terça-feira, 1 de abril de 2014

Anunciação

Subitamente, hoje de manhã, ao dar com os olhos na rapariga, senti: a Primavera está a chegar!
Esquecera-me de que o Inverno haveria de terminar por fim e ela limitara-se a erguer a mirada do livro quando abri a porta do café, trocando comigo um breve olhar vagamente cúmplice.
Ao sentar-me numa mesa próxima, novamente os nossos olhares se cruzaram em reconhecimento ou saudação. Encontrava-a ali a estudar, matinando numa pequena rima de compêndios, em companhia de calculadora de bolso que, à sua direita, me afligia como um quadro torto na parede e, por isso, sem nos conhecermos, quase nos conhecíamos.
Mas o olhar da rapariga, esta manhã, parecia diferente. Uma anunciação. Vejo-a a sorrir (para si mesma?) e percebo no ar um frémito novo, seivas e sóis a acordar, uma ebulição recôndita a prometer aleluias.
Porém, não entendia o que a tornava diferente. Os seus olhos cor de mel cintilavam, irradiando luz como janelas iluminadas de uma casa aquecida por dentro. Neles, no clarão do seu brilho, podiam ver-se duas figurinhas de crianças a correr entre estevas para colherem flores e uma mulher de corpo maduro voluptuosamente reclinada, em doce expectativa. Apenas isso.
Todavia, aquele olhar abarcava as coisas nos seus lugares, aceitando-as com simpatia; saudava o ressuscitar da natureza no termo da hibernação – concluí eu, pedindo o café e desdobrando o diário. De facto, iluminava-lhe o rosto um esplêndido luar tropical, acrescentei, observando-lhe a epiderme que, revelando a carne escondida, parecia sorrir de contentamento, e os cabelos sedosos como plumagem de rola no cio.
Certamente, o estudo “não lhe rendia” esta manhã, primaveril em excesso para tanta da nossa invernia, e eu tardava a folhear o jornal novo sempre velho, procissão gemebunda de tristuras e misérias. Sabia bem contemplar a rapariga, recebê-las nas retinas como um aceno alegre e cordial, indício cósmico (enganador) de que os piores tempos já haviam passado.
E a rapariga não repelia a observação, agradava-lhe até, como se alimentasse no seu corpo uma fome secreta. Retribuía-os francamente, achando-os naturais, só não compreendendo bem, por certo, que ambos, cada um à sua mesa no café hoje quase ermo, estivéssemos em contacto através de olhares e, como idiotas, não nos apresentássemos a dizer olá, a comunicar oralmente.
/.../ Ela ia afundando mais e mais o rosto nas páginas dos seus livros, rabiscava apontamentos agora com expressão quase diligente. Erguia os olhos cor de mel e passeava-os pelo café, corria-os pela rua através das vidraças. Pareciam rir-lhe na cara luminosa. Ela sabia, de certeza, que “era” bonita, mas provavelmente diria que “estava” bonita, pois as mulheres poucas vezes acham que atingem o ser, basta-lhes o estar.
Eu tinha a sensação reconfortante de que a Primavera já triunfava sobre o frio e a noite, mas comecei a sentir também, de novo, que esta Primavera não nos traria os esperados frutos nem viria como devia vir. [Texto incompleto extraído do meu livro Som de Origem, 1ª ed. em papel: Lisboa, Livros Horizonte, 1984.]                

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