Prometo, não vai ser mais um dos milhentos comentários ao caso de D. S. K., vitimado no seu luxuoso hotel nova-iorquino pelo reafirmado gosto de caçar carninha nova. Os amigos deste blogue sabem da pouca saída que nesta coluna têm os faits divers que fazem manchetes e emocionam os comentadores. Mas a desgraça do então ainda presidente do FMI abalou Paris e, aparentemente, a França inteira, a Europa e a América, pelo que tomo o caso apenas para avaliar até que ponto pode ser privada uma vida pública.
Trata-se de uma discussão centrada nos profissionais da informação que trabalham lidando com governantes, políticos, banqueiros, gente mediática ou mediatizada. Cedo os jornalistas se habituam a enfrentar a questão e a responder-lhe na prática, acatando assim ou negligenciando assado os preceitos do código deontológico aplicáveis a cada caso. E ninguém consegue evitar que esta nova questão, a do dito sr., se enrede e se torne polémica, cruzada por opiniões tão contraditórias quão os interesses em presença.
É preciso varrer a confusão e afirmar doutrina tão justa e exemplar que por si mesma se imponha. Dispensam-se arrazoados, basta aplicar o simples, o comezinho senso comum. Rareia hoje tanto que surpreende como flor de cacto a colorir o deserto.
A forma como o sistema judicial tratou o sr. D. S. K. suscitou desde logo comparações com o similar de tipo europeu. Este ficou a perder. A justiça norte-americana mostrou ser menos morosa, primando mesmo pela rapidez. Sublinhou, especialmente, que todos os cidadãos são iguais perante a lei e, portanto, tratados igualmente.
Mas foi isso, precisamente, o que mais parece ter empolgado as opiniões europeias (e daí os álibis: armadilha, conjura política). Abstraindo-se do próprio caso, escandalizaram-se com as imagens do indivíduo levado a juízo, algemado, ele, habituado ao maior luxo, um dos mais poderosos do mundo, ali feito um farrapo, abatido poucos dias depois de ter estado em Lisboa a dar ordens aos governantes e políticos desta pequena República ibérica. Então... e o respeitinho?!
Neste sentido, houve muita opinião europeia que lamentou que o sr. D. S. K. não tivesse tido o caso por cá, pois seria bastante mais bem tratado - oh, sim, bastante mais! A empregada do hotel seria detida e castigada por difamar o preponderante personagem, tão amável que até olhara para ela. E o grande homem partiria com desculpas e vénias de toda a gente.
Aqui atingimos o cerne da questão. As figuras públicas, ou mediáticas em geral, incluindo as mais poderosas, terão legítimo direito a estar acima da lei ou, no mínimo, a manterem sob reserva uma fatia qualquer da sua vida privada? Até que ponto uma figura pública conserva ou perde, pelo facto de ser «pública» e na medida em que o seja, o poder para fechar a porta à curiosidade pública e mesmo à coscuvilhice?
Na verdade, as figuras mediáticas aparecem numa contradição viva e encarnam um paradoxo: pretendem ter vidas algo privadas sendo públicas. Porém, para todos os efeitos - os fastos e os nefastos - quanto maior for a dimensão pública que uma pessoa alcance, mais pequena será a liberdade real que lhe resta. Pretender fugir aos efeitos nefastos é ilusório: quanto mais a pessoa tem nome e rosto na praça, mais poder confere aos outros sobre si mesmo.