
Lembro-te sentada na cadeira do outro lado desta mesinha tão pequena que nos permitia a proximidade de mãos nas mãos, o olhar mergulhado até ao fundo no outro olhar, a intimidade da conversa sussurrada, cúmplice. Por vezes uma expansão de alma, uma recordação dolorida, uma lembrança a sangrar em carne viva soprava nuvens, a chuva batia e punha a pingar as tuas lindas janelas antes luminosas. E quantas vezes me emocionei também eu, contigo, sentindo-te mulher inteira e de verdade?!
Mas eram nuvens passageiras aquelas no céu que nos cobria. Em breve sorrias, de rosto erguido para mim, envolvida pelo beijo especial desta amizade que nos comove. Sei, sabemos, que em volta nos verão certamente como dois amantes apanhados num encontro furtivo, pois é atraente a tua figura de mulher madura, só não vêem que tenho anos que chegariam para ser teu pai…
…E nunca provei dos teus lábios, sabendo todavia que neles poderia colher o mel dos pólens das mais bonitas flores do mundo. Respeito, amiga, a tua condição de mulher cônjuge, o teu pudor de mãe. E rimo-nos de todas as suspeições, de todas as torpezas, hipocrisias e fealdades do decoro corrente, meras fachadas, que miram de soslaio uma amizade como a nossa e se põem a imaginar.
Ainda reina o preconceito: será digna a casada que tem um amigo e com ele se encontra e conversa? Serão realmente limpas as intenções de um tal homem? Enfim, poderá existir uma amizade pura entre homem e mulher e, para mais, casada?!
Ai, amiga, se esta gente soubesse que a nossa amizade é ternura estreme, amizade e ternura que vêm da sinceridade dos corações! A comunhão é, entre nós, plena e sem disfarces. Damo-nos um ao outro em entrega imaterial, felizes por existirmos sendo como somos e nos encontrarmos em perfeita sintonia.
Talvez esta nossa amizade seja amor, uma qualquer forma de amor, porque eu continuo atento à entrada e, momento a momento, vejo a tua cadeira vazia. A divagar, pergunto-me: alguém poderá sentir-se preenchido por uma mesma pessoa durante todo o tempo? Lembro, de Florbela Espanca, dois versos: «Quem disser que se pode amar alguém / durante a vida inteira é porque mente!» Porque a pessoa amada e a pessoa amante se transformam, deixam de ser as mesmas.
Querida amiga, confirmas-me neste ponto preciso: é normalmente nova, isto é, diferente, cada experiência de amor ou de amizade que cada pessoa empreenda, pois que a pessoa envolvida em cada caso é diferente. O que trocamos, amiga, não foi expropriado a ninguém. Avalia nesta base a falta que me fazes, aqui, para, como disseste, beber um café, nos ouvirmos ou abraçarmos, nos olharmos em silêncio, a sonhar com viagens ou a filosofar futilmente, soltando as imaginações no ar livre!
[Ilustração: escultura de Benson Park, Loveland, Colorado, jardim desde 1985 com mais de cem obras.]