sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Respondo por carta (aberta)

Caro amigo: não te peço concordância, apenas a compreensão que puderes dar-me. Eu sei, é já pedir muito, talvez demais. Mas estou simplesmente a pedir e no pedir, pelo menos, não quero ser peco.
Questionas o mutismo que percebes no teor dos textos aqui editados desde há umas tantas semanas em face de acontecimentos de grande relevo e retumbância internacional. Apontas-me a morte de Eusébio e a “bola de ouro” de Cristiano Ronaldo, sem esquecer os temas da crise feita de crises que devastam o mundo. Consideras estranho que assuntos de tamanho destaque fiquem aqui num silenciamento inexplicável, dado que o cronista escrevia opinando antes sobre o vasto temário que as “Etiquetas” apenas indiciam.
Sem dúvida, meu caro, o teu reparo justifica-se e eu admito-o. Mas... como explicar? Os acontecimentos do dia não têm novidade que preste, o mundo caiu, para o cronista, em confrangedora monotonia.
Que dizer do passamento de Eusébio, do imenso carpir beato de idólatras sobre urna do ídolo morto, ou da “bola de ouro” e lágrima de Cristiano que valessem um átomo mais do que rançosos verbos-de-encher, mais do que estafados lugares-comuns? Não sufocaste até à náusea debaixo das montanhas de papel impresso e das horas, dias inteiros, de rádio e televisão hipnotizadas por tais ocorrências? Mais e melhor: terás sentido, nas gravações de rádio e tv arquivadas e reeditadas, o contraste entre a compostura antiga do relator do jogo e o atroar do actual que aos berros faz passar o golo pelo maior arco de triunfo?
Pobre país com uma cultura onde jornais ditos de referência elevam à suprema categoria de “deuses” uns habilidosos de chuteiras e se dispõem a glorificar um deles como herói no panteão nacional. Triste mundo com uma civilização onde um jogador acumula milhões porque mete mais golos e serve à multidão a droga virtual que a multidão pede. Delírio insano que nem por se ter tornado tão colectivo menos insano será.
Meu caro, devo declarar este (des)interesse: nunca na vida comprei entrada num qualquer estádio; jamais li um jornal desportivo ou discuti pormenores do jogo-espectáculo. Sabes que venho praticando nesta coluna uma modalidade de jornalismo cultural continuando de algum modo o que fiz durante anos, em registo diverso, na prática profissional. Lembrarás também que escolhi o jornalismo aos 33 anos de idade vendo-o como profissão a mais próxima do que eu sentia amar, a Literatura.
Que mais poderei acrescentar? A decência nas relações interpessoais, sociais e internacionais é flor rara do deserto quando massas humanas conformadas, sem vontade nem perspectivas, avançam para a servidão pós-moderna. Onde teremos neste mundo outro Erasmo de Roterdão, igualmente humanista, que desperte as consciências escrevendo um novo e muito mais cabal “Elogio da Loucura”?

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