segunda-feira, 6 de junho de 2016

A passageira do autocarro

escultura.jpgNaquela manhã o autocarro já vinha cheio e na paragem ficou congestionado. As pessoas comprimiram-se, contrafeitas, no corredor e junto à saída, onde podiam estar de pé. O autocarro arrancou pesadamente e logo alguém anunciou que ia ali uma mãe com bebé ao colo.

Cena vulgar: quem ouviu permaneceu sentado, na lógica ilógica que torna uma regra que a todos incumbe obrigação de ninguém. Até os ocupantes dos quatro lugares obviamente destinados a grávidas, mães com filhos ou incapacitados em cadeira de rodas, continuaram ausentes. Então uma passageira de pé comentou: “Não sabe dar aos outros quem ainda menos sabe dar a si mesmo.”
Cabeças e ombros do grupo que se comprimia ondeavam com os solavancos e as travagens como limos em pedras escovados pela corrente fluvial. Outro passageiro, gracejando, introduziu o vernáculo popular. Apontou com o queixo e comentou: “Aqueles quatro nem com o rabo sabem ler!”
Também ele ia no grupo de pé. Olhou com atenção: a senhora que falara tinha no semblante uma serenidade especial. Aliás, no seu comentário parecia não haver a usual crítica ou censura, apenas um triste lamento perante a pobreza exposta.
Era invulgar. Mas ele sentiu no dito da senhora um eco, uma reminiscência que de súbito o ligou a uma vivência e mesmo a um conjunto semântico, palavras carregadas de sentido especial, e a memória acordou-lhe um tempo remoto. Bastante remoto, sim, de quando estudou história e filosofia dialéctica.
Trocou um olhar com a senhora. Realmente, poder dar e poder receber, incluindo a nós próprios, o que sobretudo nos falta e nos faz bem, é muito mais difícil do que parece. Era isto que ele presumia que ela quis dizer.
Ceder a outrem é também, dialecticamente, ceder a si próprio, pessoa entre pessoas decerto não menos carecida de tolerância bem como da compreensão que pode dar aos outros e que, afinal, nunca será melhor do que a que dá a si próprio. Aquela senhora mostrava, portanto, uma consciência dialéctica que lhe permitia iluminar estas questões. Entretanto, o autocarro aliviou-se numas paragens e ele conseguiu aproximar-se.
A senhora conversava com outra passageira e ele, ouvindo-a, confirmava as suas impressões. Porém, a outra alardeou: “Gostava de a ter como amiga!” Ele não se conteve: “E eu apreciaria ter uma mulher como a senhora por perto!”
Mas ela de repente chegou ao destino, saiu apressada e, já a seguir pelo passeio, acenou com a mão de um certo modo. Lembrou-lhe: como pretendia Vinicius de Morais, quando se encontra um novo amigo, não se conhece, reconhece-se. [Imagem: Arte em espaço público: escultura-abrigo.]

Sem comentários: