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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Leitura mata Literatura


Uma investigação de peritos em matemática, anunciada recentemente, analisou o enredo de uma quantidade enorme de romances publicados e, suponho, em leitura na actualidade. Não leram tal quantidade de ficção. Elaboraram um algoritmo, aplicaram-no aos textos e concluíram que existem apenas seis formas básicas de ficções, não mais.
Inspiraram-se em Kurt Vonnegut, escritor dos EUA, autor de uma divertida palestra sobre o tema, porque, sem histórias novas para narrar, como bem sabemos, as ficções andam a repetir-se de mistura com minguados recursos a ingredientes e temperos. O mundo dos consumos literários estagnou de tal modo que a Academia Sueca, ribalta do prémio Nobel, já teve de ouvir que não resta mais diegese fresca para servir. Ficções românticas, científicas, policiais, de espionagem e outras debatem-se com receituários esgotados e escrita criativa quanto baste.
No entanto, o mercado livreiro não aparenta crise. Os escritores escrevem, as editoras publicam, os livros amontoam-se por todo o lado e começa a falar-se de uma “pós-literatura”. O que pode ser ou será mesmo… isso?
Assim se faz lembrar o caso de Albino Forjaz de Sampaio, autor tão popular no início do séc. XX português que foi acusado de ser autor de tanta leitura em circulação que estava a matar a Literatura (ler crónica de 31-10-2016). O tema é interessante, logo irrecusável. Até que ponto um gosto padronizado resultante das leituras populares pode rebaixar o nível da educação estético-literária das populações?
Vejamos de relance a situação. O número de editoras cresceu exponencialmente no país mas são as editoras principais, presentes no mercado, que o abastecem com abundância nunca vista. As fictícias, simples chancelas, ou “marcas”, praticam tiragens ínfimas de cada obra (são, frequentemente, edições dos próprios autores e, portanto, nem chegam, ou mal chegam, ao mercado).
É, pois, do lado da edição comercial – altamente concentrada em grupos – que chovem infindos lançamentos de ficções e mais ficções pleonásticas, meras repetições assinadas por nomes internacionais nobelizados, celebrizados, aclamados por milhares ou milhões de leitores-consumidores. São autores de obras extensas como léguas da póvoa, os tradutores arregaçam as mangas e têm que dar o litro. Os leitores nem tanto: desistem e deixam a coisa arrefecer no arrumo doméstico.
Aumentam os desperdícios de papel e da celulose? Estará a degradar-se o gosto literário dos leitores-consumidores desta produção editorial cacofónica? E sairá daí, concretizada, aquela predita “pós-literatura”?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O poema de Maiakovski

“Na primeira noite, eles aproximaram-se e colheram uma flor do nosso jardim. E não dissemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. / Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.”
Maiakovski é, de longe, mais conhecido mundialmente como autor deste poema do que como autor de Os Banhos ou outros livros seus. A força poético-dramática da mensagem contida nestas poucas palavras torna o poema absolutamente notável, inesquecível. Celebrizou-se ao ponto de ter sido glosado por variados autores: Martin Niemöller, Bertolt Brecht e outros, apelando sempre para uma resistência cidadã contra a invasão de qualquer tirania
; o mais recente será talvez Cláudio Humberto, brasileiro, com poema de 09-02-2007, que começa: “Primeiro roubaram-nos os sinais, mas não fui eu a vítima”.Vladimir Maiakovski nasceu em 1893 e morreu em 1930. Martin Niemöller (1892-1984) parece ter aparecido com a sua glosa em 1950, quando também a de Brecht (1898-1956) surgia, embora Niemöller possa ter aflorado o mesmo tema em 1933, após Maiakovski falecer. Prevenia: “Primeiro vieram buscar os comunistas e eu não disse nada pois não era comunista. Depois vieram buscar os socialistas e eu não disse nada pois não era socialista. Depois vieram buscar os sindicalistas e eu não disse nada pois não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus e eu não disse nada pois não era judeu. Finalmente, vieram buscar-me a mim – e já não havia ninguém para falar.”
Realmente, o poema de Maiakovski começou a circular pelo mundo em meados do século XX, quando os países europeus se reconstruíam a custo, erguendo-se dos horrores sofridos com a Segunda Grande Guerra, já sem Hitler e o fascismo de Mussolini na Itália mas com Franco ainda a reinar em Espanha. A divulgação do poema veiculava portanto uma rejeição apelativa de mais ditadores, guerras, destruições, e vem de novo à memória de quem lobriga no seu horizonte idêntico perigo. Como foi o caso de um texto de opinião de Tiago Moreira de Sá («Público», 29-11-2016, p. 23, tit. «Donald Trump e a lição de Martin Niemoller»).
Moreira de Sá cita Niemöller e
repete o argumentário corrente do discurso anti-Trump mas omite o autor do poema original, o que é grave. Deixa em suspenso duas hipóteses: involuntariamente, por escassez de cultura literária, ignora que o poema até celebrizou Maiakovski; ou, voluntariamente, por um poeta soviético, logo comunista, provocar urticária até em quem está, como ele se diz, com tanta preocupação: “pode estar em causa a qualidade da democracia na América”. Ali, na pátria da Democracia Modelar, onde por sinal uma candidata à Presidência com mais de dois milhões de votos cidadãos do que o antagonista perderá a eleição por decisão, talvez, dos Grandes Eleitores, 280 votos! [Imagem: desenho de Emerenciano.]

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Língua portuguesa e Literatura

A cultura, nomeadamente a cultura literária, não vem somente nos livros. Aliás, cada vez menos os milhares das novas edições que se registam em Portugal trazem no miolo substância que realmente valha a pena ler. Em alternativa, olhemos portanto, ao menos como quem espreita, algo do que vai saindo em revistas periódicas.
Atidos apenas a publicações impressas (i. e., em papel), notemos o panorama das revistas académicas. Surpreende. Continua animado e extenso, vigoroso e rico, como que alheio à expansão dos formatos digitais.
Nestes termos, saúde-se a “Revista de Estudos Literários” que o Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras de Coimbra vem publicando anualmente. Saiu o nº 5, relativo a 2015, coordenado pelo Prof. J. L. Pires Laranjeira. Conta 700 pp e traz no sumário um naipe de ensaios de especialistas da área temática deste volume dedicado ao tema Literaturas africanas de Língua Portuguesa.
Os textos aparecem arrumados nas secções Temática, Não-Temática (resultante do projecto que elaborou o Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa), Profissão, Arquivo (última entrevista de Manuel Ferreira concedida a Lopito Feijóo, inédita), Recensões e notas sobre os autores dos textos. Em nota prévia, o Prof. Carlos Reis sublinha a “área muito ampla de produção literária, com manifestações desiguais” nos países africanos de língua portuguesa. Neste sentido, é naturalmente maior o relevo aqui dado a escritores de Angola, Cabo Verde ou Moçambique do que a Guiné-Bissau ou S. Tomé e Príncipe. Também, entre os autores mais focados, se distingue Manuel Ferreira, que Pires Laranjeira, na introdução, evoca justamente como “cabouqueiro, divulgador, editor, professor, cavaleiro andante das sete partidas, apaixonado das cinco literaturas [africanas], referência mundial incontornável”. Mas outros autores são estudados: Domingas Samy, Mia Couto, Paulina Chiziane, Eduardo White, João Melo, Alfredo Troni...
São perto de duas dúzias os autores destes estudos: Pires Laranjeira, Luís Kandjinho, Inocência Mata, Ana Mafalda Leite, Carmen Lúcia Tindó Secco, Francisco Topa, Mário César Lugarinho, Solange Luís, Rui Guilherme Silva, Majda Bojic’, Fátima Mendonça, Miguel Filipe Mochila, Rosinda Aires Bezerra, Ana Belém García Benito, Jorge Valentim, Elena Brugioni, Inês Nascimento Rodrigues, Laura Padilha, Ana Teresa Peixinho, Daniela Côrtes-Maduro, Maria Eduarda Santos e Marisa das Neves Henriques.
Estes nomes indiciam a diversidade das proveniências nacionais dos autores dos ensaios inseridos neste volume, sugerindo de algum modo a amplitude e a vitalidade da língua portuguesa em África, no Brasil e, enfim, no mundo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Forjaz de Sampaio e Lisboa

Não será saudosismo ou algo que se pareça. Será tentativa de confrontar a impressão de leitura que fiz muito jovem com a leitura que pude repetir agora, quase setenta anos depois. A primeira impressão foi forte, marcante, inesquecível; e a de agora?
Mas vou iniciar o comento recordando que, ao consultar o livrinho de pequeno formato
A Tipografia portuguesa no século XVI, me recordei de duas leituras marcantes. O autor do livrinho (ed. Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1932) era Albino Forjaz de Sampaio, autor de Palavras Cínicas e de Lisboa Trágica, dois títulos que me ficaram na memória.
Estes livros circulavam e ainda eram citados no meu ambiente natal, onde o estereótipo da “cidade” como antro de vícios e a “aldeia” como jardim de ventura se mantinha após a Segunda Grande Guerra. Albino Forjaz de Sampaio (Lisboa, 19-01-1884 / 13-03-1949), jornalista aos 16 anos na “Lucta”, cedo ficou a conhecer o submundo das vielas da capital. Grande amigo de Fialho de Almeida e Brito Camacho, foi autor de uma bibliografia torrencial, mas aqueles dois títulos deram-lhe imensa projecção e popularidade.
Palavras Cínicas, de 1905, pessimista à Schopenhauer e depressivo à Fialho, foi dos livros mais vendidos no Portugal da época (teve 46 edições); Lisboa Trágica, de 1910, subintitulado “Aspectos da cidade”, atingiu apenas sete edições ou pouco mais.
Forjaz de Sampaio dedicou-se a seguir, entre 1920-22, à recolha e estudo de teatro de cordel conseguindo que o mundo literário reconhecesse essas obras de expressão popular. Começou a deixar de ser, como pretendia, um “jornalista levado dos diabos”, para se afirmar um distinto bibliófilo e publicar
Como devo formar a minha biblioteca, obra que perdurou como manual recomendado. De facto, coleccionou apaixonadamente os nossos autores clássicos de Quinhentos, aos quais rende tributo no livrinho acima citado sobre a história do livro e da impressão em Portugal, de tal modo que, em apresentação, o antigo jornalista pôde acrescentar ao seu nome “Da Academia de Ciências de Lisboa”.
A honra que lhe foi concedida pela Academia não calou os detractores (diziam-no autor cuja “leitura estava a matar a literatura”). Ora
Lisboa Trágica, relido na velha reedição de 1940, traz a epígrafe de Fialho: “…esta imensa cidade de quatrocentos mil habitantes e seis milhões de egoísmos”. Saboreáveis, hoje, são os dois prefácios do autor, que nota: desaparecem os “homens integrais”, baixa o “sentimento da Honra”, “as vacas já não andam pela rua a distribuir leite”; naquele tempo [1910] “desconhecia-se o foot-ball e o cinema” (sic), agora “há o pontapé na bola e as fitas policiais”, mas jogar “antigamente era um crime”…

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A plasticidade da Crónica

A vontade de cronicar persegue o cronista. Já editou aqui, página a página, umas largas centenas e no entanto cá está ele outra vez a matutar. O que tornará tão atractivas estas prosas?
É ponto assente, são textos que ficam a meia distância entre jornalismo e literatura. Pelo jornalismo por renderem tributo, até pelo designativo, ao deus Cronos e, portanto, serem tão efémeros quão as notícias do dia ou as frutas da época; pela literatura por se vestirem com halos ora de ficção, ora de poesia, ou do que esteja ao alcance do autor. Óbvio: trata-se de um híbrido versátil, resistente produto da mestiçagem de dois géneros.
A Crónica tem tanta plasticidade que serve para tudo, incluindo mesmo o nada. Para mim, tem servido amiúde para registar as evoluções e revoluções do nosso tempo (no meu caso, tempo longo: nasci em 1930). O conjunto será uma espécie de palimpsesto em continuada renovação ou um “diário” nada íntimo posto em público por espectactor que testemunha.
Quem anda há anos a cronicar ou a ler crónicas já percebeu que algo da urdidura literária se lhe associa naturalmente. Quer dizer, também não dispensa o fermento para levedar a massa do texto que vai ao forno para sair pronto. Mas algo mais parece avizinhar-se do específico literário quando o autor ensaia a forma adequada como irá abordar o seu tema ou assunto – digamos que “encena” o texto a apresentar no “palco” da página.
No fundo, o autor “encena” realmente o seu texto ao procurar a forma ajustada à expressão formal que procura. Sente afinal que não está a escrever um artigo de opinião política, uma reportagem ou uma carta à família. Quer escrever conforme deseja e é então que percebe que a Crónica obedece a um registo preciso, portanto a uma estética.
Naturalmente, assume infinitas variantes, infindáveis tonalidades no leque extensíssimo dos seus praticantes actuais e de sempre. Contudo, podendo ser dramática ou pueril, atormentada ou lírica, nostálgica ou pessimista conforme a disposição do humor de cada autor a cada hora, a Crónica mantém a sua fisionomia reconhecível. Por ela mesma a identificamos e celebramos.
Tão amigo de cronicar como sou (até imaginei um dia compor um romance apenas com crónicas, lembram-se?), obriga-me a registar que não encontrei estas ideias sobre a Crónica em nenhum lado. São da minha cabeça, portanto originais. Se alguma meninge adormecida no recôndito de um cérebro acordar e a roda gigante de Londres começar a girar simultaneamente, a mim caberá toda a responsabilidade pelos dois milagres.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A “Universidade” de Gorki

capaGorki.jpgAgradam-me as lombadas de tantos livros que mantenho em casa ainda à espera de leitura. São dos mais escolhidos: passaram por clivagens sucessivas e estão comigo há longos anos para os ler ou reler. Eis porque só agora, com todas as delongas do tempo, posso chegar a este volume saído em Lisboa há mais de meio século.
É A Minha Universidade, de Máximo Gorki, volume de 322 pp editado em 1963 por Estúdios Cor, tradução de Patrícia Joyce. Decerto vacilei em demasia entre, por um lado, a previsão de uma obra com forte cunho testemunhal e autobiográfico (logo, porventura menor) e, por outro lado, o prestígio mundial do Autor. Pude confirmar: o lugar de Gorki encontra-se ali bem patenteado no fulgor da sua prosa.

Na verdade, a crítica enaltece o escritor de A Mãe e de A Confissão pela força com que comunica o que é natural na vida do mundo e a beleza do que é espontâneo com alguma transfiguração da realidade. Ora Máximo Gorki (Nijni-Novgorod, 28-03-1868 / Moscovo, 18-06-1936, com 68 anos), sem pais, começou muito cedo a vagabundear, que é como quem diz, viajar. Foi nesse contacto com a realidade nos ambientes sociais populares que teve, ainda adolescente, a sua “universidade” e se animou a publicar romances apenas com 15 anos de idade.
Quando esta obra saiu (em três tomos: A Minha Infância, Ganhando o meu Pão e este), em 1912-13, já era autor consagrado, com uma extensa bibliografia (teatro, conto, romance), conhecera a prisão e o exílio após tentame político contra o czar e viajara por Ásia, Europa e América. Em suma, estas páginas dão ao leitor a plena maturidade do escritor na figura de jovem desvalido mas ansioso por crescer e aprender. E o mundo foi para ele, realmente, uma universidade aberta.
Aprendeu que, “em quase todos os homens, coabitavam ineptamente e em desordem, as contradições, não só entre a palavra e a acção, mas também entre os sentimentos” (p.94). Ora, para os seus amigos “o povo era a incarnação da sabedoria, da beleza espiritual, da bondade do coração, um ser quase divino e único, depositário de tudo quanto era belo, justo e grande” e ele só via carpinteiros, estivadores fluviais, pedreiros, e não via esse povo mirífico, tão superior.” Pelo contrário, parecia-lhe “que era eles [os seus amigos] que incarnavam a beleza e a força do pensamento, que era neles que se concentrava e ardia o nobre e generoso desejo de viver para reconstruir a existência conforme os novos cânones do amor da humanidade.” (p.39)
Bastava-lhe estar uma hora sentado à porta da rua para compreender que “todos aqueles cocheiros, porteiros, operários, funcionários, comerciantes, não viviam como eu nem como aqueles que eu estimava, que eles não queriam a mesma coisa, que não seguiam o mesmo caminho.” (p.92) Mas ainda não era tudo: aparece alguém a declarar que “os intelectuais gostam de se agitar e desde sempre se uniram aos sediciosos” [que] “se revoltam por uma utopia.” Porquê? “O idealista insurge-se e, ao mesmo tempo, revoltam-se os que não prestam para nada, os patifes, os canalhas, e todos esses, por ódio, porque vêem que não há lugar para eles na vida. Os operários sublevam-se para fazer a revolução, têm necessidade de obter uma justa repartição dos instrumentos e dos produtos do trabalho.” (p.53)
Estes tópicos não avultam no contexto da obra. Porém, a crónica vai longa sem citar casos a reter: o apoio do amigo Korolenko a Gorki, a amizade deste com V. I. Lenine, o seu encontro com Tolstoi... Enfim, ponto final. [Imagem: ilustração da capa do livro, por Luís Filipe de Abreu.]

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A Cultura da desertificação

ler!.jpgAcredito que haverá por aí, em revistas e livros, estudos esclarecidos e esclarecedores sobre o que escapa ainda hoje à cabal compreensão de tantos leitores: por que motivo desapareceram assim tão radicalmente suplementos e páginas culturais ou literárias da imprensa portuguesa? O que vale dizer: que força danada terá impelido toda a imprensa a converter-se à formatação tabloide e a rádio e a televisão a seguirem-lhe o exemplo? Sim, sim, lembrando que tal aconteceu após a extinção da censura prévia, em plena democratização do nosso país! 
Uma regra que vinha já dos anos cinquenta do século XX preceituava que os jornais diários e semanários do país dedicassem algum espaço a tais secções desde que um jovem colaborador qualificado ou escritor reconhecido avançasse com a proposta. Não havia abundância de estádios, o desporto merecia uma página à segunda-feira e os fluxos noticiosos gerais, severamente filtrados pelos censores, escasseavam no tempo da ditadura. Por outro lado, o universo da cultura viva demarcava-se retintamente do regime - era de esquerda. 
Acontecia ainda que nas secções culturais da imprensa os censores exerciam ou aparentavam uma certa tolerância, talvez na persuasão de que quem lia “aquilo” (recensões de livros, entrevistas, pequenos ensaios, informações editoriais) eram “poetas”. Quando a democracia ficou com aspecto consolidado instalou-se no país a formatação tabloide, ou seja, um jornalismo ligeiro, ilustradíssimo, sensacionalista, para o qual “cultura” passou a ser um desfile de moda, música festivaleira e espectáculo non stop. Quanto a informação, simplificou-se: dispensou a sã regra do contraditório e passou a servir a verdade única da parte-que-se-faz-o-todo. 

Assim se foi o tempo em que havia cultura viva e a cultura teve matriz de esquerda. Quem lamenta que “agora não há suplementos” nos jornais (a perderem leitores e a reduzirem tiragens) deve lembrar: a imprensa e a comunicação social em geral mudaram de paradigma, basta ver a penosa situação em que se debatem os jornalistas. Enfim, a Cultura entrou em desertificação, agora apenas viceja nuns oásis cujas orlas frágeis são invadidas por ondas constantes de (in)cultura kitsch, popularuncha, comercialona.
Proclama a frase feita que sem memória não há futuro. Pergunto a mim mesmo: que futuro pode ter este país onde, quando morrem escritores, com eles morrem também as suas obras? Na cidade onde moro desapareceram em anos recentes figuras como Óscar Lopes, Luís Veiga Leitão, Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Eugénio de Andrade, Agustina Bessa Luís, Ilse Losa, Luísa Dacosta, António Rebordão Navarro… e alguém os lê, alguém os lembra?!

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Ler asfixiante e dissuasor

domínio.jpgO programa era vasto, capitoso, efervescente, mas foi preciso, mais uma vez, respirar fundo e ganhar coragem para ir à feira do livro da minha cidade. Esta foi, em tamanho, a maior de todas e, como as anteriores, apontada para o Livro. Só que, envolvido em tanta festa, o dito cujo, poderoso veículo de cultura viva, quase passou despercebido.
A multidão afluiu ao jardim não para chegar à Feira mas para chegar à festa. Viam-se poucos leitores a desligar-se da corrente humana e a deterem-se nos stands para observarem mais de perto as edições expostas, as lombadas nas estantes, ou para pedirem um catálogo, uma informação. Apreciavam ali, obviamente, o espectáculo.

Daquela corrente humana quantos terão ido aos debates, às conferências, aos colóquios, aos lançamentos de novidades, aos filmes? Quantos terão apreciado raridades bibliográficas expostas, leituras para infância e juventude e etc. do “programa cultural” servido “por mais de setenta convidados” da organização? Viram instalações e animações, danças, algum circo, o balão de ar quente, comidas e bebidas escutando música a rodos e para todos os gostos, sobretudo populares…
Venderam-se ali, naturalmente, umas carradas de livros. De autores portugueses ou transnacionais, nomes mediáticos que a feira proclamou impressos nas berrantes capas dos montes e montes que por todo o lado se nos metem pelos olhos. Assim se agravou o problema: o mercado do livro vai asfixiando mais e mais a livre criatividade literária pelas imposições dos consumos das massas.
De facto, a indústria transformou o livro num bem de consumo generalizado, para leitores “domesticados”, ou seja, habituados a tipologias com ínfimas variantes. Resultado: desapareceram completamente novas correntes ou estéticas literárias, uns meros grupos de escritores, e ficou a estagnação no lugar da renovação. No panorama mundial apenas sobressaem autores-vedetas com nomes sonoros que pretendem impor-se como “marcas”.
Nas suas obras abundam artes de circo, passeios no jardim, música ambiente, um pouco de enredo para entreter as meninges, algo de cultural a temperar o preparado – e temos a obra feita. Isto lembra, de algum modo, a transformação por que passou a paisagem natural do nosso país. Os eucaliptos invadiram o território e expulsaram a variedade das espécies autóctones, o pinheiro bravo, o carvalho, a azinheira, o sobreiro, a alfarrobeira.
Os incêndios da floresta abrem caminho a novos eucaliptos que, nas opiniões correntes, queimados ou não, interessam às celuloses, bem exportável. Mas que dizer das leituras asfixiantes e talvez mesmo dissuasoras? Avança por aí uma colonização das mentes.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Duas "Mães" lado a lado

mães.jpgJuntei-as há muitos anos e assim permaneceram. Vendo-as lado a lado, esperei que entrassem em confronto directo, que uma discussão se acendesse entre elas. Porém, o tempo foi passando e aquelas “Mães”, assim coladas uma à outra, conservavam-se ensimesmadas, não falavam, até que por fim eu as forcei ao despique.
Foi fácil, bastou-me ir à estante e pegar em dois livros. Um já o havia lido. Era A Mãe, o inesquecível romance de Máximo Gorki.
O outro livro estava por ler e em espera pacientíssima há uma caterva de anos. Enfim, chegou a vez de apreciar A Mãe, de Pearl S. Buck. O que distinguiria estas duas obras?
A de Gorki (1868-1936) data de 1907. Foi escrita em Capri, Itália, onde Gorki se exilou após o fracasso da primeira revolução contra Nicolau II da Rússia e de abandonar os Estados Unidos. É A Confissão considerada a sua obra-prima, mas foi com o romance de Pavel, filho de Pelágia, a mãe, que o autor mais se popularizou.
Operário, como seu pai, Pavel procurou compreender, lendo, por que motivo a fábrica onde ambos trabalhavam se desenvolvia e quem lá trabalhava não saía da cepa torta. Largou o álcool, fez amigos, inquietos como ele, entrou a debater questões políticas com sua mãe a assistir, primeiro com estranheza e logo, politizando-se, a perceber o alcance e o sentido do que se discutia. Assim, por amor do filho, aderiu à revolução.
Tenho lido autores que referem Gorki como “comunista” mas parece não ter a mínima base tal conotação. Suponho que na Rússia, em 1907, ninguém empunhava tal bandeira. Havia, sim, revolucionários em luta pelo derrube do regime czarista, anacrónico e repressivo.
Pearl S. Buck (1892-1973), prémio Nobel em 1938, publicou A Mãe em 1933. Filha de missionários presbiterianos dos Estados Unidos, viveu muitos anos na China e lutou por igualdade de direitos das mulheres. Distinguiu-se como autora de uma copiosa bibliografia e como sinóloga, pelo que, em sua homenagem, o governo chinês transformou em museu a casa que ela habitou em cidade próxima de Xangai.
A sua “mãe” espelha acima de tudo a submissão que o género feminino chinês mantinha naquela época. Realça, portanto, a nobre causa que a autora abraçou. Todavia, embora vincule exclusivamente a sexualidade da mulher à função maternal, Pearl descreve (caps 8 e 9) a descoberta do erotismo na rapariga com a finura poética de uma autêntica artista da palavra.
O leitor desta “mãe” acompanha o esforço heróico da mulher abandonada pelo homem, a sós com a família e em luta com o seu destino. Na obra de Gorki encontra operários e mães a sair da ignorância para compreender e abolir as mais flagrantes contradições sociais. [Imagem: ilustração central de cartaz português do início do séc. XX.]

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Ferreira de Castro centenário

fcastro.jpgFoi há cem anos que um novo autor português surgiu no Brasil. Para este país partira de Ossela, ainda menino, e muito novo era ainda quem se estreava nas letras. Ferreira de Castro tinha 18 anos em 1916, ao publicar Criminoso por Ambição.
A efeméride está a ser assinalada principalmente em Sintra e na terra natal do romancista com numerosas iniciativas que evocam a sua vida e obra literária. [José Maria] Ferreira de Castro (Oliveira de Azeméis, 24-05-1898 / Porto, 29-06-1974) reaparece assim em ciclos de conferências e colóquios, exposições documentais, visitas guiadas, exibição de filmes, concurso escolar, edição de selo postal e outras iniciativas em promoção por diversas entidades durante todo este ano.
Ferreira de Castro é autor de uma vasta bibliografia, que inclui obras de divulgação e viagem, mas foi com os seus romances Emigrantes, 1928, A Selva, 1930, A Lã e a Neve, 1947, e A Curva da Estrada, 1950, que justamente se celebrizou e permaneceu na memória de gerações sucessivas de leitores. Porém, os últimos livros que publicou datam de 1968, com O Instinto Supremo, romance, e Os Fragmentos, datado de 1974, ano em que morreu com 76 anos. Esteve, portanto, em actividade ao longo de 58 anos!
Realmente, foi um dos primeiros escritores portugueses que conseguiu viver exclusivamente da literatura. As suas obras mais aplaudidas eram frequentemente reeditadas porque conquistavam novas camadas de leitores, mas Ferreira de Castro foi “profissional” das letras graças à celebridade que alcançou no estrangeiro. As traduções das suas obras publicadas além-fronteiras atingiram mesmo uma cifra recorde.
O francês era então a língua de contacto nas relações culturais, na diplomacia, pois a Europa, berço da civilização greco-latina, estava no centro do mundo. As traduções francesas de Emigrantes, A Selva e outros romances abriam caminho para chegar a outras línguas… Hoje, com a predominância (ou a hegemonia?) do inglês, a situação alterou-se até se tornar irreconhecível.
Ferreira de Castro permanece, porém, na moldura do seu tempo, com todo o humanismo que impregna as páginas que escreveu. Defendeu sempre a democracia e a liberdade, a paz e a justiça para os que mais a merecem. Foi um escritor-cidadão interventivo e coerente, que pôde ainda festejar o derrube da ditadura salazar-marcelista.
Os especialistas colocam as suas primeiras obras num lugar que propiciou a formação do movimento neo-realista em Coimbra por volta de 1940. Por esse e por todos os outros motivos, é de saudar o presente programa comemorativo do centenário de Ferreira de Castro. É património nacional e universal, não imaterial porque é legível e vital como as obras de tantos autores portugueses do século XX caídas no limbo.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Brasil: “Crime e Revolução”


O imbróglio político que vai crescendo no Brasil com vista à destituição da presidente da República, Dilma Rousseff, trouxe-me à lembrança uma leitura ainda recente: o romance Crime e Revolução. Com esta obra, o seu autor, Carlos Rangel, brasileiro, ganhou em Portugal o prémio literário Carlos de Oliveira e o município de Cantanhede, que instituiu o prémio, publicou o livro em primeira edição.

brasilia.jpgÉ possível que a obra, inédita quando foi premiada, não circule nem seja conhecida no Brasil, pois a tiragem da primeira edição portuguesa (2015, 189 pp) foi de apenas 250 exemplares, certamente não destinados à distribuição no mercado normal. Logo, apesar do prémio atribuído e da edição feita, o romance pode continuar de facto no limbo dos inéditos literários de ambos os lados do Atlântico. Mas quem o lê, ou, no meu caso, relê, é facilmente tentado a colar a súmula da narrativa à actualidade brasileira.
Na verdade, o tortuoso processo do impeachment é movido contra Dilma com base em acusações elaboradas por líderes do parlamento e do senado que enfrentam graves acusações de corrupção pendentes. Logo, ganha base a advertência: o processo da eventual destituição da presidente procura livrar os líderes corruptos da justiça. É este o pano de fundo do romance premiado de Carlos Rangel.
Realmente, a corrupção dos políticos no Brasil parece endémica. Em Crime e Revolução o tema são acontecimentos revolucionários de 1930-32, a alternância de partidos afins no governo, revolução e contra-revolução para que tudo continue sem emenda. O autor focaliza a narrativa na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, onde os revolucionários vencidos vão exilar-se para, escapando à justiça dos vencedores, conspirar e reconquistar o poder.
Carlos Rangel mostra conhecer bem aquela zona fronteiriça, os ambientes políticos partidários regionais e federais. Talvez se inspire, ficcionando a partir de episódios reais escabrosos, divulgados ou documentados, de certos abusos de poder de “coronéis” e seus sequazes locais que chegam a matar adversários. Enfim, o crime mais violento ou o mais sórdido e a revolução malparida dançam, abraçados, neste romance.
Resulta, assim, numa reflexão bastante amadurecida sobre processos revolucionários desencadeados naquele vastíssimo país lusófono e os resultados concretos que, por tal via, poderão ser atingidos. Neste quadro, o autor chega a introduzir duas das suas três personagens principais no partido comunista brasileiro dos anos ’30-32 e a “formar” uma delas, militante, rapariga burguesa, em Moscovo. A conclusão que transparece envolve-se de melancolia.
Carlos Rangel revela-se em Portugal com esta obra bem estruturada e com óbvias qualidades literárias (a diegese é percorrida por um fio que associa companheirismo, lealdade, afeição e amor). Merecia o galardão que a distinguiu. Pena será que nem portugueses nem brasileiros consigam vê-la ao seu alcance.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

O Livro no seu Dia

livro-1.jpgAnteontem, sábado, tivemos em comemoração o Dia Mundial do Livro e do Autor. Aproveitámos bem esse dia (enredados nas múltiplas redes que lançam por cima de nós e dos livros) para descansar das nossas ralações e tormentos? O gutenberguiano objecto anda a sofrer maus tratos e o seu Autor, reduzindo-se à condição de produtor de textos, vulgo conteúdos, anda por aí a esbanjar status e a proletarizar-se como uns jovens jornalistas tarefeiros pagos a recibo verde.

A auréola que os autores tiveram outrora apagou-se de todo. Os autores agora são escreventes, fabricantes de textos para o mercado, algo que uma máquina digital, que até já conseguiu compor bons poemas em Coimbra, poderá fazer ainda melhor, além de mais barato e depressa, esperemos só um bocadinho para ver. Depois, esperando um pouco mais, iremos atingir a maravilha suprema: a máquina digital capaz de compor um romance, digamos romance por exemplo, aplicando ingredientes de teor diegético e características de estilo ditados à máquina, via marketing, pela maioria dos leitores-consumidores…
Obviamente, os actuais fabricantes de textos ficarão dispensados, desempregados. E o que restar então de autêntica Literatura será pérola rara perdida na confusão imensa das bagatelas do consumismo com os valores. A consumar-se ficará o que venho prognosticando desde há anos – a extinção da Literatura.
De facto, a erosão da arte literária tem vindo a ser constante. A educação do gosto dos leitores foi esmagada pelo cilindro compressor da massificação. O ambiente da cultura e da literacia em geral, igualmente, em vez de melhorar, dá sinais de regressão.
O mundo literário vai sendo percorrido e dominado por autores de best-sellers internacionais (não como nuvens de gafanhotos mas não menos vorazes). O objectivo que um autor hoje ambiciona atingir é vender muito no seu país de modo a entrar na internacionalização que as traduções para outras línguas lhe permitirão. Assim, com uma mesma obra feita, faz mais e mais ganhos.
Os livros destes autores atravessam fronteiras e são publicados pelas editoras “normais”, isto é, que fazem negócio com os livros, fornecendo livrarias e grandes superfícies onde aparecem as novidades aos montes, de capas vistosas. Se uma editora “normal” publica um ou outro autor que ainda vende pouco, concede algo excepcional (aceita o fraco negócio). Explica-se, portanto, a curiosa circunstância de, agora, os autores que escrevem as suas obras tenham que sair e trabalhar afincadamente para as vender em proveito dos editores, que até poderão ser os próprios autores…

segunda-feira, 21 de março de 2016

Manuel Maria, poeta galego

m.maria.jpgAs relações culturais, ou antes, dos escritores e artistas das duas margens do rio Minho têm sido irregulares, esporádicas como a vontade de abraçar e de dançar. Mas, quando tal acontece, a festa vivida deixa sempre, dos lados de cá e de lá, apetite para mais. E, no ar, também uma interrogação (saudosista) sem resposta: porque há-de a festa ser assim tão escassa?

Um bom período de aproximação cultural luso-galega foi possível nos últimos anos ’60 e início dos ’70 do século XX, coincidindo de certo modo com o final do regime Salazar-Caetano. Envolveu escritores, pintores, poetas, cantores, académicos, jornalistas e múltiplas partilhas cruzadas, até que a eclosão do 25 de Abril concentrou o país sobre si próprio. Incluiu exposições documentais, recitais, palestras, congressos e publicação de livros e revistas.
Figura eminente nesse período em Portugal foi o meu amigo poeta Manuel Maria. Visitou Portugal diversas vezes, uma das quais, muito por ele recordada, com o pintor Pousa, e aqui lhe publiquei três livros: Sonhos na Gaiola, poemas para crianças (Lisboa, 1968); 99 Poemas (Porto, 1972), e Odes num tempo de Paz e Alegria (Porto, 1972). Depois ficámos “perdidos” um do outro até que vim a saber que Manuel Maria [F. Teixeiro] falecera já em 8-09-2004, na Corunha, com 75 anos.
O poeta nasceu na sua querida Terra Chã (Outeiro de Rei, 6-10-1929) e viveu em Monforte de Lemos, onde uma estátua o recorda em público, sentado à mesa e de livro na mão, e existe uma evocativa “Casa Manuel Maria”. Filho de camponeses, estudou para bacharel e foi solicitador. Participou nos anos ’60 na organização clandestina de partidos nacionalistas. Em 1985 abandonou a política e mudou-se para a Corunha, onde, hospitalizado, acabou por falecer. Realizou uma actividade literária intensa e imensa: desde 1950, publicou mais de meia centena de obras, sobretudo de poesia, mas também de teatro e antologias das suas próprias produções.
Recordo, por exemplo, Muiñeiro de Brétemas, a sua estreia, de 1950, e a sua última obra, Os Longes do Solpor, de 1993. A Wikipedia.pt lista pelo menos 25, desde Mar Maior, 1963. Trocámos abundante correspondência durante aquela meia dúzia de anos e visitámo-nos algumas vezes. Entretanto, fico preso a uma vasta rede de outras recordações, nomeadamente de Joaquim Santos Simões, um querido amigo de Guimarães, companheiro destas e de outras lides, José Maria Álvarez Blázquez e seu irmão (Edicións Castrelos, Vigo), J. L. Fontenla, Irmandades da Fala… mas como não recordar ainda os esforços, inúteis, que fiz pela publicação, em português normal, de parte significativa da obra literária de R. Alfonso Castelao?! [Imagem: Manuel Maria em retrato (pormenor) num cartaz.]

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Manuel Simões: Poesia reunida

O percurso de um poeta como este não justificava apenas o que sobremodo exigia: a reunião e reedição dos livros que publicou. De facto, este autor encetou o seu percurso em 1971, portanto há mais de 45 anos. Logo, avultava a necessidade de estabelecer, digamos “em presença”, uma visão global das entregas poéticas que o autor veio fazendo a espaços, década após década.
Manuel Simões proporciona agora aos leitores essa visão de conjunto com O Fluir do Tempo – Poesia reunida (Lisboa, Novembro, 2015: Edições Colibri, 258 pp). Uma espécie de balanço e de retrospectiva que vem a público em volume muito cuidado e estimável a que, por sinal, não faltam motivos para resultar surpreendente. E a surpresa começa porque compagina em sucessão os diversos livros publicados pelo autor.
A voz do poeta, contida em cada entrega, aparece aqui organizada num corpus que permite e pede mesmo uma reavaliação de cada uma dessas partes integrada no todo finalmente constituído. Quer dizer, Manuel Simões recolhe neste volume Crónica Breve os seus outros cinco títulos posteriores (um foi editado em Veneza), incluindo também poemas dispersos e inéditos. Não falta mesmo ao volume um prefácio, de Ettore Finazzi-Agró e um posfácio, póstumo, de Sílvio Castro.
A surpresa maior, para o leitor, está em ter finalmente esta produção poética global nas mãos, convidando-o a sentir inteira a voz que se lhe oferecia como que repartida pedaço a pedaço e, assim, tão contida como se algo a velasse. “Poeta de um Eu que atravessa o Nós mas também poeta da poesia – escreve Finazzi-Agró (pp 11-12) – Manuel Simões interpreta a escrita como incisão de uma instância que é, ao mesmo tempo, individual e colectiva; como presença de uma Voz que reflecte sobre si mesma e sobre a sua origem, ecoando no silêncio que a rodeia e solicitando esse silêncio a exprimir a presença do ausente.” 
Por seu lado, Sílvio Castro situa Simões numa “tradição da modernidade” e em particular na neo-vanguarda que, no quadro político português, teve “necessidade de alargar-se à poética do neo-realismo, já então em posse da própria estabilidade criadora” (pp 241-2). No seu posfácio, Castro sublinha a relevância expressa de temas como lugares e viagem, e exílio, sem dúvida reflectidos nos longos anos (1971-2003) que o poeta passou na Itália a ensinar em diversas universidades. Será de lembrar, para concluir esta breve recensão, que Manuel Simões (ou Manuel G. Simões) nasceu em Ferreira do Zêzere em 1933 e, além de poeta, tem abundante obra de ensaísta e tradutor. [Imagens: capa do livro e foto do autor (à direita) com amigos.]

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Vicente Campinas: evocação


Vendo-o, ninguém diria quem estava ali. Vulto pequeno, de aparência vulgar, António Vicente Campinas abrigava convicções firmes, energia combativa e sonho inesgotáveis. Republicano e democrata com sensibilidade social, identificou-se com as causas operárias e populares (foi, desde cedo, militante comunista) num sentido que o aproximou e integrou na corrente neo-realista expressa em literatura e cinema.
Algarvio, Vicente Campinas publicou mais de trinta obras, de poesia, ficção (conto e romance) e prosas diversas. Começou em 1938, com Aguarelas, poesia, e avançou até 1994, com Guardador de Estrelas, antologia. O seu poema “Cantar alentejano”, em memória de Catarina Eufémia, ficou bastante famoso com música de Zeca Afonso (álbum “Cantigas de Maio”, 1971).
Muitos dos seus livros saíram em edições do próprio autor (alguns sob pseudónimo) e alguns tiveram-me como “editor”. Esta singularidade pede explicação. Vicente Campinas nasceu em Vila Nova da Cancela, concelho de Vila Real de Santo António, em 28-12-1910, e morreu em Lisboa em 3-11-1998, de modo que a vida vivida entre estes anos, quase 88, nada teve de fácil…
Abriu caminho a pulso. Foi tipógrafo, guarda-livros num escritório, livreiro. Jovem autodidacta, as suas ideias políticas atraíram a repressão do regime de Salazar então a implantar-se. Sofreu prisões, resistiu mas teve que exilar-se – “saltou” para Paris.
Contactou-me nessa altura, sem nos conhecermos pessoalmente, para me pedir um favor: receber em minha casa umas quantas caixas com livros da sua biblioteca que depois lhe enviaria, em pequenos pacotes, pelo correio normal para o seu endereço parisiense. Assim fiz e, viva!, não houve extravios. Campinas sentiu-se grato (deixara de trabalhar na dureza do bâtiment, arranjara por fim lugar de contabilista, já tinha consigo sua mulher) e convidou-me a ir visitá-lo e… conhecê-lo no aeroporto.
Ele sabia da colaboração que, como “parteiro” de edições eu dava à Nova Realidade, de Tomar, e pediu-me para o ajudar de tal jeito. Arranjei tipografia e orçamentos, fiz as revisões de cada livro, recebia a tiragem pretendida e despachava-a para o endereço indicado e pagava a factura com o dinheiro que me mandava. O caso repetiu-se, que me lembre, desde Proa ao Vento, 1966, Preia-mar, 1969, Raiz de Serenidade e Reencontro, 1971, entre outros.
Campinas era autor compulsivo. Colaborou intensamente na imprensa, fundou o “Jornal do Cinema” e o “Foz do Guadiana”. E apenas quando regressou do exílio, após o 25 de Abril, pude verificar que o recém-chegado era militante comunista.
O centenário do seu nascimento foi comemorado em Vila Real de Santo António em 2010. Neste município, Campinas também é patrono da biblioteca municipal e tem o nome numa rua. É com homens desta têmpera que existe cultura viva!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Evocação: Lília da Fonseca


Gostaria de repegar no meu álbum de afeições particulares. Por diversos motivos, a vida vivida aproximou-me de pessoas estimáveis que me apraz recordar agora que pouco espaço nos resta do que anda por aí consagrado aos heróis mediáticos do tempo efémero. Recordo-as já desaparecidas, vitimadas pelo cutelo da dupla morte que nem tento esconjurar.


Lília da Fonseca é uma dessas pessoas amigas. Nasceu em Benguela, Angola, em 1916 e morou prolongadamente em Lisboa, onde faleceu em 1991. Maria Lígia Valente da Fonseca Severino, seu nome civil, pouco conhecido foi mas o nome literário que adoptou chegou a ser, sobretudo na segunda metade do século XX, bastante apreciado e querido pelos leitores de jornais, revistas e livros em Angola, Moçambique e Portugal. Destacou-se ainda por ter sido a primeira mulher que teve a coragem de concorrer às eleições legislativas para a Assembleia Nacional, em 1957, como candidata pela Oposição Democrática.
Lília da Fonseca foi jornalista (começou em “A Província de Angola”) e escritora. Fundou “Jornal Magazine da Mulher” (1950-56), em Lisboa, que dirigiu, e colaborou em numerosas publicações, como “Século Ilustrado”, “Mundo Português” e “Seara Nova”. A qualidade geral da sua intervenção cívica evidenciou-a como palestrante activa. Na literatura estreou-se com o romance Panguila, 1944, a que se seguiu Poemas da Hora Presente, 1958, Filha de Branco, contos, 1960, e, em 1961, O Relógio Parado, romance que o regime da ditadura proibiu mas que a autora reeditou após a democratização do país.
Porém, foi como autora de literatura infanto-juvenil que Lília da Fonseca especialmente se distinguiu. Publicou mais de trinta títulos, conquistou o prémio João de Deus em 1960 e em 1963, e a colecção “Carrocel”, que dirigiu, teve o apoio da Fundação C. Gulbenkian. Fundou ainda o Teatro de Branca Flor, em 1962, de fantoches, com peças e bonecos também de sua autoria.
Em Lília encontrei a vontade que quer melhorar as misérias do mundo, vontade utópica, evidentemente (e não será a utopia alimentada por alguma poesia?), mas pulsão imperecível. Com ela, com a sua amizade e com os seus livros entrei na aventura que me deixou a experimentar escrever para crianças. O caminho faz-se a andar e é pelo sonho que vamos...

Todavia, anotar o perfil da vida e obra de Lígia numas poucas linhas de extensão limitada é problemático e frustrante. O essencial fica talvez sumariado. A faltar ficará o restante, o que com ela desapareceu. [Foto: Lília da Fonseca no Porto (1970?).]

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A tineta da Crónica


Os leitores que acompanham de algum modo o que tenho vindo a publicar conhecem-me a tineta: parece que fiquei amarrado com juras de amor eterno à Crónica. O Conto e outros géneros literários também aparecem na minha bibliografia mas, ai de mim, é a Crónica que sobressai no conjunto. Ora isto não serve para graduar um autor pois, como muito bem realçou o amigo Arnaldo Saraiva na apresentação que estou a lembrar de obra de um conceituado cronista brasileiro, apenas o Romance pode distinguir o escritor com o autêntico selo literário.

Flores,Açores.jpgIgnoro se o autor brasileiro, ali presente, engoliu em seco. Eu concordei de boamente, conformado com a modéstia da condição que aliás reivindico, percebendo no entanto que nesse ponto exacto coloco a pedra angular do que é e vale para mim a Literatura. Afinal - e aqui está o busílis – importa-me tão pouco ser escritor distinguido na feira das vaidades!
Venho de um tempo em que os autores, incluídos os principais, quase pareciam fugir da “visibilidade” que os autores de hoje tanto perseguem. Colocavam-se por trás do que escreviam, esperando que os seus trabalhos circulassem e brilhassem, não a própria pessoa escrevente recolhida em penates. Os escritores dispensavam-se então de acções de public relations, isto é, de circular em postura bem falante e poses mediáticas porque a Literatura não existia ainda como espectáculo nesta sociedade que tudo mercantiliza (outrora acontecia isto: Jorge Amado causou escândalo porque perguntou ao seu editor, F. Lyon de Castro, à chegada ao aeroporto da Portela, se os seus livros vendiam bem – e ainda não chegara a Gabriela Cravo e Canela).
Virei contra mim a fragmentação que, página a página (centenas e centenas, de espetactor no seu mundo),  andei a praticar levado nas ondas de um entusiasmo, uma respiração voluntarista que me afastou sempre da realização de obra de largo fôlego (o romance). Quer dizer, não produzi volume memorável, negligenciei a famosa “visibilidade”. Realmente, muito pouco me interessou ganhar - ganhar fama, protagonismo, dinheiro, honrarias – e, muito mais, seguir a minha estrela.
Todavia, não lamento coisa nenhuma neste percurso; ao invés, apraz-me provir de um tempo em que os bons escritores eram remunerados conforme o que escreviam, de maneira que posso agora perceber quanto dano causou a vulgarização que banalizou a Literatura. Sim, agora há muitos mais autores mas o número dos autores presentes no mercado e em concorrência acesa aumentou paralelamente, provocando uma diminuição geral do valor dos seus trabalhos e expandindo o costume (vicioso) das colaborações não pagas. Ganhar “visibilidade” na praça, exibir a “marca” que é o nome de cada autor tornou-se investimento difícil mas vital como garantia de futuro…

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Prendinhas de Natal

As minhas primeiras leituras não escolares foram, em autêntica estreia, o que deveriam ser: histórias para crianças. Mas iniciava-se o quarto decénio do século passado, a designada literatura infanto-juvenil era então raridade ainda maior do que bibliotecas públicas no Portugal salazarento. Havia pouca e pouco havia que escolher. 

ler.livros.jpgO entusiasmo, o deslumbramento que essas primeiras leituras me proporcionaram parece que continuam presentes no cabouco da pessoa que o rapazinho viria a ser, pois as vivências de então, determinantes, nele ficaram guardadas em memória indelével. Nunca mais deixei de gostar, gostar apaixonadamente, de literatura infanto-juvenil, quer dizer, de Literatura, logo contos para crianças. Quando entrei a colaborar na imprensa não tardei a escrever sobre o tema – a situação geral, os seus impasses. 
Assim tenho vindo a acompanhar a produção e circulação de tal género de livros no país ao longo dos anos (mais de cinquenta), de modo que alinhei ao longo do tempo uma grande quantidade de artigos, crónicas, pequenos estudos. Algumas dessas abordagens encontram-se recolhidas em volumes que publiquei de abrangência temática afim, outros permaneceram dispersos. E agora, perante essas dezenas e dezenas de textos, esboçou-se a ideia de os reunir para perceber se algo deles poderia extrair-se. 
Porém, a simples tarefa de ir aos jornais e revistas e livros recolher os escritos deixou-me a recapitular a matéria. Requeria um esforço enorme. E mais: com resultado à vista, a bem dizer, incerto e assaz duvidoso. 
Afinal, o que tenho vindo a escrever sobre literatura para crianças, ou infanto-juvenil, reflecte, acima de tudo, julgo eu, as transformações essenciais por que passou o género em cerca de 60 anos. Assim evoco o contributo proporcionado pela Fundação Calouste Gulbenkian (bibliotecas itinerantes e fixas) que dinamizou muitíssimo os sectores nacionais da edição e da leitura pública desde a sua criação, em 1958. Quando muito, interessaria uns poucos: uma franja de leitores atentos e algum sociólogo ou historiador da literatura. 
Quer dizer, a matéria não serviria para, demonstrando, ensinar coisa alguma a alguém. Estamos todos colocados numa realidade em flagrante, sabemos quanto o crescimento das publicações infanto-juvenis já contribuem para activar as editoras. Mas seria interessante analisar e documentar quanto a evolução em foco, sendo positiva, banalizou os livros “para crianças” ao ponto de esbater, e até abolir, com a expansão do mercado, a noção de que somente os (poucos) livros capazes de encantar os adultos têm mérito real suficiente para chegarem aos pequenos leitores.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Ana Hatherly e Cértima

Ao receber em 1993 o espólio do escritor António de Cértima, isto é, ao manusear em sua casa os papéis e outros documentos integráveis na doação feita pela sua viúva, descobri um pequeno conjunto de folhas assinadas por Ana Hatherly e, nas estantes da sua biblioteca, os primeiros livros publicados pela então jovem escritora. Ali soube que Cértima era tio de Ana. Nasceu uns 35 anos antes da sobrinha, mas a diferença de idades não obstou a terem sido “muito afeiçoados”.
As relações de Ana (Porto, 8-05-1929 / Lisboa, 5-08-2015) com Cértima (Oliveira do Bairro, 27-07-1894 / Caramulo, 20-10-1983) são certamente posteriores a 1949, quando Cértima deixa o consulado de Sevilha e se fixa em Lisboa para se casar e retomar plenamente a criação literária. O parentesco trouxe-me logo à lembrança que o bairradino autor de Epopeia Maldita frequentou o círculo intelectual do Porto, onde tinha familiares. Nesta cidade terá composto o poema “Oração a Dionyso” publicado na primeira página do quinzenário de afirmação galega “Rexurdimento” (Betanzos, nº 2, de 16-08-1922). 
Todavia, em 1949 Ana estudava na Alemanha canto lírico, carreira que abandonou por motivos de saúde. Em Lisboa, nos anos ’50, decidiu optar pela literatura e então aproximou-se do tio, escritor bem conhecido no ambiente da época. Cértima conservou no conjunto dos papéis uma carta de Ana, talvez de Dezembro de 1953, cujo teor parece esboçar um primeiro gesto dessa aproximação em admirativa exaltação. 
Os papéis que o tio dela quis conservar são, em breve súmula, três cartas manuscritas; duas páginas em papel bíblia com texto dactilografado intitulado Le Danse de l’Oubli e autógrafo ao tio em 19-12-1956; um poema manuscrito, em jeito de improviso, datado de 11 de Julho de 1957 e a nota “Em casa de António de Cértima”; três poemas dactilografados; mais três poemas manuscritos (dois com datas: Janeiro de 1959 e 1964). 
Ana Hatherly frequentava a universidade e aparecia com os primeiros livros: uma antologia da “Moderna Poesia Portuguesa”, em 1960, que a autora baniu da lista dos seus livros decerto por causa da epígrafe de Salazar, e a narrativa O Mestre em 1963. Depois adviria um certo afastamento, também ideológico, do tio, a sua adesão à poesia concreta e experimental, o doutoramento em literaturas hispânicas, o cinema (que foi aprender a Londres), a consagração como “pintora da palavra”. Neste percurso, o traço que mais vincadamente marcou Ana foi a reserva com que manteve a sua vida pessoal. 
A relação que manteve com o tio terá sido tão discreta que, em geral, passou inadvertida, mas Cértima quis documentá-la nos papéis que guardou, assim como a existência de filha de Ana, Catherine, vítima mortal de acidente automóvel perto de Londres, em 1970. Conhecendo-os, convidei Ana Hatherly em 1994 a participar num ciclo de conferências que assinalou o centenário do nascimento do tio, mas ela recusou. Gorou-se a minha intenção de restituir os papéis à autora. 
A eles tornei aquando da morte de Ana Hatherly. Achei-os significativos. Que destino dar-lhes? 
Resolvi oferecê-los à Biblioteca Nacional de Lisboa, entidade que já havia recebido uma doação da própria Ana. Entretanto, julgo ser meu dever dar pública notícia deste conjunto de papéis, aqui e em artigo a sair na revista digital TriploV de Dezembro próximo. Podem interessar ao eventual investigador. [Foto de Ana Htherly na contracapa de «O Mestre», 1963.]


Post scriptum


O texto supra, editado em 10-11-2015, ficou para mim tingido por desgosto e tristeza. Parece que as relações pessoais estabelecidas pelos dois autores em foco, que descrevo em poucas linhas (mas remeto para o estudo mais desenvolvido que assinei então na revista «TriploV»), resulta em assunto assaz incomodativo. Ora eu, no caso, sempre me senti completamente neutro, isento de qualquer interesse particular. Lembro: dei alguma atenção a António de Cértima para assinalar o seu centenário, publiquei livro «António de Cértima - vida, obra, inéditos» (Figueirinhas, Porto,1993), etc., porque ele nascera na minha terra natal e eu corria pelo restauro do património cultural daquela região (sendo eu de esquerda e ele tivesse feito carreira apoiando a ditadura de Salazar); quanto a Ana Hatherly, respeito-a pelo seu perfil académico, de escritora e de mulher. Se algo me move no caso é apenas o desejo de contribuir para o melhor conhecimento de Ana, pessoa tão ciosa da sua privacidade que, por exemplo, nem sabíamos que tivera uma filha. Apesar de tudo, colhi fortes motivos de perplexidade e aborrecimento: a recusa da directora da Biblioteca Nacional de receber a minha doação dos documentos (recusa peremptória, inexplicável, pois a directora e a BN poderiam tratar e divulgar os papéis conforme quisessem; a publicação na revista também não correu bem, foi mais perplexidade e aborrecimento. Outras ocorrências deixaram-me a considerar o caso desagradável de tal modo que o descartei da agenda. Acontece, porém, que o texto supra tem vindo a receber constantes leitores de variados países e isso traz-me por fim a cumprir o que talvez seja uma obrigação: esclarecer o caso, encerrar o assunto. De facto, mantive-me tonta e longamente persuadido de que o estudo editado na revista digital «TriploV» era acompanhado pelas digitalizações dos documentos principais (cujo teor transcrevo). Por isso, o meu livro Inclinações Pontuais [ISBN 978-989-54234-82-49], publicado na plataforma digital da SPA em Agosto, 2018, indica no final, em nota, que as digitalizações eram acessíveis no endereço da revista, indicação errónea não corrigida. Mas os leitores eis a surpresa! podem hoje encontrá-las aqui. Finalmente! No cabeçalho, em «Página» (tem duas entradas: uma tem capas e links de meus ebooks); abram a segunda, «Ana Hatherly-digitalizações»). Entram na página e visionem as 24 imagens com o tamanho dos documentos originais. Mostram mensagens de Ana, poemas inéditos (?), duas pp em papel bíblia dactilografadas; nota do punho de Cértima em fl A4 que regista morte da filha; carta de Catherine para os tios António e Arminda, um autógrafo anotado por Cértima, etc. (a menina já projectava livros desenhando a lápis a capa). A foto que Cértima guardava no conjunto - o retrato de Catherine - já saiu no texto da revista e agora é aqui repetido. [09-07-2019]

Acrescento


Resolvi ampliar a exposição dos papéis de Catherine, filha de Ana Hatherly, integrados no conjunto deixado pronto por António de Cértima e recebido por mim junto com o seu espólio geral. Acrescento sete novas digitalizações de textos elaborados por Catherine atendendo a dois motivos essenciais: documentam as aptidões extraordinárias que a menina já demonstrava (chegam a ser aptidões impressionantes e bem mereciam referência especial); e poderão auxiliar um eventual investigador num esforço pela definição do perfil humano, como pessoa e como mãe, de Ana, detectando o que dela própria possa encontrar-se reflectido na filha. O «tio» Cértima e «tia» [Ar]Minda terão acompanhado afectuosamente o talento de Catherine, autora do poema «A Morte» (4 pp, peq. dim.) A menina enviou-o ao casal, considerando no poema que a morte «é uma ave branca e pura» e que «Mais vale entrar na vida sendo poeta». Note-se também o «romance O amor Falso» com capa, prefácio e apontamentos sobre personagens, cenários, etc., que Catherine, com 10 anos de idade, escreveu a lápis em folhas de papel costaneira usadas outrora por merceeiros em cadernos de folhas soltas.  Era papel de fraca qualidade e daí a fraqueza das imagens -, decerto sua mãe dava-lho para que ela rabiscasse. A infantil autora assume-se como Catherine d’Elche (pseudónimo?) e supõe: «Mas parece que Deus me escolheu para ser mais uma serva de arte para ele.» Também estes esboços chegaram aos «tios» e talvez a Fátima (ou Fati, diminutivo familiar), a filha do casal com quem a filha de Ana brincou. Ignoro o ano e onde nasceu Catherine, o nome do progenitor. Atentei no ano inscrito na «capa» do «romance», 1960, quando a menina teria 10 anos. Poderá deduzir-se que teria nascido em 1950? E tendo falecido em 15-01[ou 02?]-1970 (talvez já com 20 anos?!), conforme regista Cértima? Ora, em 1960, Ana Hatherly contaria uns 21 anos pois, conforme se sabe, nasceu em 8-05-1929. Quanto a mim, cingido ao factual, dispenso-me de interpretações, deixando-as para alguém que se disponha, séria e competentemente, a investigar e estudar todos os dados existentes. Se esse alguém, em tempo útil, me contactar em tal sentido obterá de mim acesso adequado a todos estes papéis. Se ninguém comparecer, prevejo desde já uma solução de mero recurso: irei levá-los em mão e doá-los ao arquivo da Biblioteca da Universidade de Aveiro, para juntar aos dois espólios (o meu e o de António de Cértima) ali constituídos por mim há anos.  Assim ficará arrumado este assunto. Missão cumprida!
Lembro que A. de C. tem nome em blogue que criei, onde estiveram presentes dois livros de sua autoria, inéditos: uma peça de teatro não representada e uma colectânea de contos, em edições digitais: «Ela e o Homem» e «Os Que Sentem e os Que Pensam». Foram retirados do blogue por perda da plataforma que os mantinha. [28-07-2019 e 26/28-11-2019]

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O mercado literário

Os autores literários não prescindem hoje de uma imagem pública que os projecte como figuras mediáticas no círculo dos seus leitores. Assim, associada, emerge uma ocupação diversa (cuidar da própria imagem do autor) do seu trabalho da escrita, na medida em que esta careça daquela por necessidade de promoção. Nestas circunstâncias, um caso particular como o de Herberto Hélder parece não ter mais condições para se repetir.

Efectivamente, não basta aos autores mandarem para as livrarias obras assinaláveis. Agora precisam de fazer um esforço suplementar, sair de casa e levar em mão essas obras ainda fresquinhas ao contacto directo com os seus possíveis leitores onde quer que os encontrem. O possível renome ou a popularidade de cada autor, sem mais, de pouco valerão no mercado se ele não se faz presente, aparecendo e reaparecendo, falando e seduzindo os auditórios, pois as regras concorrenciais estão definidas: são exactamente os autores de best-sellers, ou que como tal se pretendam, que mais se afanam a promover o que publicam.
Paralelamente, cada autor tenta manter-se na ribalta, habitar o espaço mediático, ter protagonismo com nome e rosto reconhecidos no mercado como marca” de sucesso, além de ganhar prémios, distinções assinaláveis. Outrossim, vai a encontros, faz conferências, participa em colóquios e debates, dá entrevistas e, evidentemente, não falha as feiras de livros e sessões de autógrafos e lançamentos. Com tudo isto e o mais, estes autores constroem a sua imagem pública tendendo então a ser, de algum modo, public relations bem falantes e de agradável presença para vender o que escrevem.
Nestes termos, os escritores, em quaisquer das dimensões possíveis de cada caso (internacional, nacional, regional ou local), integram hoje no seu perfil umas funções de comunicadores quer tenham já a literatura como profissão ou sonhem vir a tê-la. Enfim, longe vai o (recuado, imemorial?!) tempo em que o escritor, ainda que prestigioso, vivia em tranquila reclusão, escrevendo e reescrevendo sem pressas, publicando pouco e a espaços e, se saía à rua, era ali outro transeunte quase anónimo. As técnicas do marketing, as dinâmicas do mercado literário despontavam outrora escassamente, à semelhança das profissionalizações.
Evidentemente, os autores literários de best-sellers dependem da aceitação que o mercado lhes dê. Logo, produzem para o mercado, atentos à flutuação das procuras, acatando os sinais que recebem de forma a servir as preferências dos consumos. Consequência importante: outros autores, de menor sucesso, tendem a seguir-lhes o exemplo, do que resulta a implantação nefasta de estereótipos formais capazes de empanar ou mesmo de travar a criatividade inovadora da autêntica arte literária.