantificando-os (sem os identificar),  país por país, e designando o que lhes interessou. Logo, os leitores, de alguma maneira, deixam-se «conhecer» e eu de tal não costumo fazer segredo. Posso, portanto, avaliar o que, aqui posto, mais agrada à freguesia.
E vou colhendo surpresas. A crónica intitulada «A rapariga nua», editada em 23 de março passado, teve em cinco meses uma soma de visitantes das mais elevadas. Se a excitação persistir será elevada ao pódio não pelos leitores habituais deste sítio mas por incertos «outros».
Não felicitem o cronista. Compreendam, com ele, a tristura em que fica suspenso, sentindo-se como peça íntima de vestuário posta a secar em corda estendida sobre via pública. Não é agradável ver o nosso trapo a servir de chamariz do que precisamente, escrevendo, nos quisemos afastar.
De facto, o texto exprime claramente uma atitude nada condizente com a dos apreciadores de revistas com páginas repletas de raparigas despidas fotografadas em poses insinuantes. Ao invés, pretende inculcar uma visão despojada de complexos ou de malícias (afinal mórbidas) que rebaixam o corpo feminino à condição de objeto sexual. Propõe em substituição uma atitude iluminada por mentalidade que respeita na mulher o ser humano que é.
Mas o título fala de «rapariga nua». Erro fatal! Há que distinguir nudez e nudez, mas quem procura meninas nuas não está para essas distinções.
Eu teimo em acreditar que um corpo despido assume por isso mesmo muito mais respeitabilidade do que vestido. A pessoa vulgar, perante uma nudez exposta, experimenta desde logo um interdito na medida em que lhe pressinta a inocência. Parece que só reage diferentemente alguém já inclinado para comportamentos reveladores de um qualquer desvio.
Assentemos nisto: um corpo despido, porque aparece indefeso, pede a quem o vê alguma proteção e talvez a mereça. Raparigas vestidas cobrem-se com roupas que, em última análise, as envolvem em artifício. A nudez é a verdade exposta.

sábado, 1 de setembro de 2012

Freguesias, herança milenar

Surpresa: as freguesias são uma das mais marcantes caraterísticas da organização territorial do nosso país. Não encontram paralelo além fronteiras, garantem os entendidos. Mas é contra esta verdadeira originalidade portuguesa que o governo pretende agir, reduzindo-as em número.
Agiu antes contra os sistemas escolar, de saúde, de justiça e do trabalho, pouco mais havia a jeito para completar o quadro da destruição. Engrolado na retórica da «crise», o povo crédulo aguentou e segue carregando nos ombros (até quando?) o andor da desgraça. Agora  veremos quantas freguesias vão acomodar-se com as disposições do governo sem entrar em protesto desatado.
As populações de cada uma dessas partes - sejam de tipo rural, semiurbanas ou urbanas contidas no território municipal - estão integradas na sua freguesia de formas bastante peculiares.  É a autarquia que tem mais próxima, para a qual podem eleger os mandatários conhecendo-os pessoalmente. As reduzidas competências atribuídas a estes órgãos básicos da organização político-administrativa do país e suas escassas receitas (cemitérios, feiras, baldios) ajudarão decerto a compreender a desatenção geral em que tem permanecido.
Na verdade, um único livro aparece a quem pretenda abordar de relance o assunto: As Freguesias - História e actualidade, estudo de José António Santos (Celta Editores, Oeiras, 1995). Junte-se o artigo que Carlos Mendes Pauleta lhe dedica (in «Finisterra», XXXII, 64, 1997, pp. 145-148), mais umas migalhas, e é tudo. E, caramba, é pouco!
Mas a surpresa bate à porta. A origem histórica das autarquias locais é remotíssima. Vem do tempo da cristianização da península pelos Romanos, portanto dos séculos III e IV, quando se formaram os embriões das paróquias, indica José António Santos citando o Padre Miguel de Oliveira.
Passaram, evidentemente, por diversas transformações, confundindo-se a princípio com o avanço do culto cristão. A própria designação dessas autarquias locais variou e sofreu alterações semânticas: «igreja», «diocese», «paróquia», «freguesia», «colação» - refere o Autor. Por outro lado, o artigo «Paróquia» do Dicionário de História dirigido por Joel Serrão conduz-nos à percepção de que as casas senhoriais das villae, espalhadas pelo campo, incluíam templo privado (paróquia = «igreja» primitiva).
Tudo isto ilumina com renovada clareza o processo do avanço da cristianização no terreno pondo em destaque a notável antiguidade dessas organizações de vizinhos. Estiveram sob a égide total da Igreja até ao advento do liberalismo, no século XIX, e em 1916, sob o regime republicano, laicizaram-se em completa autonomia civil. Existem hoje 4260 freguesias em Portugal, número que o governo (centralista) quer reduzir o mais possível... preparando o passo seguinte que será o de atacar o número dos concelhos e criar os círculos eleitorais uninominais que permitirão aos dois partidos maiorais revesar-se «democraticamente» no poder?

terça-feira, 31 de julho de 2012

Em férias

Agosto chegado, braços caídos. Mesmo sem subsídio de férias, o costume ordena. Vai tudo para fora cá dentro, para a praia próxima ou a aldeia distante, e por ali ficará o mês de papo pró ar na sorna ou a papar moscas. Os portugueses são demasiado abúlicos, diz-se? Ou, como dizia o outro, «piegas» a empobrecer brutalmente? Bem caro isso nos fica! O remédio prescrito é o emigrar... Enfim, o (des)governo tem o mês para lançar nas nossas costas, sem alaridos, mais umas tantas das suas medidas que agravarão as doenças do país em vez de servirem para as curar e, quando vier o mês seguinte, será o tempo de percebermos quanto nos custou a distração. Mas... sim, pois claro, isso é futuro, é miragem, agora estamos de partida, não vamos pensar nisso. Ali vai o meu vizinho, e o vizinho do meu vizinho. Bom, eu resolvo sair também, não atrás deles, porque vou ficar por perto. A cidade está mais habitável, começou a maravilha. Enfim, cumpra-se a tradição e... até setembro. Boas férias!

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A crise e a moralidade

Um período de crise aguda costuma exigir, sem mais justificações, o sacrifício de liberdades e direitos sociais estabelecidos. O primeiro reflexo de tal sacrifício atinge os padrões da vivência moral que resulta do avanço da civilização em cada comunidade. Porém, as regras morais não mudam, dado que (cito): «Sem contestação, não se encontrará no mundo coisa alguma que tenha sofrido tão poucas mudanças como esses grandes dogmas que compõem o sistema moral.»
O trecho encontra-se em A Ideia de Deus, livro de um autor esquecido, Sampaio Bruno, que o publicou em 1902. Ora, na transição dos séculos XIX e XX, a crise que sobre Portugal se abatia, sendo diferente, não seria menor do que esta, atual. O pensador portuense situou a questão, escrevendo: «De facto, com o andar dos tempos e com o rodar da civilização, a moral depura-se, porque precisamente a ideia da igualdade (cada vez mais profundamente) mergulha e embebe as suas raízes. De maneira que a moral deixa de ser localista, regionalista, nacionalista, de classe, de raça, de religião - para passar a ser humana e genérica.»
A ideia da igualdade, diz Sampaio Bruno? Da igualdade como pedra de toque da Democracia? Aqui temos, então, uma porta aberta para chegarmos à contradição mais dilacerante do nosso tempo, o tempo das desigualdades em crescendo.
E todavia... «O homem, de instante para instante do seu desenvolvimento, compreende mais intimamente, de momento para momento mais se compenetra de que o carácter do acto moral consiste em /.../ não admitir retribuição alguma. O acto moral só é puro (isto é, só é verdadeiramente moral) quando nada recebe em troca.»
Sampaio Bruno, cristão que chegou ali a visionar uma sociedade sem classes, recorda, de Vitor Hugo, o célebre diálogo entre o padre Cimourdain e o general Gauvain, franceses em masmorra prontos para a guilhotina: «Gauvin redargue que, quando se haja dado a cada um aquilo que lhe pertence de direito, resta ainda dar-lhe o que não lhe pertença. Isto é, resta ainda a obrigação última: resta ainda a liquidar aquela suprema dívida dessa "imensa concessão recíproca que cada um deve a todos e todos devem a cada um".»
Sampaio Bruno cita o diálogo: «"Fora do direito estrito, não há nada. - Há tudo. - Eu não vejo senão a justiça. - Pois eu olho mais para cima. - Então o que é que há acima da justiça? - A equidade"».
«Mas só haverá Moral perfeita quando haja perfeita Igualdade.» Porquê? «Porque as verdades da Moral são uma só e única verdade.» «Aqui está a razão por que a educação moral falha em parte. É porque uns [homens] não são iguais aos outros.»

domingo, 22 de julho de 2012

Eucaliptos: o emblema final

Sobressaltam-se ambientalistas, ecologistas, paisagistas, técnicos de ordenamento do território, amigos da conservação da natureza em geral. O governo declara-se disposto a retirar todas as barreiras legais que impedem ou condicionam a expansão do eucalipto pelo território nacional. É caso para propor que os governantes substituam o emblema que exibem na lapela pelo ícone da árvore que tão bem lhes quadra.
Assim vão ser atiradas para o lixo todas as legislações nacionais produzidas desde o início do século XX que regulavam (pouco) o plantio daquela árvore invasora. Tem poucos amigos, mas poderosos (donos dos lucros das celuloses), e muitos inimigos sem poder. Todavia, sabem reconhecer na árvore um comportamento que até descrevem como «fascista»: come tudo em redor e não deixa nada.
Realmente, o eucalipto cresce depressa esgotando também depressa a humidade e o húmus contidos nos terrenos. Existem largas centenas de tipos diferentes, mas o que por aí abunda são os do crescimento mais rápido, logo os que mais depressa esgotam o potencial produtivo dos terrenos. Os amigos da natureza andam há imenso tempo a prevenir que tal árvore, sendo cheirosa, arruína os solos e expande no país maus cheiros e desertificação.
Ora o governo faz orelhas moucas para o que os tais muitos sem poder dizem e ouve os poucos com poder que lhes dizem o que querem ao ouvido. Tudo o que estes tem vindo a ganhar parece-lhes pouco. Os próprios incêndios na floresta (que este ano, piores que nunca, alastram sem travão), segundo pretendem certas insinuações, acabam por beneficiar de vários modos apenas as celuloses.
Porém, a consequência de maior gravidade que a medida decerto vai ter atinge a existência dos baldios. Herança histórica que remonta ao fim do feudalismo, os terrenos baldios são propriedade comum dos moradores de cada lugar como pastagens e reservatórios de lenhas. Nos anos '60, ocupavam 6% do território nacional; presentemente serão 420 mil ha.
Carlos Rebola, bloguista que lembro com saudade, fez há anos uma pesquisa e colocou em Google.docs um acervo importante de documentos sobre baldios, mas há outra informação disponível. O problema, agora, consiste na dúvida: irá o governo dar rédia solta às empresas madeireiras e deixá-las avançar (apropriarem-se?) por cima dos baldios? Dúvida justificada: a questão dos baldios está aberta desde há muito tempo e estes governantes ultra-neoliberais sentem-se dispostos a entregar tudo de mão beijada.
Portugal vai assim a caminho do futuro que certo economista americano veio apontar-lhe: apostar na produção florestal. Sem outro emprego, metade dos portugueses, de tanga e com rendimento de sobrevivência, cuidarão dos eucaliptais e a outra metade terá orgulho terceiromundista por exportar a pasta, matéria prima, e importar o papel fabricado. (Imagem: desenho de Pawel Kuczynski.)

domingo, 15 de julho de 2012

Mando carta aberta

Caro amigo: Lamento mas não o acompanho nessa queixa dos sábios que procuram a tal «partícula de Deus» no Universo. Desde logo, aprecie a beleza poética da metáfora introduzida (pelos físicos?) e a sua expressividade. Sobretudo considere comigo que os cientistas do CERN estão a responder ao que reclama: «E então a "partícula do Homem", quando a buscam, qual é e onde está?»
Concordamos num ponto, a ciência não mata a filosofia. Acho que aquela se relaciona intimamente com esta e que ambas, seguindo linhas paralelas, se inter-influenciam. Dir-se-á, com certa razão e lamento, que na atualidade é a ciência que avança puxada pela evolução geral das tecnologias, e a filosofia (isto é, as Humanidades), que relativamente se atrasa.
Porém, o avanço da investigação que provou a existência de um «bosão de Higgs» está aí a demonstrar precisamente quanto a ciência pode influenciar e mesmo servir a filosofia. Trata-se de conhecer o funcionamento da misteriosa partícula subatómica que recebeu o nome do seu, agora festejado, descobridor. Higgs percebeu que essa partícula teria fatalmente que existir ali para organizar os átomos, ou seja, a matéria.
Ora nós, a humanidade inteira e tudo quanto na realidade existe, somos matéria. Precisamos sem dúvida nenhuma de conhecer todos os segredos desta matéria de que somos feitos. Os conhecimentos científicos mais avançados - e nós, uns leigos, com eles aprendemos - detiveram-se numa «fronteira» teórica que deixa imensas evidências sem explicação, sejam de aparência comezinha como esse bosão indetectável no interior de um átomo ou espetacular como a força que põe a girar uma galáxia inteira ou abre algures um dos chamados buracos negros gigantescos que tudo sugam para um «outro lado» invisível, inconcebível.
Eis o motivo por que me parece fundamental a investigação desenvolvida no CERN, mais fundamental, suponho, do que ir à Lua ou a Marte ou militarizar o espaço (área nova de confrontos bélicos). Suponho que designar o bosão como a «partícula de Deus» lhe cai mal no ouvido, pois o conheço tão agnóstico quanto eu, mas repare: a metáfora, bem apreciada, contém uma pitada de humor. Os cientistas de infinitas gerações avançaram até o ponto em que hoje estão sem jamais encontrarem o Criador e explicando sempre, experimentalmente, os fenómenos naturais; logo, talvez Ele pudesse estar escondido naquela simples partícula que parece abrir para um outro Universo (de antimatéria?) ainda por desvendar...

terça-feira, 10 de julho de 2012

Vamos juntos


Acontece tão pouca coisa realmente nova em certos dias que um homem tem tempo para contar os botões da camisa. Se o homem está no desemprego, sobeja-lhe o tempo para refletir. As ideias correm-lhe pela cabeça, agarram-se em cachos umas às outras e o fulano, parado e a sós consigo mesmo, imagina que «o mundo pula e avança como bola colorida nos pés de uma criança»...
Enquanto esteve empregado, viu crescer o desemprego em volta. Continuou, porém, a sentir-se confortável porque o seu lugar parecia garantido, tudo ia bem. Agora percebe a ilusão que o cegava: cada pessoa que perdia o emprego era mais uma ameaça que se acrescentava ao risco da perda do seu próprio trabalho.
Acabou também no desemprego, envolvido no rol do milhão e duzentos mil, a rilhar os dentes na falta de dinheiro para a compra do indispensável. Lançado na situação desgraçada em que antes via os outros, da qual ele imaginou poder livrar-se com esperteza, obediência  e bom serviço, humildade quanto baste. Mas de nada lhe valeram os seus talentos e sacrifícios, acreditando ingenuamente que ali era necessário, considerado, serviçal.
A sua ingenuidade, afinal, foi a de tantos outros também postos na rua logo que o patrão  isso mandou, estava agora a percebê-lo. E, como eles, sempre cego, ceguinho de todo para o grave perigo em que iam ficando eles, os empregados, que viam crescer o desemprego. Agora sim, era evidente o facto: vamos juntos no mesmo barco.
Lição custosa de engolir. Porque houve ocasião e motivo forte para os empregados  manifestarem solidariedade com os despedidos, solidariedade a sério, e houve pouca ou nenhuma solidariedade. A pensar tolamente que os problemas de uns não eram, ou iam ser, os problemas de todos, quer dizer, como se os patrões os empregassem não pelo lucro que lhes davam mas pelos seus lindos olhos. 
E por este caminho chegava a outra reflexão bem pior, mais dura de trincar. O crescimento do desemprego fez baixar mais e mais os salários. Baixou-os até aos níveis da miséria e da precariedade atual. Conclusão: todos os empregados, um a um, devem unir-se sempre na defesa e na proteção do trabalho com direitos para não caírem em desgraça.