segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A “Universidade” de Gorki

capaGorki.jpgAgradam-me as lombadas de tantos livros que mantenho em casa ainda à espera de leitura. São dos mais escolhidos: passaram por clivagens sucessivas e estão comigo há longos anos para os ler ou reler. Eis porque só agora, com todas as delongas do tempo, posso chegar a este volume saído em Lisboa há mais de meio século.
É A Minha Universidade, de Máximo Gorki, volume de 322 pp editado em 1963 por Estúdios Cor, tradução de Patrícia Joyce. Decerto vacilei em demasia entre, por um lado, a previsão de uma obra com forte cunho testemunhal e autobiográfico (logo, porventura menor) e, por outro lado, o prestígio mundial do Autor. Pude confirmar: o lugar de Gorki encontra-se ali bem patenteado no fulgor da sua prosa.

Na verdade, a crítica enaltece o escritor de A Mãe e de A Confissão pela força com que comunica o que é natural na vida do mundo e a beleza do que é espontâneo com alguma transfiguração da realidade. Ora Máximo Gorki (Nijni-Novgorod, 28-03-1868 / Moscovo, 18-06-1936, com 68 anos), sem pais, começou muito cedo a vagabundear, que é como quem diz, viajar. Foi nesse contacto com a realidade nos ambientes sociais populares que teve, ainda adolescente, a sua “universidade” e se animou a publicar romances apenas com 15 anos de idade.
Quando esta obra saiu (em três tomos: A Minha Infância, Ganhando o meu Pão e este), em 1912-13, já era autor consagrado, com uma extensa bibliografia (teatro, conto, romance), conhecera a prisão e o exílio após tentame político contra o czar e viajara por Ásia, Europa e América. Em suma, estas páginas dão ao leitor a plena maturidade do escritor na figura de jovem desvalido mas ansioso por crescer e aprender. E o mundo foi para ele, realmente, uma universidade aberta.
Aprendeu que, “em quase todos os homens, coabitavam ineptamente e em desordem, as contradições, não só entre a palavra e a acção, mas também entre os sentimentos” (p.94). Ora, para os seus amigos “o povo era a incarnação da sabedoria, da beleza espiritual, da bondade do coração, um ser quase divino e único, depositário de tudo quanto era belo, justo e grande” e ele só via carpinteiros, estivadores fluviais, pedreiros, e não via esse povo mirífico, tão superior.” Pelo contrário, parecia-lhe “que era eles [os seus amigos] que incarnavam a beleza e a força do pensamento, que era neles que se concentrava e ardia o nobre e generoso desejo de viver para reconstruir a existência conforme os novos cânones do amor da humanidade.” (p.39)
Bastava-lhe estar uma hora sentado à porta da rua para compreender que “todos aqueles cocheiros, porteiros, operários, funcionários, comerciantes, não viviam como eu nem como aqueles que eu estimava, que eles não queriam a mesma coisa, que não seguiam o mesmo caminho.” (p.92) Mas ainda não era tudo: aparece alguém a declarar que “os intelectuais gostam de se agitar e desde sempre se uniram aos sediciosos” [que] “se revoltam por uma utopia.” Porquê? “O idealista insurge-se e, ao mesmo tempo, revoltam-se os que não prestam para nada, os patifes, os canalhas, e todos esses, por ódio, porque vêem que não há lugar para eles na vida. Os operários sublevam-se para fazer a revolução, têm necessidade de obter uma justa repartição dos instrumentos e dos produtos do trabalho.” (p.53)
Estes tópicos não avultam no contexto da obra. Porém, a crónica vai longa sem citar casos a reter: o apoio do amigo Korolenko a Gorki, a amizade deste com V. I. Lenine, o seu encontro com Tolstoi... Enfim, ponto final. [Imagem: ilustração da capa do livro, por Luís Filipe de Abreu.]

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