quarta-feira, 30 de março de 2011

O lugar dos idosos

Não basta discutir a sinonímia para reclamar que os idosos podem não ser «velhos». É preciso ir mais longe e notar que os costumes no nosso tempo não correm de feição para os seniores. Estorvam como trastes fora de uso sendo todavia reclamados para o lugar onde realmente uma necessidade grita por eles.
E eles acodem. São outra vez pais para os netos (e agora, felizmente, com outra disposição e maior disponibilidade), são caixa multibanco doméstica para a quantia que falta, são o biscateiro pronto para a bricolagem urgente ou o parecer oportuno. Então, sim, a família festeja por os seus idosos estarem ali ainda para as curvas e não arrumados no sótão.
Festejam eles próprios por se sentirem úteis, com lugar aberto. Mas quem cuida de lhes perguntar como se sentem sob o peso dos anos vividos, os desgastes, as queixas do corpo? Quem se dispõe a conter as pressas para conversar um pouco com os  idosos que vê cercados de solidão, ensimesmados e melancólicos, sentados pelos cantos, ansiosos de contacto humano para ficarem de repente animados, comunicativos, dir-se-ia quase rejuvenescidos?
Escasseiam os ouvidos abertos e multiplicam-se os «velhos» porque, de facto, as populações europeias em geral estão a envelhecer e a portuguesa não é exceção. Nem sobra teto onde caiba tanta gente reformada, aposentada, pensionista ou sem pensão nenhuma, pois a procura excede a oferta. Entretanto reina, com a força de um dogma, o culto das imagens de juventude, culto tão forte que parece fazer esquecer o infalível envelhecimento a quem há-de viver para tanto.
Diluiu-se a consideração tradicional em que eram tidos os idosos no seio das famílias e das comunidades. Nos países ocidentais, onde mais se implantou o consumismo e o culto da juventude, cresceu também, com a população idosa, uma tendência para encarar os «velhos» como refugos descartáveis do sistema de produção em crescente desumanização. Mas outra é a consideração e mesmo o respeito que envolve essa população nos países orientais.
Em algumas dessas sociedades, os idosos mantém uma autoridade e até um prestígio entre nós já surpreendente. São povos, no entanto, no limiar do consumismo e pouco interessados em erguer o ícone da juventude ao máximo esplendor, pois nem pressa têm de empurrar meninos e meninas para a idade adulta.  Podem afirmar, com mais propriedade do que nós, que quando um idoso morre, é uma biblioteca inteira que desaparece.
Realmente, é durante uma longa vida que se acumula e decanta a experiência do mundo. Saber ouvir as vozes da experiência vivida ajuda a melhorar o conhecimento do passado para melhor compreender o presente e perspetivar o futuro. Vale sobretudo para ativar as memórias.
Justa e certeira é, aqui e agora mais que nunca, a tese de Gandhi: via na forma como os animais eram tratados a marca de uma degradação da humanidade. O culto do novo em contínua (meteórica) renovação, na sociedade do desperdício, fica assim com a culpa de uma atroz desvalorização do ser humano. Será esta a dor que empana o olhar de tantos idosos?

quarta-feira, 23 de março de 2011

A ideologia do futebol

O futebol traz inerente uma ideologia que é particularmente visível embora poucos a notem. É a ideologia do capitalismo. Lembra-nos que a popularidade do futebol acompanhou o advento da publicidade, do marketing, dos media.
Tudo isso sinalizou a implantação crescente de uma mentalidade capitalista e do sistema socioeconómico afim em acelerado desenvolvimento após, digamos, 1950. No século do petróleo, entrámos no consumismo da era imperialista.
As regras do jogo no campo de futebol são, a nu, as do mercado clássico. Importa perceber, pois, a matriz ideológica que define esse jogo: entusiasma quem alinha na vontade de concorrer, isto é, de competir, partilhando essa vontade com os jogadores da equipa que o espectador apoia na exibição; exalta o herói individual ainda que o integre na equipa quando se torna necessário o esforço conjunto ao modo da matilha que se organiza para a caçada.
No campo de futebol triunfa, tal como no mercado, o protagonista mais forte, sendo mais forte o que dispõe de maiores recursos financeiros para comprar no “mercado” internacional os jogadores profissionais com palmarés recomendáveis. A competição alimenta o espectáculo e o espectáculo faz-se com cada golo introduzido na baliza. Derrotar o adversário concorrente, esmagá-lo e ganhar o jogo, ainda que à custa de investir gigantescas fortunas na equipa, torna-se o objectivo supremo.
O jogo serve para apurar um vencedor, o mais poderoso, e o aplaudir. Transforma-o num “escolhido”, bafejado com um talento raro, valiosíssimo. Se a vitória lhe sorriu, não proveio da sorte ou dos azares do jogo (porque a bola é redonda, o pontapé não aplica uma ciência exacta e o vento sopra em variadas direcções); assinala-o com uma estrela especial tal como os donos de grandes fortunas se sentem miraculados e tão próximos de Deus que o instalam em capela privativa na própria casa.
Mas a façanha do mais forte passa a valer no plano simbólico - o campeonato, a taça. O preço real de cada golo enfiado na baliza de cada vitória atinge níveis tão loucos que deixa os clubes arruinados. Depois de transformar o jogo (que é e deve ser actividade lúdica) em espectáculo consumível, os golos limitam-se a conceder vitória, fugaz porque logo tem que ser continuada-confirmada por outra.
Estimulando a competição pela competição, o jogo justifica a ambição individual e estabelece a desigualdade e a injustiça, lembrando que o capitalismo não é de essência democrática. Como no jogo do Monopólio, também no futebol se infiltra uma ideologia subliminar que interioriza a respectiva ética. As suas regras podem ser subvertidas por árbitros corruptíveis.
Assim o sistema capitalista e o futebol dançam tão bem o tango avançando abraçados pelo mundo que fazem seu. [Ilustração: pintura de Keith Malett.]

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sempre em Galiza

Os portugueses denotam uma certa relutância, ou indiferença, perante as hipóteses de relacionamento solidário, a sério, com os vizinhos da Galiza. É uma sensação que aparece no terreno, a um certo nível das relações intelectuais, à medida que descemos do Alto Minho para sul, especialmente a partir de Coimbra. Ao transpor as águas do Tejo, dilui-se nas brisas.
Talvez haja uma explicação para isso, uma explicação advinda do complexo de circunstâncias acumuladas pela história. Observando o documento cartográfico de 1066 (aqui ao lado), que indica a verde a velha Gallecia do período romano, pode-se ter uma primeira visão do assunto. Abrangia uma franja peninsular desde a Corunha, no topo norte, e terminava além de Leiria, embora outras fontes, porventura mais consistentes, se detenham na linha do Mondego.
Os amigos galegos gostam de nos lembrar que a Gallecia foi por muitos séculos o nosso território comum com capital na augusta Bracara. Eu, quem sabe se por força das minhas origens, acho que é fácil e bom gostar do povo galego, posto que tenha levado o pé ligeiro a Tui já com 18 anos e andasse nos 40 quando entrei a valer em contacto com a sua cultura (lembro-o aqui). Manifesto-lhes, a esse povo e sua cultura, uma solidariedade desvaliosa mas sincera, apoiando, se apoio me pedem, e lamentando atitudes de quem lhes responde com escusas e polidas reticências.
Comecei a sentir esta resistência há uns bons quarenta anos, quando a Galiza lutava por autonomizar (leia-se: proteger) a sua fala materna da contaminação pelo Castelhano. Uma porção de intelectuais portugueses ou desconhecia o berço de origem do Português ou, pura e simplesmente, virava as costas ao assunto. A nossa indiferença declarou-se ao nível oficial e diplomático aquando da organização da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, composta por oito Estados (Timor-Leste incluído)... e sem a Galiza.
Gostaria de pensar, sem saber o que pensar, que continuamos ainda virados para sul, em luta pela Reconquista, em assédio a Lisboa e projetados até Faro. Demoro-me, porém, a contemplar o povo irmão que temos a norte do rio Minho, hoje com uma pitada de nostalgia porque encontro num blogue de lisboetas motivo para evocação e saudade. Benedicto Garcia aparece ali a considerar que José Afonso e ele cantavam a mesma canção (de protesto) e que a Galiza, para Zeca, foi «pátria espiritual».
Não se lembrou aquele amigo galego que veio cantar ao Porto, no início dos anos '70, por convite meu. Tinha então creio que um único disco com quatro cantigas, editado em Barcelona em 1968, e pertencia ao grupo Voces Ceibes (Vozes Livres). Foi o comum amigo Manuel Maria que nos pôs em contacto (estava eu a publicar-lhe a primeira obra de poesia junto com outra, de outro poeta galego, Celso Emilio Ferreiro) e os caminhos ficaram abertos para novos  encontros.
Tantas lembranças a vir (e serão só minhas?!): Benedicto deu cá entrevistas na rádio, as suas cantigas entraram no ar, actuou ao vivo, estabeleceu contactos entre nós. Um deles foi com Manuel Freire, então com a «Pedra filosofal» em evidência. Logo, em 1972, visitou Zeca em Setúbal e começou a amizade luso-galega documentada com nome de rua em Santiago de Compostela, onde nasceu em 1947 o próprio Benedicto.