domingo, 16 de dezembro de 2012

Um discurso na canção

Foi há um monte de anos tão farto que até nos permite apreciar o caso percebendo nenhuma mudança histórica apesar das aparências. Estou a lembrar 1961, ano em que escrevi uma nota em página cultural de semanário de Águeda sobre as letras das canções para lamentar a fraca categoria poética de muitas das que andavam em voga. O assunto surpreendeu mas, como se desejava, despertou interesse.
A surpresa e o interesse resultavam da quase nula atenção que as pessoas davam às palavras que ouviam cantar ou cantavam com gosto. Embaladas pela música, distraíam-se do resto. Porém, nesse «resto» pode estar o gato atrevido a miar com o rabo de fora...
Realmente, é com base na sonoridade das palavras que começa muitas vezes a articular-se a melodia, como acontece de forma mais reconhecível quando a letra é anterior à canção. As palavras não têm apenas conteúdo melódico, essa «coloração» especial que o compositor transpõe para as notas que inscreve no pentagrama. Possuem também o seu ritmo próprio, de maneira que numa canção perfeita tudo se harmoniza: as palavras e a melodia que as canta de acordo com o ritmo que melhor as diz.
Mas nem todas as canções que andam no ar são perfeitas, nem quem as ouve - outrora como hoje - lhes dá a devida atenção. Esquecem que, inoculadas nessas letras (aparentemente inofensivas), podem ir mensagens ideológicas um tanto subliminares e, nessa medida, invasivas. Desejável é, sem dúvida, que um belo poema surja «vestido» com uma inspirada composição para nos agradar e ficar na outiva se não nos puser desde logo a cantarolar.
Todavia, as modas e os ventos sopram pouco nesta direção, confundindo tristemente duas épocas que deviam permanecer contrastadas (o ambiente da ditadura e o da atualidade). o que mais anda no ar não prima pelo bom gosto qualificador. Certas letras parecem inventadas em cima do joelho por principiantes, não por poetas experientes, conhecedores do fenómeno poético e do gosto literário bem formado.
Evidentemente, a melodia que apareça a revestir banalidades surradas, pacóvias e popularunchas de tais letras sucumbirá à mesma banalidade, repetindo uns acordes caçados aqui e ali para compor um tema novo-velho igualmente para esquecer. Ai que saudades temos de autores como Zeca Afonso, Ary dos Santos e tantos outros que refulgiram com o dealbar da democratização! Paro aqui para, em homenagem, os recordar.

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