quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-2


Honra-se um autor de modesta condição como a minha colocado nesta prestigiosa companhia tendo embora em conta a diferença das respectivas estaturas. Na verdade, consagrei imensas energias a uma espécie de animação cultural que, a meus olhos, sempre integrou uma certa dimensão de participação cívica pro bono. Neste sentido, creio que uma pessoa, máxime um autor, não pode negligenciar ou truncar a relação com a sua comunidade sem grave perda para si e para a comunidade.
Olhando para trás, penso ver espelhar-se no percurso que segui a coerência do que foi ou terá sido o meu crescimento. Andei longamente a encanar a perna à rã, posso dizê-lo, mas, para minha desculpa, fiquei possuído desde a juventude pela tineta do pagador de promessas que ninguém fez mas que alguém teria que pagar. Animado decerto por um voluntarismo sôfrego, este rapaz, já sexagenário, e mesmo depois, ainda acudia, peregrinando com armas e bagagens, na defesa das causas públicas que encontrava despejadas nos baldios.
Documentada ficou a surpreendente antiguidade histórica do lugar onde nasci e de alguns outros topónimos da redondeza. Pois não tende o homem a considerar o seu lugar de nascimento como centro do mundo?
Do pequeno lugar de origem pude abranger a região que o envolvia. Até meados dos anos ’80, a Bairrada era entidade quase sem referência que não fosse coloquial. O vinho e o leitão punham os sápidos à mesa. Porém, para além disso, demonstrada ficou a existência, ali, de um vasto e rico património, também surpreendente, que teve méritos para integrar a minha região natal no universo da cultura.
Estudei as questões fundamentais da informação e do jornalismo pois, a trabalhar na Imprensa, precisei de enquadrar a prática da profissão nas funções da comunicação social no Estado republicano e democrático. Parei onde estou, a apalpar as paredes da liberdade…
Debati as questões da edição literária, da crítica e da recensão das novidades, do mercado livreiro, da tradução, da leitura pública e da divulgação dos clássicos… Cuidei do Português, que por aí anda a empobrecer-se tanto e tanto carece de bons amigos que o estimem…
Frequentei alguns ateliers de artistas estimáveis. Convivi com figuras proeminentes do neo-realismo (Mário Sacramento, Óscar Lopes, Fernando Namora, Alexandre Cabral, Álvaro Salema, Mário Braga, entre tantos outros, como Ferreira de Castro). Em 1962 (remoto ano!), ao entrar nas ficções, de um varandim de outra margem acusaram-me de mostrar maior pendor existencialista do que adesão à estética neo-realista que noutras páginas defendia. Acolhi o reparo na medida em que a eclosão do existencialismo literário ocorria entre nós ao mesmo tempo, mas isso não impediu a doação do meu espólio a este Museu, onde cabe no lugar que se vê.
Em suma, pouco tempo útil me sobrou para a criação literária de maior fôlego. Volumes de contos e crónicas são, julgo, o que pela quantidade sobressai na misturada da minha bibliografia (onde até figura um dicionário de autores). Por lá ficou, em amostra estratificada, um pouco de tudo, incluindo uns naipes de “histórias para crianças” – mais contos -, resultantes de incursão também encetada em meados dos anos ’80 que acompanhei com umas ideias ensaiadas sobre a matéria. Tudo isso foi decerto a mais “infantil” (e adulta, difícil, envolvente) “brincadeira” que pude experimentar.
Que fiz eu? Confesso que vivi, direi, tomando para mim o título da obra de Neruda que traduzi. Mas, vejamos: olha que confissão! O sonho chamou-me e pelo sonho andarei enquanto anima me restar, a exemplo de quantos temperam a vida com o seu grãozinho de loucura.
Cresci rodeado de livros e com eles (agora apenas com uns poucos escolhidos), quero continuar a viver. A viver e, felizmente, a resolver por fim uns problemas de coabitação. Livrei a casa do recheio das estantes, que o mesmo é dizer: acredito numa cultura viva e na função prestimosa das bibliotecas públicas. Que os livros, com cheiro ou sem cheiro, em papel impresso ou formato digital, cresçam, cresçam sempre e nos ajudem a crescer! [Na expo, com Erika Zavala -  do México um sinal / a brilhar em Portugal]

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