sexta-feira, 27 de julho de 2012

A crise e a moralidade

Um período de crise aguda costuma exigir, sem mais justificações, o sacrifício de liberdades e direitos sociais estabelecidos. O primeiro reflexo de tal sacrifício atinge os padrões da vivência moral que resulta do avanço da civilização em cada comunidade. Porém, as regras morais não mudam, dado que (cito): «Sem contestação, não se encontrará no mundo coisa alguma que tenha sofrido tão poucas mudanças como esses grandes dogmas que compõem o sistema moral.»
O trecho encontra-se em A Ideia de Deus, livro de um autor esquecido, Sampaio Bruno, que o publicou em 1902. Ora, na transição dos séculos XIX e XX, a crise que sobre Portugal se abatia, sendo diferente, não seria menor do que esta, atual. O pensador portuense situou a questão, escrevendo: «De facto, com o andar dos tempos e com o rodar da civilização, a moral depura-se, porque precisamente a ideia da igualdade (cada vez mais profundamente) mergulha e embebe as suas raízes. De maneira que a moral deixa de ser localista, regionalista, nacionalista, de classe, de raça, de religião - para passar a ser humana e genérica.»
A ideia da igualdade, diz Sampaio Bruno? Da igualdade como pedra de toque da Democracia? Aqui temos, então, uma porta aberta para chegarmos à contradição mais dilacerante do nosso tempo, o tempo das desigualdades em crescendo.
E todavia... «O homem, de instante para instante do seu desenvolvimento, compreende mais intimamente, de momento para momento mais se compenetra de que o carácter do acto moral consiste em /.../ não admitir retribuição alguma. O acto moral só é puro (isto é, só é verdadeiramente moral) quando nada recebe em troca.»
Sampaio Bruno, cristão que chegou ali a visionar uma sociedade sem classes, recorda, de Vitor Hugo, o célebre diálogo entre o padre Cimourdain e o general Gauvain, franceses em masmorra prontos para a guilhotina: «Gauvin redargue que, quando se haja dado a cada um aquilo que lhe pertence de direito, resta ainda dar-lhe o que não lhe pertença. Isto é, resta ainda a obrigação última: resta ainda a liquidar aquela suprema dívida dessa "imensa concessão recíproca que cada um deve a todos e todos devem a cada um".»
Sampaio Bruno cita o diálogo: «"Fora do direito estrito, não há nada. - Há tudo. - Eu não vejo senão a justiça. - Pois eu olho mais para cima. - Então o que é que há acima da justiça? - A equidade"».
«Mas só haverá Moral perfeita quando haja perfeita Igualdade.» Porquê? «Porque as verdades da Moral são uma só e única verdade.» «Aqui está a razão por que a educação moral falha em parte. É porque uns [homens] não são iguais aos outros.»

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