terça-feira, 22 de julho de 2014

O velho e o cão

Um velho caminha lentamente pela rua. Alto e magro, apoia a mão direita na bengala, atento aos desníveis do passeio tortuoso, e coxeia um pouco. Aparecem covas, buracos, declives, pedaços de cimento roto, pedras de lancil gastas, e o homem avança, cauteloso, tentando evitar quedas. 
Adiante uns metros, um cão fraldiqueiro, pequenito, sentado mas erguido nas patas dianteiras, espera enquanto a dona, trela na mão, conversa com pessoa assomada à porta. De repente, o cão fica atento ao avanço do velho. No seu olhar, além de atenção, há também uma carinhosa simpatia. 
Vê o homem aproximar-se passo a passo, pois carrega idade muita e fôlego pouco para governar as pernas bambas sobre as quais, mal seguro, dança. O cão parado, de olhos fitos, parece esperar a chegada da pessoa conhecida e amiga. Mas o velho, já próximo, não o nota, cuidando apenas de seguir rente aos prédios para evitar choques com transeuntes apressados ou distraídos, em grupo imóvel, de cigarros nos dedos a fumegar, e ele se desequilibrar, cair. 
Quando a perna esquerda do velho chega ao alcance do nariz do animal, ele está pronto. No instante em que a perna se imobiliza para logo seguir em alternância, cola o nariz à calça e aspira com força (será beijo canino?). Depois volta a cabeça, de olhar já entristecido, e vê o velho afastar-se. 
Talvez um dia o homem lhe tenha oferecido algum bocado de comida, uma carícia, mas esqueceu o gesto. O cão, porém, não o esqueceria. Ou terá pressentido no velho a tristeza de uma solidão maior que a sua, que tem a sorte de ser fraldiqueiro embora ature a dona que pára aqui e ali a conversar em vez de continuar o passeio. 
Faz supor que o cão pressente no homem tamanha tristeza, tanto desgarramento que gostaria de o beneficiar com amizade. Duas solidões compartilhadas teriam menos solidão. Mas o cão não sabe que o velho se desprendeu de tudo, até de uma amizade canina, e que o cantinho onde vive está repleto de ausências, saudades, lutos, memórias, sofrimentos e sem espaço para nada mais. 
Diferente é a sorte do sem-abrigo ancorado em frente do mercado municipal. Consegue viver bem com seis ou mais cães que o rodeiam habitualmente, todos em família sobre uns farrapos. Recebe a comida que as senhoras piedosas lhe dão para os animais e com eles come.

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