sábado, 16 de março de 2013

De dom até dono e domus


Ando a ser perseguido por umas palavras que me agoiraram o miolo. São antigas, mergulham as raízes no latim e provavelmente em outras mais antiguidades. Mas não é verdade que nas palavras se guarda a história do tempo que as fez e que, se nos dispusermos a um esforçozinho para as abrir, veremos a luz que têm lá dentro?
Comecei a empreender no vocábulo dom. Sentia-lhe, desde há tempos, uma esquisitice intrigante. Na escola primária habituei-me, como toda a gente, a vê-lo ligado a reis e outras figuras da aristocracia, depois também a bispos e cardeais e por fim, graças à democratização, a senhoras donas. No tira-teimas, lá estava abonada a semântica: donativo, dádiva, qualidade ou vocação; do lat. donu-, “oferta aos deuses” e, como título, do lat. dominus, “senhor, dono [de casa], possuidor, proprietário; chefe, soberano, árbitro, senhor (com sentido próprio e figurado)”.
Eis quanto foi preciso para ficar agarrado ao tema. O dicionário regista que “dono”, proprietário, provinha do lat. dominu- e remetia-nos para o “dom”. Ora dominiu-, domínio (propriedade, direito de propriedade; banquete solene, festim) conduzia a domina, “dona de casa, esposa, e também senhora, soberana”…
Neste ponto, tendo na mão o dom e respectivas derivações fui, inevitavelmente, até ao lat. domus (casa, morada, habitação, domicílio), que lembra a domus municipalis. Era evidente a correlação existente entre as partes deste conjunto lexical. Apontava para um facto de grande relevância histórica com especial significado.
O facto demonstra que o dom era adquirido pelos felizes, então muito raros, possuidores de bens terrenos, propriedades. Um rei, portanto, adquiria-o por possuir vastos domínios com povos, palácios e castelos. No período feudal esses domínios entraram em progressiva fragmentação (repetiam-se as doações régias), de modo que o número dos senhores “donos”, isto é, com “dom”, foi crescendo.
Mas acaso poderiam assistir a isso os grandes hierarcas da cristandade sem disputa, eles que, no esplendor das catedrais, coroavam as cabeças dos reis sagrando-os em nome da divindade? A Igreja também possuía bens terrenos (e não eram assim tão poucos), ainda que, alegadamente, o seu reino não fosse deste mundo: estaria numa transcendência. Todavia, os “príncipes da Igreja” chegaram a ser titulares de domínios celestes atribuídos pelo soberano absoluto, o papa.
É verdade, os príncipes da realeza e da cristandade, conservadores empedernidos, continuam a manter na actualidade o seu dom, ao passo que outros grandes donos do planeta o dispensam, abraçados como estão aos seus milhares de milhões ou de triliões, mas será de notar que os colonos romanos da antiga Lusitânia, sentindo-se decerto miraculados, dotavam muitas vezes as suas villae com uma capela, costume depois mantido por donos posteriores de palacete solarengo. E por aqui me detenho, sem atender a outras derivações de tão prodigioso dom. [Iluminura medieval: tocadores de sanfona.]

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