Assustou-se. Viu a sua sombra estender-se na rua, alongar-se prodigiosamente diante dos seus passos, muitos metros à frente. Tornara-se grande, uma pessoa altíssima: ocupava espaço excessivo, portanto… cuidado!
Sentiu-se em perigo. Parou, pensativo, a estudar a sombra imóvel, invadido por uma espécie de remorso, uma sensação de culpa. Daí o susto, o alarme.
O sol estava a pôr-se e o dia ameno naquele fim de tarde, mas, ainda assim, de súbito, o instinto acordara-o. Prevenia: estava a exceder-se, a expor-se a complicações, a experiência acumulada advertia-o: atenção, cuidado!
Não devia avantajar-se, ser maior do que era, e ele via-se prolongado em altura, ali mesmo à frente, cinco ou seis metros. De pouco ou nada valia pensar que era uma sombra que iria desaparecer com a noite ou que era figura irreconhecível, anónima. Mas ele estava a ver-se, reconhecia-se naquela sombra verdadeiramente assustadora, era dele, a sua figura estampada no passeio da rua, caminho dos seus passos.
Projectar-se em público envolvia riscos. Era um espaço habitado por gente privilegiada, possuidora de um dom qualquer, não por si. Ele morava do lado da multidão espessa, que inveja os privilégios alheios e briga contra quantos os têm, considerando que as figuras mediáticas constantemente em exibição vivem ricamente refasteladas na imoralidade e na devassidão.
Sentiam que o seu barco ia naufragar mas continuavam a acotovelar-se na praça-palco que ocupavam e o espectáculo prosseguia porque à multidão espessa pouco mais era dado ver. Mas era no ambiente das figuras mediáticas, ali, no espaço público, que estavam os sinais todos da decadência. Agora, como nos tempos de antigamente, a decadência aparecia quando a imoralidade, a devassidão, a homossexualidade se tornam de regra, a exemplo do que acontecia na capital helénica (apesar de “vencida, vencer”), eclipsada por Roma, antes sua colónia, outra metrópole apagada com a decadência do império…
Sim, ele lera uns livros, conhecia umas histórias, por isso se defendia rijamente do espaço público, com o qual nada queria assim dominado por quem fabrica diariamente a opinião dita popular comendo à tripa forra à sua mesa. Sim, ele temia deveras a projecção pública da sua figura, uma projecção é sempre uma ampliação e, portanto, uma duplicação (uma duplicidade: o ventríloquo
e o seu boneco). Pretendia simplesmente ser quem era, no seu tamanho natural sem retoques fotogénicos, efeitos de luz ou recursos de make-up.
Pretendia, afinal, evitar a selva onde havia licença para caçar todo o ano disparando contra o que apetecia abater. Ele apostava tudo em quem mais estimava e melhor conhecia: aquela figura vulgar que encontrava de manhã no espelho e que, na penumbra do anonimato, dentro da multidão espessa, queria continuar. [Foto - parcial - de Rod.Costa.]