quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Novos escritores têm lugar?

A minha leitura actual é um romance. Chegou-me, gentilmente oferecido pela autora. Já publicou uma nutrida fila de volumes mas só a notei ao receber, recentemente, um outro livro de autoria diferente que se debruçava em amável apreciação sobre esse conjunto literário posto em público.
E agora este romance. Comecei a lê-lo até que, umas páginas adiante, parei. Não é o próprio romance que mais me importa; é a própria obra tal como aparece editada e não o seu conteúdo que de momento me interessa avaliar.
Porque é um real caso de estudo, acho eu, sopesando na mão o volume: 220 páginas de bom papel, edição com chancela Gáudio e agradável grafismo. Não indica a tiragem feita mas terá sido reduzida e, quanto ao resto, deixa-se adivinhar: foi paga pela própria autora em loja de print on demand. Trata-se, portanto, de mais uma edição das que dificilmente aparecerão no mercado nacional normal.
O caso merece estudo porque corporiza expressivamente um facto singular que parece de explicação difícil. São cada vez mais numerosos os novos autores literários que se decidem, resignados, a publicar obra por este meio caro mas viável (de modo que se mantém surpreendentemente alta a cifra atingida pelos novos livros editados em cada ano no Portugal da austeridade). Tanta “facilidade” abriu a porta a qualquer pessoa com veleidades de  “escritor”, mas isso caracterizou o período inicial.
A situação mudou. Agora, mesmo autores qualificados optam por loja gráfica porque, aparentemente, não alcançam editora e querem as suas obras impressas em papel nem que seja com escassas tiragens e pobre distribuição. O caso será consequência da redução de autores portugueses praticada pelo conjunto das editoras do país, gulosas de best-sellers, em benefício de autores estrangeiros via traduções.
Todavia, esta situação atinge severamente a renovação da nossa literatura, que vemos “colonizada” na medida em que os novos autores verdadeiramente qualificados não alcançam a merecida visibilidade nacional, reduzidos como estão a edições e a divulgações assaz modestas, ou seja, distanciados do público leitor. O caso em foco torna-se exemplar.
A autora deste livro nasceu em Baleizão, Alentejo; licenciou-se em Filologia Românica em Lisboa, ingressou ali no ensino secundário em 1973, emigrou para Nova Iorque, mudou-se para Montréal, Canadá, onde ensinou francês, fez mestrado e doutoramento e foi docente da Universidade McGill. Em 1984 regressou a Lisboa e continuou na docência universitária ou superior. Ao seu primeiro romance, de 1998, seguiram-se mais onze obras (romances, contos, poemas), das quais uma em francês, e anuncia quatro “em curso de escrita”. Seu nome: Joseia Matos Mira. [Imagem: pintura - reprodução parcial - de Akzhana Abdalieva.]

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Em nome “da” civilização?

Um indivíduo ou um grupo, uma comunidade ou um povo, que caricaturam e troçam de valores principais ou ícones consagrados de outros povos não exercem singelamente o seu direito à liberdade de expressão. Avançam, queiram-no ou não, até mais longe. E nesse longe aparecem agora acumuladas consequências.
Naturalmente, nenhum direito é absoluto, ou seja, que pode reinar sobre qualquer outro. Pois não manda a boa lógica que as minhas liberdades pessoais cessam onde principiam as dos outros? Mas verdades destas, comezinhas andam a sumir-se por aí nos vórtices rodopiantes da confusão.
Vejamos. O gesto, repetido, de caricaturar e troçar de valores notoriamente consagrados por uma comunidade ou povo até pode demonstrar, em última análise, que a pessoa ou o colectivo do gesto não considera nada, absolutamente nada, sagrado. Eu, porém, nunca vi nem consigo imaginar alguém de consciência totalmente alheia ao que é ou pode ser sagrado (com ou sem vínculo religioso), mas, se tal aberração puder acontecer, o seu gesto desrespeitoso dará aos ofendidos o direito recíproco a reagir.
Neste ponto preciso, creio eu, temos o fulcro da questão que alvoroça e sangra o mundo. Quem troça e escarnece, com irreverente à vontade, do que outros têm como sagrado, demonstra que não respeita o sagrado alheio com alguma da facilidade com que prescinde de respeitar o seu próprio. Permite, no mesmo acto, que o vejam como vil intruso despojado de qualquer transcendência.
Todavia, a irreverência assume todo o seu impacto no gesto que pretende submeter o que é declaradamente diverso para o apagar. Provém de uma força beligerante, arrasadora e brutal, com vocação pretensamente planetária de carácter imperialista. Mas terá uma qualquer civilização, em nome “da” civilização, o direito de se considerar superior e suplantar uma outra?
Talvez esteja aqui a contradição que vai opondo, mais e mais, o ocidente cristão ao oriente islâmico (e sobretudo às comunidades jihadistas geradas em matrizes criadoras de antagonismos estratégicos), de acordo com o “choque de civilizações” prognosticado por Samuel P. Huntington, político norte-americano que viu nas diferenças culturais e religiosas dos povos o elemento detonador de conflitos, depois de Fukuyama teorizar acerca de uns eventuais “fins da história”. Passo a passo, regressou a guerra fria e, sorrateiramente, vai-se preparando o ambiente (só europeu?) para uma terceira conflagração. Acirrados uns contra os outros, os povos começam a armar-se com propagandas intoxicantes, incompreensões induzidas e aversões instaladas… antes de pegarem em armas.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Guilherme Camarinha: evocação

Foi, no seu tempo, um homem e um artista algo peculiar. Nasceu em Valadares, Vila Nova de Gaia, em 01-11-1912 (28 de Abril de 1913 no registo civil). Terminou em 1937 o curso de Pintura na ESBAP (Escola Superior de Belas-Artes do Porto), onde foi assistente entre 1962-1965, e dedicou-se ao ensino secundário em Guimarães. Destacou-se sobretudo na pintura afresco e na tapeçaria com obras de grande projecção, mas trabalhou também, de modo distinguido, o mosaico e a pintura a óleo. Em 1987 recebeu medalha de ouro da sua cidade natal e foi publicado um livro sobre a sua vida e obra.
Correspondeu amiúde a “encomendas” em tal medida que realizou poucas exposições individuais, pois se considerava “um operário no exercício da sua arte”. Só na igreja da Conceição (Porto), Camarinha pintou dez afrescos com 90 metros quadrados que levaram “um ano e meio a executar”. A sua arte em mosaico, que desenvolveu em contacto com um artista veneziano (de modo que espelha toques de expressão bizantina), enriqueceu numerosos edifícios em Portugal e no estrangeiro.
O crítico Joaquim Matos-Chaves situou Camarinha no segundo modernismo português, sublinhando nas suas obras o perfeito domínio de cada técnica, “onde um afresco é pensado como um afresco, uma tapeçaria como tapeçaria, um óleo como óleo”. Por outro lado, Amândio Silva evocou a admiração que desde cedo as suas obras causavam nos alunos de Belas-Artes do Porto pela expressão plástica pessoal, a sua modernidade. De facto, o artista gaiense integrou, no início dos anos ’30, o “Grupo Mais Além”, com Augusto Gomes e Domingos Alvarez, entre outros.
Ao longo dos muitos anos da sua vida, Camarinha executou quase duas centenas de tapeçarias para tribunais, paços do concelho, bancos e outras entidades nacionais e estrangeiras. Os cartões que concebia eram habitualmente elaborados na fábrica de Portalegre, o que contribuiu então, fortemente, para a reabilitação da respectiva técnica no espaço nacional. De alguma maneira, isso fez ecoar em Portugal um movimento que em França tinha à frente a fisionomia de Lurçat. E lembra a peculiar relação estabelecida pelo artista com a cultura francesa.
Nas suas obras abundam sinais da herança greco-latina, numa linha neofigurativa com citações frequentes de temas clássicos em que se fundem e confundem especiais efeitos de teatro e de literatura.
Conheci-o, já idoso, e conversámos umas vezes. Guilherme Camarinha, apegado a um passadismo irredutível, lamentava a Revolução Francesa (isto é, a perda do ancien regimejunto com toda a evolução posterior da história do mundo. Morreu em 1994, na sequência de um atropelamento. Ia nos 82 anos. Viveu sozinho na sua casa, em Vila Nova de Gaia, e conservou-se celibatário embora deixando descendência. [Imagem: tapeçaria do Autor alusivo a tema histórico.]

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A onda passou e o que ficou?

Há cerca de um mês, uma poderosa onda emocional varreu a Europa e parece que todo o Ocidente. Atroou praças e avenidas o grito das multidões que exigiam “liberdade de expressão”. Os ecos de tamanho clamor popular devem percutir ainda em algumas memórias menos frágeis, chega agora o momento de considerar o acontecido.
Manifestar o direito público à liberdade de expressão evidenciou desde logo a índole conformista do gesto: encobria que a informação da actualidade fornecida pelos media, sendo incompleta, parcial, tendenciosa, serve cada vez mais a Verdade Única do pensamento dominante. Resultou numa manobra descaradamente populista e, na presente situação da prática objectiva do jornalismo, também hipócrita e algo cínica. A informação e o jornalismo estão sob um crescente controlo que filtra o que aparece na imprensa, na rádio e na televisão, em obediência a um breviário de “verdades” assentes contra o que seja tomado como de esquerda.
Defender a liberdade de expressão no actual contexto? Seria pouco, se isso valesse a pena. Muito melhor seria denunciar a manipulação, a parcialidade, o seguidismo massificador da informação que as empresas de comunicação social servem ao público e pedir outra, diferente, capaz de ouvir sempre o “outro lado” das questões.
O que aconteceu acirrou os ânimos já aquecidos pela conflitualidade atiçada entre radicais muçulmanos e cristãos; o radicalismo islâmico ganhou mais base e a direita europeia, festejando, cresceu. De súbito, a União Europeia viu-se a cair nos braços abertos da América. Com os seus milhões de desempregados e a baixa dos salários imposta pelos programas da austeridade + estagnação económica, a zona euro dispensa a barateza do “canalizador polaco” e a emigração clandestina da margem sul do Mediterrâneo, pelo que se propõe rever o acordo de Schengen da livre circulação, até porque a ameaça jihadista também mora cá dentro.
Este velho e retalhado continente ficou mais inseguro e ameaçado, além de mais intolerante e xenófobo, isto é, mais afastado da Liberdade, Igualdade, Fraternidade carimbada nos direitos humanos. No mundo de hoje, o terrorismo, venha de que lado vier e que sinal tiver, presta-se a aproveitamentos oportunistas e a conspirações obscuras de interesses ideológicos e políticos contraditórios, em função de estratégias e propagandas mistificadoras tão confusas que já parecem compor um cenário pré-bélico. O jornalismo de uma imprensa livre iria naturalmente investigar cada situação, mas, nas presentes circunstâncias, nem espaço lhe sobra para questionar, por exemplo, porque foram abatidos os alegados dois irmãos do atentado ao “Charlie”, tal como o indivíduo que interveio na loja kosher, assim como abatidos foram, sem interrogatório policial nem julgamento, Sadam Hussein, Khadafi ou Bin Laden.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Foto de Moisés Leal Schini, Brasil, distinguida no Hamdan International Photography Award, 2014