quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Museu do Neo-Realismo

Encontra-se perto de Lisboa, em Vila Franca de Xira, foi criado em 1990 e tem méritos para ser mais conhecido. Quer dizer, mais conhecido e, realmente, apreciado pelo país culto. Porque é museu de índole única: focaliza os movimentos literários portugueses do século XX e, por natural abrangência, o vasto quadro da cultura envolvida.
Conforme a designação indica, o Museu focaliza sobretudo o movimento neo-realista português, tendo crescido com base num centro de documentação com arquivo e biblioteca. Recolheu a seguir numerosos espólios de escritores, artistas e casas editoras, além de arquivos documentais, audiovisuais, museológicos (pintura, escultura, etc.) relacionados com aquele movimento. Alguns dos primeiros espólios, naturalmente, foram marcantes: Manuel da Fonseca, Alves Redol, Alexandre Cabral, Soeiro Pereira Gomes e muitos outros.
Na verdade, ao Museu do Neo-Realismo foram já doados acervos de autores como Alexandre Babo, Álvaro Feijó, Antunes da Silva, Armindo Rodrigues, Arquimedes da Silva Santos, Carlos Coutinho, Garcez da Silva, Faure da Rosa, Joaquim Lagoeiro, Joaquim Namorado, José Ferreira Monte, Jorge Reis, Júlio Graça, Leão Penedo, Manuel Campos Lima, Mário Braga, Orlando da Costa e outros. São uma “galeria” (em crescimento) dos vultos de escritores e artistas que marcaram o neo-realismo como o esteio principal da nossa literatura no século passado. Todos, por sinal, bastante ligados à parte centro-sul do país, o que pode levantar a pergunta: e então, os autores do norte?
O movimento neo-realista surgiu em Coimbra, quando eclodia a Segunda Grande Guerra, em torno da revista “Vértice” (lembre-se: enfrentando toda a repressão da ditadura). Rompendo com o “presencismo” instalado e inovando energicamente, o grupo inicial (Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Mário Dionísio e outros) impôs a nova estética literária nos variados campos da criação artística e intelectual portuguesa daquele tempo. Pedra angular do movimento neo-realista foi sem dúvida a colecção “Novo Cancioneiro”, recentemente reeditada pelo Museu do Neo-Realismo em edição fac-simile.
O Museu promove outras edições, nomeadamente monografias relacionadas com as exposições documentais periódicas que realiza. Organiza também exposições itinerantes (sobre Manuel da Fonseca, Alves Redol, por exemplo), enquanto atende investigadores e visitantes nacionais e estrangeiros. Recolheu ainda os espólios editoriais da revista “Vértice”, dos jornais “O Diabo” e “Horizonte”, e da editora Cosmos, e os espólios artísticos de José Dias Coelho (1923-1961), de Jorge Oliveira e do arquitecto Castro Rodrigues. Além disso, o Museu possui um vasto conjunto de obras de relevantes artistas plásticos (Júlio Pomar, Lima de Freitas, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa, Mário Dionísio, Nuno San Payo, Manuel Ribeiro de Pavia, Cipriano Dourado, Avelino Cunhal e Alice Jorge), bem como arquivos fotográfico, audiovisual e outros.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

As leituras do leitor

É facto indisfarçável: o rol de livros que aprecio nesta coluna em breve nota de leitura vai crescendo. Na maioria são obras publicadas no século XX e só uns poucos são novidades literárias ainda frescas. Ora isto resulta de duas ordens de razões que pedem uma razoável explicitação.
Por um lado, conservo ainda uma quantidade de leituras por fazer, ou refazer. As sofreguidões dos anos vividos impediram-nas ou adiaram-nas, de modo que uns tantos livros escolhidos permaneceram comigo como salvados. São agora uma excelente companhia e lenitivo para qualquer monge laico que se retira do bulício e no silêncio da escrita alheia busca a deslumbrante cintilação das obras mestras.
Mas, por outro lado, desde cedo me habituei a registar as minhas impressões do que ia lendo. Ler é também escrever (e a recíproca vale igualmente), o que lembra a regra do “quanto mais intensivo é o leitor mais facilmente se transforma em autor” conforme parece acontecer amiúde na praça literária. E, sem dúvida, é maximamente gratificante para o leitor este acto de enaltecer a obra admirável que o deixe maravilhado.
Assim tenho vindo a comentar autores de obras como Romain Rolland, Thomas Mann, Hermann Hesse, Boris Vian, Johan W. Goethe, Mark Twain, Ken Robinson. Todos estrangeiros, é certo, mas aparecem também portugueses e brasileiros: Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Alexandre Guarnieri, Pires Laranjeira, António Canteiro… Todavia, um aspecto que para mim é o mais significativo encontra-se na sugestão contida nestas notas e que é....
Pretendo sugerir que vale bem a pena virar as nossas atenções para a literatura que ficou publicada e consagrada no século passado, digamos até 1980, aproximadamente. Pouca ou nenhuma dessa literatura se encontra hoje no mercado. O interessado procura-a em vão nas livrarias; se tentar os alfarrabistas talvez neles consiga o que deseja.
Quer dizer, entre os efémeros sucessos literários da actualidade (de autoria dos fabricantes de best-sellers de cada mês aqui repetidamente desmistificados), e as obras que se consagraram no século passado à luz de diversa exigência, eu não hesito na escolha. Não as tem ao alcance o interessado nas redes do comércio normal? Recorra às bibliotecas públicas!
Nas bibliotecas públicas os leitores são convenientemente atendidos por pessoal habilitado. Têm serviço grátis e podem inscrever-se como leitores, o que lhes permite a leitura domiciliária. Se tudo isto os não conforta, que mais pedirão os leitores? [Imagem: pintura de Almada Negreiros]

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Antropoemas: “até que…”


O regresso de Alexandre Guarnieri à poesia acontece com um algo epifânico Corpo de Festim. Este seu segundo livro – após Casa das Máquinas, Rio de Janeiro, 2011, que comentei aqui – traz um subtítulo expressivo: Antropoemas. Mas talvez o plural fique ali a sobrar para o leitor capaz de perceber na obra o poema unitário que nela se contém, afinal uma antropogénese poética.
Obra rara, portanto. Não por abolir as maiúsculas dos textos (excepto no poema final) e usar sinais gráficos – barras, parênteses, colchetes, vectores: sinalética pessoal – ou grafar nomes próprios em itálico. A raridade da segunda obra de Alexandre Guarnieri avulta porque evoca as etapas que conduziram ao nascimento da humanidade na natureza, “até que…” 
Sim, “até que…”, na sucessão cataclísmica de fenómenos cósmicos, ou seja, após o big bang primordial, se formou o ambiente terrestre, matriz da vida, no terceiro planeta deste Sol situado numa franja da Via Láctea. Corpo de Festim (inédito, a sair em breve no Rio de Janeiro) consagra o primeiro capítulo ao tema: átomo de carbono e, logo, a sangue, suor e celulose; útero, incubadora, até atingir terra firme. 
O Poema invoca portanto a maravilhosa epopeia do nascimento da humanidade com uma força quase épica que se expande no capítulo seguinte. O corpo vivo, formado por evolução milenar, lembra-me a “casa das máquinas” com seus órgãos internos, filtros, baço, rins, fígado, coração, pulmões, e uma mecânica de fluidos, sangue, suor, lágrimas, saliva, sémen, leite materno, urina, pus, etc., e pele, cabeça, ombros, joelhos, pés, ouvidos, olhos, rosto. De facto, “darwin não joga aos dados, mallarmé sim”… “até que…” 
Os elementos anatómicos são aplicados no Poema de tal modo que aparece construído como um organismo textual dotado de membros e respiração. Logo, o Poema humaniza-se. Mas no terceiro e último capítulo, “vigiar e punir” (onde sobressai o poema “cotodianometria”), sobrevém o trágico desgarramento que a imagem da capa explicita – a degradação do Homem acorrentado. 
Corpo de Festim mergulha finalmente nas tragédias humanas do nosso tempo com expressões de violenta rejeição, repulsa, horror. Cito: “Não há (…) algo que resolva o medo a náusea o mal estar da civilização”, “quando a doença e a cura, indissociáveis siamesas, já são partes da mesma mistura” (pág. 46). Uma saída: “desaparecer de vez” como Houdini, o famoso mágico. 
Alexandre Guarnieri (n. Rio de Janeiro, 1974) tem o cuidado de advertir, em parte inicial da obra, que ali “há páginas em que apenas a aparência é pueril / decifrá-las nem sempre é fácil, há vários níveis de sentido ou, ainda, na entrelinha, o seu sentido” (pág. 9). E tem a consciência de que alguém, “se atravessa a ponte / abdica de um dos lados” (pág. 48). [Nota: os números de página citados são da cópia de trabalho.]

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014