quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O sagrado em reflexão

A ordem das coisas sagradas não é hoje, ou pode não ser, apenas uma questão religiosa, matéria de especulação teologal. Sagradas podem, e devem ser, vidas humanas em risco, aspirações de mais alta justiça, mais liberdade, mais paz. O sagrado dos crentes coabita no mundo com o profano dos não crentes ao ponto de se (con)fundirem nas duas faces de Janus.
Aparentemente, os progressos científico e tecnológico, que permitiram conhecer a estrutura do átomo e a vastidão do cosmos, comprimiram o lugar antigo das religiões, pouco a pouco invadido pelas mentalidades modernas e os costumes da vida laica. Basta, porém, notar, por exemplo, os temas que vão correndo em filmes e romances populares, tão alienantes, recheados de magias incríveis, crendices retrógradas ou fantasias sobrenaturais, para de relance se perceber quanto mudou na paisagem da cultura religiosa vulgar. Ainda assim, note-se, sem paradoxo, a crescente agressividade que os manifestantes cristãos e muçulmanos europeus, acusando-se mutuamente de fanatismo, actualmente revelam.
Uma dimensão sagrada, qualquer que seja, parece inerente à condição humana normal. Sem se imbuir da noção do que é sagrado, proveniente de formação religiosa ou outra, sem deus, mas cultural e humanizada, as pessoas ficam privadas do atributo que supomos estrutural. Por isso, o problema do nosso tempo reside talvez no apagamento de uma formação que, em última análise, confunda educação religiosa ou cultural, ética e humana. 
Daí a interrogação antes posta: o que resta de sagrado no mundo, hoje? É perante o que temos de sagrado que se estabelecem os interditos, as obrigações gerais da ética, os princípios humanos basilares. Ora, o apagamento do que seja sagrado (quer dizer, do “sacrário”, lugar íntimo onde guardamos os valores supremos, imateriais, sem os quais os indivíduos e a espécie ficam sem defesa) expõe os povos a incalculáveis perigos. 
Não há dúvida, a barbarização dos costumes está a progredir e a (in)civilização do século XXI a descambar, avançando cegamente, conforme algumas vozes previnem, para uma nova Idade Média e, provavelmente, uma terceira grande guerra. 
As massas habituaram-se ao seu próprio aviltamento e à violência – nos campos de futebol, nos filmes, nos televisores – e praticam-na quotidianamente, de variados modos, nos ambientes familiares e nos espaços públicos. A decadência da Europa vai além da estagnação económica e da crise geral em que se afunda. Envolve os desvios sofridos pelos sistemas escolares, a fraqueza da criação e fruição cultural autênticas, o abandono de programas de elevação colectiva das pessoas e dos povos.

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