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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Combustão humana


Estas duas palavras até podem parecer mas não são metáfora para as massas migrantes que podem fugir das devastações causadas pelas guerras do capitalismo globalista e que cruzam o Mediterrâneo já não berço, e sim, agora, cemitério da civilização. Uma crónica intitulada “Humanidade combustível” foi escrita por mim creio que em 1960 para o “Jornal de Notícias” do qual era então colaborador semanal. Porém, o regime da Censura prévia interditou a publicação e o jornal enviou-me a prova tipográfica. O texto permaneceu inédito até data recente, pois o Museu do Neo-Realismo reproduziu a prova (que guardei e depois doei, junto com outro espólio, ao Museu) no livrinho com que acompanhou a exposição documental denominada “Uma vida como obra”. Dali transcrevo os parágrafos iniciais.

“Quem pôde abeirar-se, no último Inverno, dum bom fogão de lenha crepitante e se deteve uns minutos a observar o bailado das línguas de fogo consumindo as achas, deve ter pensado que estava ali uma imagem da vida.
Com efeito, a vida é uma acha que incandesce os homens à nascença e depois, ao longo dos anos, os vai percorrendo e devorando, transformando-os em archotes ardentes. Que são os velhos senão tições de brasa morrediça no meio das cinzas? Que são os homens irrealizados, frustrados por mutilações sem remédio senão achas húmidas que jamais tiveram um calor benfazejo que as secasse?
Arder é, pois, o destino unânime de todos os homens. Existimos ardendo, consumindo a matéria que nos faz, confiando-nos à fogueira que nos habita, à vida que, afinal, servimos. Somos pasto das chamas que, empolgando-nos, nos libertam. Se há homens que se poupam à destruição, crendo ingenuamente garantir-se uma durabilidade, tais homens iludem o sentido do seu destino, traem-se de algum modo a si mesmos.
À semelhança de algumas achas que alimentam as cálidas fogueiras de salão ou de borralho rural, há homens que não “ardem” tão bem como outros. Esses não amam o fogo quanto ele revela de insano, irremediável, definitivo. Incombustíveis, o fogo da vida apenas os chamusca…
É digno de nota o facto de uma acha sozinha não arder facilmente. As achas ardem na fogueira porque fabricam e repartem calor entre si, porque se irmanizam no sacrifício capital, ajuntando-se mutuamente para guardarem no centro o potencial calorífico necessário ao atear da fogueira. Um graveto sozinho não arde porque lhe falta exactamente o concurso, a solidária adesão de outros gravetos em número capaz de fazer monte e crepitar.
Podemos aplicar este fenómeno às relações humanas. Ninguém se realiza isoladamente, eis o caso. Um homem só é sempre um homem diminuído na sua humanidade. É repartindo o seu calor fraternal que os homens dignificam a vida que é deles, mas que é de todos, enriquecendo-se termicamente”…

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Imagem da globalização


Um amigo deu-me a ver uma colecção de fotografias de navio porta-contentores chinês que, se não é o maior do mundo, pelo menos será um dos mais gigantescos. A torre de comando excede a altura de dez pisos, mede quase quatrocentos metros de comprimento e é tão largo que não passa pelos canais do Suez e do Panamá. Mas, navegando somente no alto mar, corre vinte vezes mais rápido do que a concorrência, o que lhe permite chegar da China à Califórnia em quatro dias.

O olho leigo embasbaca perante a dimensão colossal do bloco do motor ou da cambota, o diâmetro dos onze cilindros em linha, a força de 110 mil cavalos na hélice entre outras particularidades técnicas, e talvez avalie o peso do investimento, algo como 145 milhões de dólares postos a navegar. Em foco principal fica a carga que o adamastor oceânico pode transportar: quinze mil contentores! Mas, quando o assunto já se esvai para ceder lugar a outro, ouve-se um clique… e não é de máquina fotográfica.
O olho leigo que apreciou o adamastor detém-se a reflectir e então aparece, sobreposta, uma imagem da globalização. Nos seus quinze mil contentores, o cargueiro leva não apenas a mão-de-obra chinesa barata e sem direitos; carrega também os bens de consumo que o Império antes produzia e exportava (passou a importar e não se importa). E quando as onze gruas, quatro dias depois, puserem em terra californiana as mercadorias, bem podem os desempregados queixar-se por lá do desemprego e os empregados trabalharem mais por menores salários.
De regresso à China, o cargueiro leva encomendas urgentes a atender e os contentores atafulhados de rimas imensas de papel, ditas notas de pagamento. Foram produzidas igualmente em quatro dias e valem até que num qualquer canto do planeta algum desesperado tenha o assomo de gritar que o rei vai nu e de pedir a quem de direito que o vista decentemente. Entretanto, a potência imperial espalha oceanos de papel impresso, atolando-se em buracos negros de dívida impagável…
O vaivém pendular do navio porta-contentores desenha no oceano a imagem da globalização, que não consiste apenas na liberdade planetária exigida e obtida pelos movimentos especulativos da alta finança e toda a clientela dos paraísos fiscais. Lembra também uma velha sentença segundo a qual “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos”, ou seja, em linguagem actual, que tudo o que interessa à alta finança internacional interessa à nação. Fiquem, pois, os povos a suportar os défices, os programas da austeridade, do empobrecimento generalizado, da estagnação económica e, a seu tempo, o brinde extremo: a perda da civilização que temos como nossa calcada pelos avanços da barbárie.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Menos editoras, livrarias, livros

Em oito anos, de 2004 a 2012, o país perdeu 132 livrarias. Não faltaram, é certo, as feiras de livros e as promoções de saldos, mas, apesar disso, o sinal continua a valer quanto vale. Aliás, mais expressivo se torna ainda porquanto o número das editoras também diminuiu, dado que foi maior o número das que desapareceram do que as que foram criadas.
É o que se conclui de um relatório realizado a pedido da APEL, Associação de Editores e Livreiros, pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE coordenado por José Soares da Costa e citado pelo jornal “Público” (16-09-14, p. 30). O estudo, “Comércio livreiro em Portugal”, indica que as 694 livrarias existentes em 2004 venderam 140,1 milhões e que, em 2012, as 562 restantes venderam 126,2 milhões – menos 14 milhões. Porém, o ano de 2008 assinalou um pico de vendas excepcional de 404 milhões, após o que entrou em declínio.
Realmente, 2008 permanece como um marco incontornável. O mundo (somente o Ocidental?) virou-se como simples guarda-chuva batido pela tempestade: bancos principais faliram, os governos acudiram-lhes, os Estados endividaram-se, os défices orçamentais exigiram brutais agravamentos dos impostos… e declarou-se a crise geral que estamos a viver. Isto é, a viver sob o famigerado paradigma do neoliberalismo, que promove o empobrecimento dos povos em nome da austeridade e a maior desigualdade social.
O desemprego cresceu, os salários baixaram, o consumo retraiu-se. O Estado social (e, se não for “social”, o que poderá ser o Estado?) encolheu até expor vastos segmentos da classe média arruinada aos mínimos da pobreza real. A fome, alastrando no terreno, pôs bancos alimentares e cantinas escolares em actividade máxima, e, enquanto se expandia uma linguagem desbragada, a dependência do álcool e das drogas, o número de suicídios, o bullying nas escolas e a violência doméstica, irrompia a nova geração (amiga de lobbyis, ansiosa do primeiro milhão conforme o “sonho americano” agora a realizar em Portugal) com direito a tudo sem ter feito nada e já declara os idosos descartáveis…
Naturalmente, nesta calamitosa situação, não surpreende uma diminuição da venda de livros pelas livrarias. Surpreendente será, sem dúvida, o caso dos concertos musicais de vedetas em voga, a bom preço, que se enchem ou os programas turísticos de férias no estrangeiro que se esgotam num ápice. E consta que quatro ou cinco milhões de portugueses já possuem smarphones!
O estudo põe em relevo a “crise aguda gravíssima que afectou o tecido cultural português”. De facto, esta crise entrecruza diversos factores de risco, que envolvem a circulação do livro e toda a sua vivência cultural nomeadamente com índices de segurança, bem-estar, civismo e saúde pública (incluída a mental). É uma crise feita de múltiplas crises.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A edição literária, hoje (II)

Será verdadeiramente estranhável o caso de um autor literário que coloca os seus livros em edições digitais? Vale o mesmo que dizer: serão as edições digitais ainda hoje bizarrias tecnológicas para uns maníacos do cubo de Kubrick desejosos de outro divertimento quebra-cabeças? Concordemos: talvez não tanto, mas, ainda assim… 
A edição de livros impressos em papel prossegue sem quebra notória; essas edições, na maioria dos casos, nem entram no mercado normal, os autores pagam-nas e por vezes vendem-nas, as tiragens baixaram para níveis ridículos. Contrapartida: reduziu-se drasticamente o número dos autores que as editoras comerciais aceitam publicar (porque serão mediáticos ou “têm nome”, prometem vender muito e depressa) quando, por outro lado, se multiplicam em chusma uns curiosos tão afoitos que pagam a publicação das próprias obras para se declararem também “escritores”. Entretanto, os efeitos da crise no país agravaram brutalmente as dificuldades da distribuição e do comércio geral dos livros. 
Nesta situação, o que em primeiro lugar pode estranhar-se não será o caso do autor de ebooks (edições digitais); será, sim, a quantidade impressionante dos títulos novos, livros impressos em papel para escassos leitores. A maioria desses novos títulos, realmente, não traz chancela de nenhuma das editoras comerciais em voga que açambarcaram o mercado transformando o livro em vulgar mercadoria com prazo de validade marcado pela produção do livro seguinte. Nesta situação desastrosa, surpreendente será todo o autor literário experiente que, sem editora como um qualquer amador estreante, se resigna em desespero de causa a publicar obra pagando a respectiva edição (que, humilhado, terá de vender). 
Arrisca pouco quem vaticina que os livros em edição digital vão expandir-se imparavelmente. Sinal dessa expansão deu-o recentemente a Porto Editora ao anunciar que ia incluir também ebooks no seu catálogo. A concorrência obriga… 
Para um autor de livros impressos em papel com edições fora do mercado, ou inéditos, as vantagens oferecidas pela edição digital são flagrantes posto que modestas. Sendo “edições do autor”, livram-no de tropeções advindos de contratos mal redigidos, defeitos de edição incontrolados, deficiências da distribuição, etc. Único senão: se o acesso ao livro for grátis, o autor abdica do seu rendimento. 

Sobrelevando o mercado (em troça, em vingança?), o livro digital ilude as falhas da distribuição melhorando-a até ao extremo limite. Pode encontrar leitores que o queiram em qualquer canto do mundo e, se for gratuito, reconduz a literatura à fonte original da ars gratia latina. Desmaterializando tudo, livro e dinheiro, estará a redimir-nos de tanto materialismo ético desumanizador… [Imagem: painel cerâmico de Rafael Bordalo Pinheiro - rãs num charco e ramos floridos; início do séc. XX]

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Respondo por carta (aberta)

Caro amigo: não te peço concordância, apenas a compreensão que puderes dar-me. Eu sei, é já pedir muito, talvez demais. Mas estou simplesmente a pedir e no pedir, pelo menos, não quero ser peco.
Questionas o mutismo que percebes no teor dos textos aqui editados desde há umas tantas semanas em face de acontecimentos de grande relevo e retumbância internacional. Apontas-me a morte de Eusébio e a “bola de ouro” de Cristiano Ronaldo, sem esquecer os temas da crise feita de crises que devastam o mundo. Consideras estranho que assuntos de tamanho destaque fiquem aqui num silenciamento inexplicável, dado que o cronista escrevia opinando antes sobre o vasto temário que as “Etiquetas” apenas indiciam.
Sem dúvida, meu caro, o teu reparo justifica-se e eu admito-o. Mas... como explicar? Os acontecimentos do dia não têm novidade que preste, o mundo caiu, para o cronista, em confrangedora monotonia.
Que dizer do passamento de Eusébio, do imenso carpir beato de idólatras sobre urna do ídolo morto, ou da “bola de ouro” e lágrima de Cristiano que valessem um átomo mais do que rançosos verbos-de-encher, mais do que estafados lugares-comuns? Não sufocaste até à náusea debaixo das montanhas de papel impresso e das horas, dias inteiros, de rádio e televisão hipnotizadas por tais ocorrências? Mais e melhor: terás sentido, nas gravações de rádio e tv arquivadas e reeditadas, o contraste entre a compostura antiga do relator do jogo e o atroar do actual que aos berros faz passar o golo pelo maior arco de triunfo?
Pobre país com uma cultura onde jornais ditos de referência elevam à suprema categoria de “deuses” uns habilidosos de chuteiras e se dispõem a glorificar um deles como herói no panteão nacional. Triste mundo com uma civilização onde um jogador acumula milhões porque mete mais golos e serve à multidão a droga virtual que a multidão pede. Delírio insano que nem por se ter tornado tão colectivo menos insano será.
Meu caro, devo declarar este (des)interesse: nunca na vida comprei entrada num qualquer estádio; jamais li um jornal desportivo ou discuti pormenores do jogo-espectáculo. Sabes que venho praticando nesta coluna uma modalidade de jornalismo cultural continuando de algum modo o que fiz durante anos, em registo diverso, na prática profissional. Lembrarás também que escolhi o jornalismo aos 33 anos de idade vendo-o como profissão a mais próxima do que eu sentia amar, a Literatura.
Que mais poderei acrescentar? A decência nas relações interpessoais, sociais e internacionais é flor rara do deserto quando massas humanas conformadas, sem vontade nem perspectivas, avançam para a servidão pós-moderna. Onde teremos neste mundo outro Erasmo de Roterdão, igualmente humanista, que desperte as consciências escrevendo um novo e muito mais cabal “Elogio da Loucura”?

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Lua cheia na cidade


O batuque percutiu nos ares durante toda a noite. Estrondeou em bum-buns incessantes que faziam tremer o solo, mas não voei para o interior da selva africana. Estou bem dentro da segunda cidade do rectângulo ibérico, poucos habitantes a cair de sono podem adormecer por aqui.
É a noite da festa tradicional que atrai para a Avenida central e para os bairros populares da periferia multidões espessas predispostas para alegres confraternizações. Festejam a chegada da Lua cheia que assinala o Verão, rito de reminiscência agrária outrora marcado com saltos de fogueira pelo rapazio. Levam nas mãos cravos e manjericos, alhos porros e martelinhos de plástico e há balões pelo ar e foguetório luminoso.
Nesta noite cálida das grandes efusões humanas trazida pela folha do calendário, a crise parece arrumada para um canto e negada a austeridade, o desemprego, o empobrecimento. É geral a euforia colectiva, sôfrega como mesa posta para convivas famintos. Quem vai notar no céu a Lua do perigeu, grande, nítida, luminosa, ou o luar que as luzes eléctricas comem e disfarçam?
Nesta rua, porém, umas incontáveis dezenas de jovens fugiram do espaço público e reuniram-se onde a festa, sendo pública, era privada. Uma espécie de clube para meninos e meninas que gostam de muita festa e alguma dança. Em volta do clube cresce a má fama.
A vizinhança queixa-se. Às nove e meia da manhã seguinte os bum-buns ritmados ainda soavam com decibéis potentes, de loucura, no jardim da retaguarda do prédio, a céu aberto. Da sua porta, com carro da polícia ao lado, saíam grupos e mais grupos de meninos e meninas que davam por finda a noitada…
Copos de plástico, garrafas e latas espalhavam-se pelos passeios, manchas de vinho no cimento, papéis, cervejas mal bebidas, lixo. Perto, na padaria, um vizinho protestava aos berros que não dormira, que chamara a polícia mas que a barulheira continuara. Às dez horas da manhã foi possível a um retardatário tresnoitado chegar ao seu carro de boa marca, ali perto, abrir a porta e, de pé, aliviar a bexiga.
Preocupem-se os sociólogos com esta juventude (não os educadores: para eles, é tarde). Aparentemente, não é rasca nem enrascada; não trabalha nem estuda e tem dinheiro para ir aos concertos, aos espectáculos de futebol, às festas de arromba e bebedeiras memoráveis. Não se interessa por política, é contrária a greves, ri-se dos baixos salários sem direitos, não acredita em causas nobres mas pode curtir chutos valentes, daqueles que disparam o desgraçado corpinho para maravilhosos paraísos artificiais. [Imagem: tendas de alpinistas a uns 1200 metros de altura; ilha de Baffin, no Árctico.]

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Vaticano: o papa resigna

A resignação de Bento XVI, tal como foi anunciada, de rompante, provocou o choque mediático que podia prever-se. Os ares e os dias encheram-se com ladaínhas devotas dos turibulários de sacristia a incensar e a glorificar os esplendores da decisão papal. Mal se ouviu, porém, no meio do alarido, a voz de quem percebeu no caso o sinal perturbante de uma crise que se aprofunda na cúria romana.
Essa crise aumentou ao ponto de provocar esta insólita novidade, impelindo para a desistência de funções o chefe supremo da Igreja católica. Certas fontes vinham de referir o seu real isolamento, o poder fragilizado. A situação geral merecia comentários, as preocupações adensavam-se.
Aparentemente, a renúncia de Bento XVI descerra o que as espessas paredes do Vaticano gostam de conservar bem dentro de círculos muito restritos e esse gesto, de chamar as atenções de um público mais amplo para a situação, será por certo o resultado maior que pretendeu atingir. Talvez o contexto em que se consumou deva incluir, por exemplo, a recente declaração do papa, que condenou o capitalismo selvagem, num pano de fundo em que se movem e contrapõem interesses que tomam o Vaticano como presa em disputa (máfias, maçonaria, opus dei...) Os poderosos senhores do planeta - novos deuses invisíveis - ambicionam estabelecer um governo mundial que naturalmente se completa com a integração do poder religioso.
Seja como for, a Igreja católica atravessa um período agitado de crise geral e de grave decadência. O papa pôde fazer-se perdoar pelo juvenil “passado nazi” mas não teve igual sorte pela cobertura dada enquanto cardeal Ratzinger a padres pedófilos alemães. Por outro lado, não contribuiu para o prestigiar o seu perfil conservador ou a sua pressa na produção de tantos e tantos beatos e santos.
Na verdade, a religião, e particularmente a católica, tem vindo a perder influência no interior das novas gerações (só europeias?), demonstrando que não há religião com as barrigas vazias. O que pode resultar do apelo do papa, há dias, para um renovado aggionarmento da Igreja católica, um outro Vaticano II? As populações envelhecem, há menos nascimentos, mas a sociedade actual, laica, ao desumanizar-se, aprofunda uma radical indiferença pelo outro, o próximo, o semelhante.
O enfraquecimento da vivência religiosa ressalta onde se generaliza a materialização das relações humanas que afirma o individualismo egoísta, a sensualidade ávida de prazeres fáceis e rápidos. Não será decerto apenas a falência da religião enquanto tal. Será também a perda do sentido do que é humano-humanizante no homem, dos valores universais da cultura, matriz da espiritualidade.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A religião em tempo de crise

A situação económica, de crise estrutural, em que se afundam na atualidade tantos segmentos das populações europeias, ajudará realmente os povos a procurar consolo nas igrejas? Ou, inversamente, contribuirá para os afastar e deixar em descrença? A questão torna a pôr-se, pedindo novas avaliações.
O avanço dos conhecimentos científicos e da educação em geral, em coincidência com uma multiplicidade de fatores sociais, tem incentivado um progressivo enfraquecimento da adesão às formas cultuais da religiosidade tradicional. A laicização das populações vulgarizou-se e a religião foi-se resguardando na esfera do privado individual ou de grupo. O anúncio do “fim da fé” sobreveio à proclamada “morte de Deus”, supremo pai da vida substituído, nas sociedades de consumo e da liberdade fictícia, pelo “deus-mercado”.
De facto, Deus é não o criador da vida, logo da humanidade, sim criação humana elaborada em resposta a ignorâncias e medos ancestrais da espécie. Porém, a população católica portuguesa continua a ser maioritária no país, pois representa uns 85%. No entanto, abalada por escândalos de especial impacto (pedofilia, ocorrências no Vaticano), pode ter enfraquecido a fé, concorrendo para o aparecimento de 615.332 habitantes que o recenseamento de 2011 regista sem religião.
Mas a crise socioeconómica, se não anima o valor das côngruas e dos dízimos, pode atrair ao santuário maior peregrinos em renovadas súplicas por um emprego, ainda que lá cheguem de mãos vazias. Por outro lado, nem todas as correntes religiosas sentem a crise de igual modo. Enquanto a católica regista menos fiéis nos templos aos domingos, outras igrejas, da IURD e de outras organizações oriundas do estrangeiro, parece que singram com bom vento.
Nesta situação despontam alguns sinais de uma evolução geral surpreendente. Certas missas e outras celebrações religiosas apresentam-se com liturgias que transformam os templos em teatros e os oficiantes em atores de uma qualquer pantomima, com verbo inflamado e um pequeno sortido de frases repetidas (marteladas) cem vezes até aquecer e levar ao rubro a freguesia. Ora a freguesia aumenta: aprecia o espetáculo, a vozearia, a emocionalidade fácil e mesmo alguma superstição, sai satisfeita e volta.
Deus, lá do Seu etéreo assento, conserva o indefectível mutismo que tomou desde o princípio das idades e, portanto, nada diz. A liturgia deixa-se contaminar pelo lado laico e as celebrações religiosas, com abundantes Bíblias e crucificados, abrem-se para a cultura do espetáculo ruidoso e festivo. A vivência espiritual intimista sai para o exterior a tomar ares, prova da novidade e gosta, fechada num individualismo que não mais distingue religião de religiosidade, fé de crença iluminada por inteligência viva. [Imagem: placa de ugarit, a primeira escrita alfabética.]

sábado, 22 de dezembro de 2012

No país das cantigas

Alguém deve pensar que o povo está a ter o que quer em medo e repressão. Engana-se, mas, no seu tolo contentamento, não o admite. Então este país em crise fica a rever-se outra vez, como num espelho baço, na metáfora criada por um rançoso filme dos anos '50.
Portugal torna a ser um «pátio das cantigas», pois se foi enchendo de música, muita música, para alegrar todos os gostos à medida que, por outro lado, se foi enchendo de depressão e desespero, desemprego e baixos salários, raiva e opressão. Música, a ligeira, mais abundante, ou a outra, dita culta, são cultura apreciável, é verdade. Mas a dificuldade talvez seja já a de ouvi-la, tanta é a que se espalha pelos quatro cantos da agitação sem conseguir distrair ou acalmar as dores dos brutais apertos de cinto.
Não há dúvida, porque é facto evidenciado, o comércio da música gravada caiu a pique. Os autores queixam-se da pirataria que a Internet permite, embora permita também imensas cópias legais gratuitas entre outras pagas. Alterada pela generalização do formato digital, a situação atingiu duramente editores e sociedades de autores, que reclamaram contra a liberdade na Net reagindo contra a «liberdade da pirataria» (duas questões distintas, julgo eu).
Mas, neste tempo de terríveis carências, é música embaladora o que mais abunda. As rádios debitam-na, torrencial, e os diversos aparelhos de reprodução portátil em uso levam-na para todo o lado. Somando os festivais, não é pequena a romaria, mas falta ainda agregar qualquer coisa.
Temos, estrategicamente semeados pelo país, uma apreciável quantidade de antigos cine-teatros que foram adquiridos pelos municípios (lembre-se, com subsídios europeus tão generosos como os que serviram para construir isto e paralisar aquilo - a agricultura, as pescas, a produção nacional de bens de consumo) e transformados em modernos auditórios onde realizam concertos bandas nacionais e estrangeiras em itinerância. E temos a jóia da coroa, a Casa da Música, a funcionar no Porto, com subvenção anual do Orçamento de dez milhões, agora reduzido apenas a sete, imagine-se o revés musical!
Todavia, o povo dispõe-se a abrir a boca cada vez menos para cantar modas de embalar meninos. Prefere gritar, de goela aberta, os seus protestos pelas avenidas, erguendo bandeiras vermelhas e negras e exibindo palavras de ordem em faixas que estendem de lado a lado. Já não vai em cantigas.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A crise e a moralidade

Um período de crise aguda costuma exigir, sem mais justificações, o sacrifício de liberdades e direitos sociais estabelecidos. O primeiro reflexo de tal sacrifício atinge os padrões da vivência moral que resulta do avanço da civilização em cada comunidade. Porém, as regras morais não mudam, dado que (cito): «Sem contestação, não se encontrará no mundo coisa alguma que tenha sofrido tão poucas mudanças como esses grandes dogmas que compõem o sistema moral.»
O trecho encontra-se em A Ideia de Deus, livro de um autor esquecido, Sampaio Bruno, que o publicou em 1902. Ora, na transição dos séculos XIX e XX, a crise que sobre Portugal se abatia, sendo diferente, não seria menor do que esta, atual. O pensador portuense situou a questão, escrevendo: «De facto, com o andar dos tempos e com o rodar da civilização, a moral depura-se, porque precisamente a ideia da igualdade (cada vez mais profundamente) mergulha e embebe as suas raízes. De maneira que a moral deixa de ser localista, regionalista, nacionalista, de classe, de raça, de religião - para passar a ser humana e genérica.»
A ideia da igualdade, diz Sampaio Bruno? Da igualdade como pedra de toque da Democracia? Aqui temos, então, uma porta aberta para chegarmos à contradição mais dilacerante do nosso tempo, o tempo das desigualdades em crescendo.
E todavia... «O homem, de instante para instante do seu desenvolvimento, compreende mais intimamente, de momento para momento mais se compenetra de que o carácter do acto moral consiste em /.../ não admitir retribuição alguma. O acto moral só é puro (isto é, só é verdadeiramente moral) quando nada recebe em troca.»
Sampaio Bruno, cristão que chegou ali a visionar uma sociedade sem classes, recorda, de Vitor Hugo, o célebre diálogo entre o padre Cimourdain e o general Gauvain, franceses em masmorra prontos para a guilhotina: «Gauvin redargue que, quando se haja dado a cada um aquilo que lhe pertence de direito, resta ainda dar-lhe o que não lhe pertença. Isto é, resta ainda a obrigação última: resta ainda a liquidar aquela suprema dívida dessa "imensa concessão recíproca que cada um deve a todos e todos devem a cada um".»
Sampaio Bruno cita o diálogo: «"Fora do direito estrito, não há nada. - Há tudo. - Eu não vejo senão a justiça. - Pois eu olho mais para cima. - Então o que é que há acima da justiça? - A equidade"».
«Mas só haverá Moral perfeita quando haja perfeita Igualdade.» Porquê? «Porque as verdades da Moral são uma só e única verdade.» «Aqui está a razão por que a educação moral falha em parte. É porque uns [homens] não são iguais aos outros.»

domingo, 6 de maio de 2012

Net sob vigilância

Quem manda nos poderes do mundo não desarma. Os ataques continuam a ser lançados porquanto umas ilhotas de liberdade que resistem no espaço cibernético incomodam demais a gente que pretende nivelar tudo por baixo. Depois de SOPA e de ACT, que energicamente soubemos rejeitar, temos agora CISPA (Cyber Intelligence Sharing and Protection Act) a ameaçar de controlo a Internet.
Esta nova ofensiva contra a liberdade de expressão, esteio fundamental da democracia, foi aprovada pela Câmara dos Representantes norte-americana por 248 votos a favor e 168 contra.  O CISPA será usado, alegadamente (acrescenta a notícia), «em caso de possível ameaça informática», ficando esta «possível ameaça», para já, a pairar como a maior ameaça da Net que queremos autenticamente livre. O Governo português nestas coisas é zeloso e não perdeu tempo, aderiu logo.
Sobram, porém, motivos de preocupação. O novo projecto da partilha de informações privadas dos cibernautas por uma «inteligência» planetária, facilitada pelos governos aderentes, entrega aos Estados Unidos o pouco que lhe faltará para ter em posse o domínio efetivo das informações da população pouco menos que mundial. Promete agir em nome da «segurança» e da «proteção» não esclarecendo de que segurança e proteção se trata.
A preocupação avulta até porque o anúncio do CISPA coincidiu com a detenção, pela PSP, por «manifestação ilegal», de alguém que distribuía um papel informativo à porta de um centro de emprego e, em França, de um cientista parece que franco-argelino porque, veja-se isto, escreveu umas «ameaças» num mail. Assinalavámos então o Dia Mundial da Liberdade da Imprensa. E o site da Avaaz, organização consagrada à defesa de causas internacionais justas e humanas, apareceu a queixar-se de um ataque, notando que, pelo seu tamanho, «seria possível só de entidade governamental ou grande corporação».
Vai a onda imperial, finalmente, alagar o planeta e submergir a variedade imensa das ideias e opiniões em confronto vivo da humanidade plural? Ao serviço de quê? Tem a palavra, em primeiro lugar, os cibernautas.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Escultura ao ar livre


Pouco espaço resta, actualmente, à escultura, para se exibir e guardar, que não seja museu ou ar livre. Mas no museu entra hoje somente a obra consagrada, ficando cá fora muito de bom e do menos bom, senão do detestável que se vê por aí, nas rotundas em vertiginosa propagação, como mamarrachos erguidos à categoria de arte. Contudo, entre as macaqueações de escultura que surgem e se multiplicam no espaço público, aparecem obras com verdadeira dignidade estética, merecedoras de atenta contemplação. Estas obras, expostas ao ar livre, portanto em pública fruição, concretizam o que parece ser a autêntica função da escultura admirável que não «cabe» nos museus, instituições que, cabe lembrá-lo, tão poucas pessoas frequentam. É o caso deste díptico de autoria do escultor Bruno Catalano (França). Resulta fortemente expressivo. O Emigrante que parte não parte inteiro: deixa para trás a terra que leva, agarrada às solas dos sapatos, com um enorme buraco aberto no peito; o Imigrante que chega ao destino é o estranho homem dividido entre um lá e um cá, sem verdadeiramente a nenhum lado pertencer por inteiro. O drama humano da emigração é paralelo a outro de não menor atualidade - o drama dos refugiados, seja de conflitos étnicos, religiosos, políticos, regionais ou nacionais. Sem esquecer os refugiados naturais, deslocados por cataclismos ou transtornos insuportáveis do clima (poluição, erosão, desertificação) ou de crise.

sábado, 10 de março de 2012

O Estado e a crise

Com menos Estado há menos empregos, menos PIB, tribunais e justiça, inclusivamente fiscal, menos cuidados hospitalares e segurança nas ruas. Há menos ensino público, transportes populares, fiscalização e proteção do consumidor. Haverá até, naturalmente, menos contravenções de trânsito e menor permeabilidade das fronteiras para drogas ilegais, além de menos corrupção geral. 
Um Estado forte serve capazmente os seus cidadãos. Não se vê um defensor coerente da Democracia e do desenvolvimento social a exigir menos Estado. Isso é a marca de uma política de direita, alinhada com a defesa dos interesses da classe dominante instalada nos lucros gordos da atividade bancária.
Erguer como bandeira de qualquer programa político o corte de umas pretensas «gorduras» do Estado esconde a intenção de atentar contra os direitos conquistados ou os interesses essenciais da maioria da população nacional. Tal intenção é marcadamente de direita, pois serve uma minoria à custa da maioria. É uma política com simples máscara democrática.
Um Estado forte garante a solidez das instituições, a estabilidade social, o desenvolvimento coletivo. Tem vontade e forças para agir corretamente, com rigor e ética, no plano das relações internacionais que a nação mantenha. E garante a defesa da melhor soberania ainda que a nação atravesse um período de dificuldades económico-políticas.
A fonte legítima da soberania do Estado é, como bem se sabe, o seu povo - o povo que, por definição, forma a grande maioria da população eleitoral. Nesta base, o Estado organizado assume de raiz uma natureza democrática. Ora, na complexidade do tempo presente, quando já nem se discute a natureza de classe (burguesa) do Estado, torna-se imperativo declarar e perceber com clareza máxima que os Estados (sem soberania porque têm dívidas «soberanas»!) foram ou estão sendo tomados de assalto pelas mais poderosas oligarquias conjugadas no projeto da globalização.
Na presente conjuntura, defender o Estado contra o ataque da usura gananciosa lançado pela especulação financeira internacional é dever de todo o cidadão avisado e consciente. Não há outra forma, eminentemente democrática, de evitar a ruína (e a extinção?) das classes médias - a grande maioria eleitoral - e escapar à conhecida e sofrida espiral dos défices crónicos, endividamentos, programas de «ajuda»,  austeridade e recessão, enfim, de todo o ciclo do empobrecimento. Em suma: ou as classes médias conseguem evitar o colapso do «seu» Estado ou se afundam com ele.
É preciso notar que estamos a ser arrebatados por um imperialismo financeiro global que subjuga os Estados para, através deles, espoliar as massas populares. À frente aparece, na União Europeia, o novo Tratado que institui o MEE e outros dispositivos. Tudo se prepara para liquidar a soberania que as nações mais enfraquecidas ainda detenham e estender o drama da Grécia às restantes... caso as massas populares europeias prefiram discutir o sexo dos anjos tendo o inimigo à porta.
No plano do debate das ideias ou em disputa eleitoral, somente uma política radicalmente de esquerda conseguirá opor resistência coerente e eficaz a tal golpe. Porém, não parece admissível que as massas eleitorais, afundadas em apatia induzida, se virem para a esquerda digna do nome reconhecendo embora que essa esquerda jamais se sentou nas cadeiras do poder. Irão, por isso, votar como sempre?! 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Ano novo... velho

Os telejornais das oito horas já haviam mostrado imagens da passagem de ano na Austrália e na Ásia, chegava agora o momento de os habitantes da ponta ocidental do continente europeu vigiarem o avanço do ponteiro dos segundos. Ia completar-se o minuto que completaria a hora que terminaria o dia do derradeiro mês de mais um ano! De uvas passas em riste, a senhora ia descontando os segundos até ao zero e, quando levou à boca a última das doze passas, soltou um brado entusiástico, triunfal.
Ali entravam todos, a senhora e o seu grupo, no novo ano. Saudavam-no com ruidosa alegria e muita expectativa, em redor de mesa bem guarnecida de comes e bebes seguindo um costume ancestral que, aparentemente, queriam manter apesar de tolhidos pela crise. Lá fora, na noite tranquila, no limiar do anno horribilis do anunciado empobrecimento, o povo também festejava e bramia: explodia uma fartura de foguetório e o céu noturno abria-se em girândolas pirotécnicas, mil luminárias em derrames ourescentes.
Os povos, da Austrália ou da Ásia à Europa, recebiam com entusiasmo o ano novo. Queriam ter, certamente, um tempo novo, uma renovação de vida. Mas acaso é, ou pode ser, o ano novo um «outro» tempo?
O que é, em rigor, o tempo (terrestre, humano)? A resultante natural dos movimentos de rotação e translação do habitáculo espacial da humanidade em redor do Sol? E o que tem isso a ver com o tempo cósmico?
A contagem do nosso tempo, terrestre e humano, marcado pelas folhas do calendário, lembra quanto o homem se faz a medida de todas as coisas. A mudança de ano é acontecimento que não interrompe uma duração em contínuo fluir. Se os povos afundados em crises de brutais consequências ainda aproveitam a ocasião para festejar, talvez estejam agora a fugir do medo mais do que a expandir crença no futuro.
A simples mudança do ano na contagem da nossa era, o que muda? O tempo é o velho, sempre. E as pessoas continuam as mesmas.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A ordem é empobrecer!

O povo da Grécia vive uma tragédia a que devem dar atenção os outros povos do Ocidente e em especial os restantes da União Europeia. A tragédia dura há anos, de certo modo desde a Segunda Grande Guerra, prolongando-se agora numa agonia implacável e tanto mais implacável quanto mais dura. Nessa duração, porém, poderão os outros povos aprender, se quiserem, a evitar tal sorte.
Na verdade, a Grécia vai à frente do «pelotão» de países em crise como candeia que alumia o caminho traçado pela avidez gananciosa do sistema financeiro internacional. Os Portugueses, sobretudo, irão ver-se no lugar dos Gregos se não arrepiarem caminho e, em clamorosa maioria, travarem a ruinosa política pretendida pelas troikas externa e interna. A dívida pública (ou soberana, do Estado) e a crise financeira internacional servem de álibi para, em nome da «crise», extinguir as conquistas sociais obtidas com a democratização do 25 de Abril e condenar Portugal, outra vez salazarento, ao «terceiro mundo».
A indignação pública é importante indicador da reação popular, mas verdadeiramente decisiva será uma compreensão, mínima que seja, de como entramos na espiral das dívidas e no garrote que subjuga as nações para as saquear. Um governo excede o seu orçamento gastando em obras de fachada e origina um défice, vende ao desbarato património público apetitoso para compor as contas, o défice agrava-se (com a destruição de setores produtivos, austeridade e recessão), pede empréstimos e mais empréstimos à banca, as obras de fachada prosseguem e as dívidas crescem, os juros trepam, e surgem as dificuldades de «financiamento da economia nacional». O governo isenta-se de culpas e de responsabilidades, alega que o povo viveu acima das suas possibilidades e convida-o a aguentar sacrifícios mais e mais pesados... A ordem é clara: o geral empobrecimento.
Neste ponto faz-se lembrar quem há uns anos, agourento, fazia uma previsão incrível: a alta finança ensaiava na União Europeia, com a introdução do euro, uma estratégia que iria afundar as nações do sul em proveito das do norte. Hoje já se vê que a moeda única não poderá de facto ter futuro numa união de 17 membros com ritmos de desenvolvimento desiguais, assim como uma composição ferroviária com 17 carruagens em rodas de tamanho e feitio diferentes.
Então é indispensável que a população em geral perceba até que ponto o governo serviu a estratégia da alta finança especulativa em óbvio prejuízo do povo que o elegeu. Perceba até que ponto perdeu pelo caminho a democracia e a liberdade. Até que ponto as dívidas acumuladas pelo Estado transformam os cidadãos em modernos escravos que terão de lutar pela libertação.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A crónica perplexa

Quem escreve a crónica, em primeiro lugar escreve para si. Põe no papel ou no ecrã a expressão que melhor o define. Mas, inevitavelmente, a expressão escrita destina-se a ser lida e, portanto, o escrevente em breve deixa de escrever apenas para si.
Idealizando destinatários, talvez até deseje anular-se por detrás do que escreve para enfatizar ao máximo a expressão que o seu escrito pode ter para quem o leia. Quer justificar o interesse que atribui ao seu texto e que ele próprio quer interessante de tal modo que, ao terminá-lo, sinta que com ele, em primeiro lugar, a si próprio se beneficiou. Mas o escrevente anda agora a sumir-se em perplexidades.
Escrever o quê, para quem? Os seus leitores mostram-se fartos de notícias cada vez mais apavorantes. Preferível é fechar os ouvidos a conversas próximas e não ligar a televisores, rádios e jornais que dia a dia põem a jorrar anúncios de estarrecer em progressão assustadora.
Ninguém gosta de mensageiros de novas desgraças, dá ganas de os pendurar como cartas de prego para abrirmos nas datas aprazadas, quando já for tarde e as ameaças todas que hoje vemos e as do próximo futuro se tiverem consumado como verdadeira tragédia grega por nós revivida. Então, sendo assim, sobre o que vai escrever a crónica? Onde topar asas protetoras que nos abriguem das fúrias da tempestade?
O mundo está em brutal convulsão e Portugal está no mundo. Não sobra lugar para temas sérios mas velhos como a Palestina ocupada e colonizada, o bloqueio ianque a Cuba, a violência desatada no Congo, ou as misérias do povo haitiano após o terramoto, a falência da ONU, as guerras no Iraque e Afeganistão, as calamidades que varrem o Corno de África... O mundo está feio e mau, invadido por angústias, indiferenças ou anestesias, e a crónica, hoje, não pode falar do mundo sem ficar também, para os leitores, um pouco assim.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O caminho da subversão

Movemo-nos, já ensurdecidos, entre discursatas sem fim que se cruzam no ar com opiniões sobre a «crise» apreciada por todos os ângulos imagináveis. É o problema das dívidas soberanas, das agências de rating e dos «mercados» ou da inépcia franco-alemã. Porém, sendo diferentes, as opiniões são concordes num ponto: não dão nome claro ao monstro.
Ora é preciso nomeá-lo para olharmos de frente a monstruosidade. Não é fácil descer ao fundo da questão largando os toques pela rama, mas estamos dentro do labirinto e sem podermos fugir ao minotauro. Esforcemo-nos, pois, com a máxima aplicação, para chegarmos a compreender bem como funciona hoje  e nos avassala o sistema financeiro internacional, isto é, como avançamos sem tino pelo caminho de uma global subversão.
Vemos as classes médias a desaparecer e a pobreza, o desamparo, a miséria a aumentar... e o que nos impede de crer na luta de classes? Dizem-nos que entre 2000 e 2009 uns 150 mil milhões de rendimentos saíram do país e agora temo-lo afundado num mar de dívidas, sob um regime de austeridade imposto pela troika externa (que o Governo recém-eleito agrava achando-o escasso), em resultado das políticas de direita praticadas nos últimos trinta anos... e os eleitores deram 78% dos votos aos três partidos que puseram o país nesta situação? Que explicação haverá melhor do que esta, que a riqueza (mal) distribuída de 99% da população está a ir para as mãos de 1%?
O fim da regulação do sistema financeiro pelos poderes estatais abriu as portas à instalação do capitalismo selvagem. A estratégia especulativa da alta finança, depois de atrelar os governos aos seus interesses gananciosos e de criar o seu «mercado», aposta na exploração das riquezas de cada Estado mais a jeito (de estrutura económica mais frágil) através dos bancos nacionais. Assim, cada um destes Estados dilui pouco a pouco o seu papel histórico - garantia aos cidadãos os seus direitos constitucionais, no mínimo os direitos humanos - e, pela imposição de cargas tributárias crescentes, vai-se transformando em agente da acumulação capitalista na mais aguda fase imperialista.
Nesta viragem, os Estados tomam o papel de inimigo das classes médias ao tornar-se em funcionais órgãos da ganância da especulação financeira do grande capital. Começam por induzir as classes médias a consumir e a endividar-se (dinheiro fácil volve-se dívida generalizada) e quando a bolha criada rebenta, chegam os programas de austeridade e mais e mais recessão. Declara-se então a ditadura da debitocracia - o poder maior das dívidas acumuladas sobre os povos que têm de as pagar.
É uma síntese sem dúvida esquemática e abreviada mas clara quanto basta para alertar os distraídos de uma viragem fundamental. Os Estados mudaram. Existem para apoiar, em primeiro lugar, as políticas convenientes delineadas por quem manda no FMI, no Banco Mundial, nas agências de rating, ou em Wall Street.
Não se prevê que algum luminar da proclamada Ciência Económica venha esclarecer o ponto, ocupados como andam com as suas aulas ou a discursar por conta de governos, bancos, sociedades financeiras. Tão pouco se espera que um governante, chefe de partido do arco do poder ou comentador mediático solte o trava-línguas. O caminho da subversão parece irreversível, fique este alerta metido em garrafa caída no deserto sob a violência brutal do sol donde, numa explosão, o gigante da fábula saírá novamente em liberdade para cumprir três desejos. [Imagem: pintura de Julian Beevar em chão de rua.]