Alguém deve pensar que o povo está a ter o que quer em medo e repressão. Engana-se, mas, no seu tolo contentamento, não o admite. Então este país em crise fica a rever-se outra vez, como num espelho baço, na metáfora criada por um rançoso filme dos anos '50.
Portugal torna a ser um «pátio das cantigas», pois se foi enchendo de música, muita música, para alegrar todos os gostos à medida que, por outro lado, se foi enchendo de depressão e desespero, desemprego e baixos salários, raiva e opressão. Música, a ligeira, mais abundante, ou a outra, dita culta, são cultura apreciável, é verdade. Mas a dificuldade talvez seja já a de ouvi-la, tanta é a que se espalha pelos quatro cantos da agitação sem conseguir distrair ou acalmar as dores dos brutais apertos de cinto.
Não há dúvida, porque é facto evidenciado, o comércio da música gravada caiu a pique. Os autores queixam-se da pirataria que a Internet permite, embora permita também imensas cópias legais gratuitas entre outras pagas. Alterada pela generalização do formato digital, a situação atingiu duramente editores e sociedades de autores, que reclamaram contra a liberdade na Net reagindo contra a «liberdade da pirataria» (duas questões distintas, julgo eu).
Mas, neste tempo de terríveis carências, é música embaladora o que mais abunda. As rádios debitam-na, torrencial, e os diversos aparelhos de reprodução portátil em uso levam-na para todo o lado. Somando os festivais, não é pequena a romaria, mas falta ainda agregar qualquer coisa.
Temos, estrategicamente semeados pelo país, uma apreciável quantidade de antigos cine-teatros que foram adquiridos pelos municípios (lembre-se, com subsídios europeus tão generosos como os que serviram para construir isto e paralisar aquilo - a agricultura, as pescas, a produção nacional de bens de consumo) e transformados em modernos auditórios onde realizam concertos bandas nacionais e estrangeiras em itinerância. E temos a jóia da coroa, a Casa da Música, a funcionar no Porto, com subvenção anual do Orçamento de dez milhões, agora reduzido apenas a sete, imagine-se o revés musical!
Todavia, o povo dispõe-se a abrir a boca cada vez menos para cantar modas de embalar meninos. Prefere gritar, de goela aberta, os seus protestos pelas avenidas, erguendo bandeiras vermelhas e negras e exibindo palavras de ordem em faixas que estendem de lado a lado. Já não vai em cantigas.
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