domingo, 26 de fevereiro de 2012

Ortografia: o conflito

As questões da língua materna são normalmente consideradas maçudas, estéreis ou mesmo impertinentes. Interessam apenas a uns coca-bichinhos que ninguém parece ter pachorra para aturar e que portanto ficam sozinhos a falar entre si. Mas de repente acontece a maravilha: a língua materna é assunto vivo, apaixonante, galvanizador da intelectualidade portuguesa!
Repete-se o fenómeno agora que entrou em plena vigência o Acordo Ortográfico estabelecido pelos países lusófonos. Estranhamente, tudo decorria conforme as disposições nacionais, sem pôr a ferver opiniões pró e contra, e a aplicação do Acordo avançava entre nós fazendo ouvir não mais que uns leves murmúrios de contrariedade. Teria deixado a língua de ser motivo de paixão?!
De súbito, entra em funções outro administrador do Centro Cultural de Belém, tropeça ali com a regra ortográfica em uso oficial e o rastilho começa a arder. Vasco Graça Moura era um renitente opositor da reforma e, apesar de se situar na área do PSD, partido principal do Governo, não hesitou em soltar um clamor. Bastou para incendiar as opiniões caladas.
Organizaram-se abaixo-assinados, movimento de cidadãos, campanhas na Net e na imprensa, todo um coro frenético a pedir a abolição do Acordo internacional que instituiu a comunidade lusófona (CPLP). Mas é tarde e, suponho, também inútil o «NÃO». Portugal (que tem direito irrecusável de não pagar as suas dívidas soberanas sem as analisar e discutir uma a uma) não tem tempo a  perder a discutir a questão ortográfica - esse espantoso drama das consoantes mudas.
Dispensando repetir razões (ver etiquetas), direi somente que a nova ortografia se tornou de facto obrigatória nas instituições do Estado, escolas, entidades públicas e pouco mais. Cada pessoa continua a poder escrever conforme entenda, com ortografia arcaica, digamos de há cem anos, ou atual, que ninguém lhe irá à mão por isso. Cuidando decerto em não confundir o código escrito com a oralidade, pois fala sem pensar na reforma ainda que a acate...
O amigo Vasco Graça Moura, escritor reputado, grande poeta e tradutor de clássicos (da última vez que nos vimos em Lisboa deu-me uma boa nova: estreou-se, começando a publicar por minha mão num suplemento literário mensal que dirigia em jornal de Águeda), embirre quanto quiser com o Acordo, tem esse direito. Mas ele, homem de cultura, sabe muito bem que usa hoje um Português notavelmente diverso, por exemplo, do que eu aprendi a escrever na escola primária. Desde então, passei por várias reformas e agora entro nesta...
A questão ortográfica não se me afigura assim tão dramática nem tão determinante. Nestes termos ponho a degradação a que chegou a língua portuguesa no país que a engendrou. Isso sim, é tão preocupante que já me perguntei se haverá leitores capazes de compreender, não digo Camões, Camilo ou Aquilino, mas tão só Eça, Ferreira de Castro ou Fernando Namora dentro de duas ou três gerações...

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