quarta-feira, 30 de outubro de 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Escrita criativa: exemplo


Trago hoje na mão um exercício de “escrita criativa”, género em voga. Tem fiéis apreciadores, que dispensa de leituras trabalhosas e de grandes investimentos intelectuais, e agrada aos “criadores” com um naco de imaginação e habilidade para extrair a história do buraco de uma agulha com a ponta da mesma agulha. Acontece também que tenho aqui ao lado um Fulano a incomodar-me porque, imaginem, não desiste de se contemplar de olhos fechados!
Quer que o ajude a realizar a proeza, embora eu o avise de que, tanto quanto sei, jamais alguém terá conseguido ver-se de pálpebras cerradas. Mas o F. vai teimando, arrebatado pela sua obsessão, e não desiste. Quer conhecer a cara com que ficará e irá aparecer aos pósteros depois de morto.
A obsessão agravou-se quando ele, colado ao chão diante do espelho, treinava a rapidez das pálpebras desejando chegar ao ponto de as encontrar fechadas estando ainda abertas. Pois não chegara aquele famoso cowboy do far west a ser mais rápido do que a sua sombra? Fulano não queria ficar-lhe atrás!
Mas ficou. Afligiu-se e, revoltado, não aceitou a derrota. Virou-se para a fotografia, recurso formidável.
Era estática. O instantâneo captava a imagem no centésimo de segundo em que a cena exterior se gravava no interior da câmara. E ali aparecia ele, finalmente, de pálpebras descidas, a fingir-se de morto.
Não era, certamente, a mesma coisa. Respirava, tinha as faces mornas, os beiços com alguma cor. Ora F. queria mesmo observar o aspecto final da sua fisionomia cadavérica, entendendo que, de corpo enfiado nas roupas, era a cabeça, senão apenas a cara, a derradeira lembrança que dele restaria.
Acrescia um pormenor. Ele estava prevenido contra os perigos da fotografia, os ludíbrios da iluminação sobre o objecto. A imagem estática introduzia uma realidade “outra”, não a realidade que procurava.
Ontem à tarde, diante do televisor, notou algo que via há anos no aparelho: a demora, de um segundo ou dois, que a tv repetia quando estabelecia ligação com repórter no estrangeiro. Fulano teima agora em arranjar alguém que o filme com câmara vídeo e, do outro lado do mundo, com ele online na Internet, lhe envie de volta as imagens em fluxo para o seu computador… que ele receberá com o bendito atraso!
E assim o leitor percorre o texto, chega ao fim e o que recolhe? Um pouco de nada. Nada exemplar.
[Imagem: de Lorenzo Muttotti, Brescia, 1954.]

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O futuro do Português

As previsões são sempre falíveis. Assumidamente, obrigatoriamente. Mas, avaliando as linhas de força da presente situação, façamos um pouco de prospectiva para indagar: que futuro pode ter a nossa língua materna?
Vou resumir algumas ideias que venho elaborando e sustentando, incluso neste blogue, sobretudo desde que a organização lusófona existe para servir uma qualquer finalidade (não me perguntem qual). A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (oito países: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor e Portugal, com omissão da Galiza onde não falta quem reivindique a pertença!), parece  sujeita a dinâmicas internas próprias de cada um que pouco deixam à conta de “comunidade”. Num breve relance não é possível ir além de uma avaliação global da situação “comunitária”, bastando lembrar a sorte que está a ter o novo Acordo Ortográfico para a deixar demonstrada.
Portugal ficou praticamente sozinho, com o Acordo pendurado na mão, e os maiores países lusófonos reticentes, sem pressa notória quanto à adopção oficial da nova ortografia acordada em 1990. As instâncias oficiais aplicam-na junto com alguma imprensa, mas amplos sectores nacionais, relutantes, mantêm-se firmes na recusa. O resultado, obviamente, é a barafunda ortográfica que entre nós reina.
Na confusão instalada, o escrevente às tantas nem atina na grafia correcta de um vocábulo ou de um verbo. A eliminação das consoantes mudas agravou as deficiências da escolarização existentes e não serviu ainda para garantir uma unificação ortográfica mínima. Mas as deficiências do sistema escolar, acumuladas ao longo dos anos em obediência a interesses políticos obscuros, implicaram-se também na falta lamentável de uma verdadeira “política da língua” com visão e verdadeiro rasgo.
Assim desembocámos na presente situação de autêntico descalabro. Sem excessivo exagero, pode dizer-se que os Portugueses estimam e conhecem a sua língua materna como se estrangeiros fossem. O falar e o escrever correctamente são já raridades preciosas que restam apesar das deficiências do sistema escolar e dos atropelos da comunicação social no quadro da geral decadência do país.
O Português vai sendo invadido por barbarismos, sobretudo ingleses, e a realização fonética vulgar, fugindo da gramática, atenua ou apaga mesmo a sonoridade das vogais, tornando a língua, antes vocálica, mais e mais consonântica. E pior: só uma pequena parte do nosso vocabulário será talvez ainda conhecida e um tanto utilizável pela população letrada. A parte restante jaz morta e arrefece na vala comum dos dicionários depois de ter brilhado com os esplendores de uma língua de cultura.
Com tudo isto, não estaremos a condenar à ilegibilidade as obras fundamentais da literatura portuguesa? E, rapidamente, a caminhar também para implantarmos no canteiro ibérico uma língua “nossa” e só “nossa”? As próximas duas ou três gerações, herdeiras das anteriores, decidirão se os nossos livros clássicos estarão ou não redigidos numa “língua morta”.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

É escritor porfissional?


Nunca me apeteceu ser ou vir a ser escritor profissional. É, pois, com alguma estranheza que me deparo com praticantes da escrita que afirmam, e logo nos seus começos, que querem ser “profissionais”. Por outras palavras, querem viver exclusiva ou principalmente do que as letras lhes rendam.
Aspiração legítima. O trabalho da criação literária, sendo diferente e deveras exigente, é trabalho a remunerar como qualquer um outro. Mas poderá ser mesmo “profissão” regular?
Tenho dúvidas. Sempre tive. Não consigo conceber a criação literária como ocupação diária com horário marcado, fins de semana, período de férias…
Concebo tão só o aparecimento de um autor subjugado por uma força que o amarra a um esforço maior do que a sua vontade e que ele realiza, sem ter outra saída, envolvendo a sua totalidade humana como quem se liberta da febre de uma pulsão imperiosa. Assim, mais ou menos, costuma sair a Obra com marcas de génio. Agora o contraste: um autor “profissional”, cultor de oficina, hábil em recursos de “escrita criativa”, que trabalha para lançar no mercado a cada ano obra(s) com quatrocentas ou quinhentas páginas…
Lembro muitas vezes, em conversas pessoais, que fui para o jornalismo porque não via outra profissão mais aceitável. No jornal praticaria também a escrita e eu já andava “naquele tempo”,
desde que publicara os livros iniciais, há bons anos, a colaborar na imprensa então enriquecida com suplementos literários. A literatura nem com cantos de sereia me daria para viver.
Era então capaz de gostar da literatura ao ponto de a amar. Amar deveras, sinceramente. E continuo sem mudança.
Creio mesmo que é preciso começar cedo, como leitor, a gostar fortemente de literatura. A distinguir e a saborear a expressão literária em prosas e poemas onde a arte da escrita fulgure com belos esplendores. Não é verdade que o autor, como escritor, será o que foi (e será sempre) enquanto leitor? [Imagem: pintura de porta em rua do Funchal, Madeira.]

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Em busca de alento

O leitor atento destas páginas deve vir notando o interesse, mesmo o fascínio, que certas palavras carregadas de história em mim despertam. Fascina-me realmente o que podemos encontrar devassando o que nelas se guarda. E assim terão notado quanto me atraía o vocábulo anima, que encontramos na raiz latina da alma”, a tal que os teólogos dizem eterna, e na animação que em tempo recessivo nos escasseia.
Porque a semântica de anima (sopro, ar; alento) aponta para respiração, fácil era perceber que o vivente animado tem alma” na justa medida da sua animação. Mas logo a respiração me guiou para o verbo folgar” que, como recordaremos, não passa de um folegar, dar muito aos foles do peito, portanto de uma animação. No entanto, outras descobertas novas se fazem devassando vocábulos de uso corrente.
A respiração também aparece no alento”, substantivo de abordagem não menos reveladora. Significa, sem segredo, força para respirar; bafo, respiração; força; ânimo. Ou ainda, por outra via - de (h)alenitu - que o Dicionário regista, exalação; respiração
Curioso é que ao falar de anima ou folegar, ou de alento, a semântica aponte de imediato, com impecável pontaria, para a função respiratória. A lembrar-nos, afinal, que é função impreterível de todo e qualquer organismo vivo que vai continuar vivo. Mas, com especial relevância, que é função a mais vital da espécie humana...
Logo, são diversos os vocábulos que aludem ao fenómeno vida, que é respiração, bafo, exalação. E “hálito”? (“ar expirado, sopro, viração, bafejo”, do lat. halitu); e “anelo”? (do v. lat. anhelare, “respiração ofegante”).
Na sua variedade, exprimem a admiração maravilhada que sempre rodeia o fenómeno da vida a eclodir em acto onde quer que se anuncie. Mas como compreender verdadeiramente o fenómeno? A inteligência humana aplica-se, esforça-se e acaba sem mais alento...
Avança pelos organismos vivos, vai do mundo biológico até ao inorgânico, lá onde se dilui a fronteira entre o último ser vivo, digamos um vírus, e os processos físico-químicos. A ciência esclarece mais e mais, identificando a alma teológica com a respiração natural do ser vivo. Mas se quiser explicar o fenómeno da vida tal como o conhecemos no planeta, talvez considere que a Terra foi atingida há milhares de milhões de anos por um asteróide portador de elemento fecundante, uma simples bactéria, trazida do respirar cósmico...