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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Como Portugal vê Galiza

A publicação do livro antes recenseado veio na companhia deste outro A Imagem da Galiza em Portugal. Assina-o Carlos Pazos-Justo e no subtítulo traz “De João de Redondella a Os galegos são nossos irmãos”. Complementam-se, diria que na perfeição, reciprocamente.
Ensaiando uma resposta, o autor desta abordagem debruça-se no estudo de representações da Galiza detectadas no imaginário português. Elabora, assim, uma abordagem à ciência da imagiologia, cujos conceitos explicita, para exprimir como entende o “funcionamento das imagens enquanto discursos de representação do outro.” Acrescenta à sua obra, em resenha diacrónica, a imagem que a Galiza tem no exterior.
Carlos Pazos-Justo (n. 1975), formado em filologia em Santiago de Compostela e doutorado em Ciência da Cultura na Universidade do Minho, situa nos períodos da vigência das ditaduras de Franco e de Salazar a análise da imagem dos galegos e da sua terra captada no nosso país. Ilustra muitas páginas com fotografias, desenhos, gráficos e citações, mas liga este livro, de algum modo, ao caso, que recorda, da senhoria que lhe alugou um apartamento em Braga e, lisonjeira, teimou que Carlos não era “galego”, era, sim, “espanhol”.
Na verdade, as imagens são construções sociais complexas que se transformam em representações tanto ou tão pouco “reais” quanto pretender que “o fado é português” – nota Pazos-Justo – ou imaginar o momento do desembarque de Colombo na América recordando a cena composta (em 1862?) pelo pintor Dióscoro Teófilo inserida nos manuais escolares. Porque as imagens são também discursos. A imagem propalada de uma Galiza pobre, atrasada e suja resulta assim num estereótipo construído por sucessivas simplificações que “pode condicionar as ideias mas também as formas de agir, as práticas das pessoas”. (p.16)
Tal como outros intelectuais galegos, também este autor faz questão de apontar, no plano historiográfico, a antiguidade do Reino da Galiza do qual saiu o reino de Portugal e, no séc. XII, a nação portuguesa. O progressivo  confinamento, no espaço peninsular, do reino da origem comum acentuou-se no séc. XV e Galiza foi ficando arredada num lugar periférico por força de conjunturas diversas e adversas. Com esta questão, Pazos-Justo documenta quanto o povo galego é atingido por esta imagem “construída” pela história.
Em Portugal, naturalmente, os galegos outrora imigrados em Lisboa e no Porto e a Galiza actual ainda se confundem, ao nível popular, com estereótipos caducos. Existem dificuldades político-diplomáticas que atrasam a sua integração na comunidade lusófona (Madrid está contra), mas abrem-se novos quadros relacionais, por exemplo, no plano económico-social da Galiza e Norte português. Deveras desejável é que o imagotipo negativo que forçou Pazos-Justo a “ser espanhol” em Braga em breve se dissipe!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

E Galiza aqui tão perto


Questão recorrente, incontornável. A Galiza. Sempre perto, a morar do outro lado do rio Minho e, no entanto, sempre algo remota, como se aquele rio não fosse navegável, não tivesse ponte ou os portugueses não soubessem nadar…
Saudemos, portanto, com especial ênfase, o livro A Imagem de Portugal na Galiza, por Carlos Quiroga, edição Através de Nós, Santiago de Compostela, 2016. A editora tem ligação com a Associaçom Galega da Língua (AGAL), e o autor, licenciado em filologias Galego-Portuguesa e Hispânica, doutorou-se e é professor titular da Universidade de Santiago.
O livro resultou da “pretensão de pensar Portugal e contribuir para a reflexão crítica sobre a sua identidade, construída em boa parte na sua relação com os países de língua oficial portuguesa em cuja comunidade política, linguística e cultural se integra”, conforme indica Advertência. Com cerca de 120 pp, a obra consegue abarcar numa síntese e analisar o que o projecto inicial requeria, elaborando o conjunto dos dados disponíveis e sumariando-os desde a remota antiguidade, os séculos ditos “obscuros”, o Ressurgimento (séc. XIX), o séc. XX, a contemporaneidade e uma síntese final.
De facto, Carlos Quiroga perspectiva o nosso país historiando e documentando que a Galiza existe com anterioridade. Escreve (p.15): “Quando e como nasceu Portugal, como cresceu e com quem brincou e se bateu, explicam quem hoje é. E só a vizinha da mansarda de cima sabe. Porque esteve sempre lá. Portanto temos que recuar mais um bocado no tempo.” Os historiógrafos pátrios poderão, se quiserem sair à liça, discutir o ponto.
Quiroga evoca a remota Gallaecia, província romana, acompanhando com mapas a sua evolução no terreno durante os períodos suevo e visigodo, as relações dos dois países ibéricos; foca o plano político, literário e popular, os movimentos migratórios de ambos os povos, etc. Identicamente, destaca os intelectuais galegos que promoveram o Ressurgimento cultural, as adesões de portugueses como Teixeira de Pascoais ou M. Rodrigues Lapa, as dificuldades e controvérsias geradas em torno da adopção de uma norma linguística, o projecto de uma aproximação ou até integração no espaço lusófono (enquanto Guiné Equatorial mete o pé à porta, Galiza espera) ou de uma sonhada via política independentista.
Assim mesmo regista a escassez das trocas comerciais, os pecos frutos colhidos do Eixo Atlântico, de modo que, a concluir, Carlos Quiroga cita Moisés de Lemos Martins (p.106): “Amorosamente indecisa e duvidando, a identidade galaico-portuguesa sonha, todavia, com um parentesco histórico, cultural, étnico e linguístico, entre Galiza e Portugal.” O que será, para os galegos, como dizer: “Menos mal que nos queda Portugal!”

segunda-feira, 21 de março de 2016

Manuel Maria, poeta galego

m.maria.jpgAs relações culturais, ou antes, dos escritores e artistas das duas margens do rio Minho têm sido irregulares, esporádicas como a vontade de abraçar e de dançar. Mas, quando tal acontece, a festa vivida deixa sempre, dos lados de cá e de lá, apetite para mais. E, no ar, também uma interrogação (saudosista) sem resposta: porque há-de a festa ser assim tão escassa?

Um bom período de aproximação cultural luso-galega foi possível nos últimos anos ’60 e início dos ’70 do século XX, coincidindo de certo modo com o final do regime Salazar-Caetano. Envolveu escritores, pintores, poetas, cantores, académicos, jornalistas e múltiplas partilhas cruzadas, até que a eclosão do 25 de Abril concentrou o país sobre si próprio. Incluiu exposições documentais, recitais, palestras, congressos e publicação de livros e revistas.
Figura eminente nesse período em Portugal foi o meu amigo poeta Manuel Maria. Visitou Portugal diversas vezes, uma das quais, muito por ele recordada, com o pintor Pousa, e aqui lhe publiquei três livros: Sonhos na Gaiola, poemas para crianças (Lisboa, 1968); 99 Poemas (Porto, 1972), e Odes num tempo de Paz e Alegria (Porto, 1972). Depois ficámos “perdidos” um do outro até que vim a saber que Manuel Maria [F. Teixeiro] falecera já em 8-09-2004, na Corunha, com 75 anos.
O poeta nasceu na sua querida Terra Chã (Outeiro de Rei, 6-10-1929) e viveu em Monforte de Lemos, onde uma estátua o recorda em público, sentado à mesa e de livro na mão, e existe uma evocativa “Casa Manuel Maria”. Filho de camponeses, estudou para bacharel e foi solicitador. Participou nos anos ’60 na organização clandestina de partidos nacionalistas. Em 1985 abandonou a política e mudou-se para a Corunha, onde, hospitalizado, acabou por falecer. Realizou uma actividade literária intensa e imensa: desde 1950, publicou mais de meia centena de obras, sobretudo de poesia, mas também de teatro e antologias das suas próprias produções.
Recordo, por exemplo, Muiñeiro de Brétemas, a sua estreia, de 1950, e a sua última obra, Os Longes do Solpor, de 1993. A Wikipedia.pt lista pelo menos 25, desde Mar Maior, 1963. Trocámos abundante correspondência durante aquela meia dúzia de anos e visitámo-nos algumas vezes. Entretanto, fico preso a uma vasta rede de outras recordações, nomeadamente de Joaquim Santos Simões, um querido amigo de Guimarães, companheiro destas e de outras lides, José Maria Álvarez Blázquez e seu irmão (Edicións Castrelos, Vigo), J. L. Fontenla, Irmandades da Fala… mas como não recordar ainda os esforços, inúteis, que fiz pela publicação, em português normal, de parte significativa da obra literária de R. Alfonso Castelao?! [Imagem: Manuel Maria em retrato (pormenor) num cartaz.]

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Três poetas “de pedra”

Entre os poetas líricos temos alguns que, sendo como todos os líricos, se inclinam por vezes para a poesia social. São poetas militantes, marcadamente solidários com o povo, prontos para misturar a sua voz poética nos ardores das lutas colectivas em defesa das causas nobres. Os aplausos populares, vivos e entusiásticos, que os rodeiam contrastam de imediato com a sanha dos tiranos que os metem nas suas masmorras, os torturam e mandam para o exílio.
A um período especial de tiranias pertencem três poetas do século XX merecedores de especial evocação. O primeiro surge em Caracas, Venezuela, e ali ficou a avultar como herói nacional. Andrés Eloy Blanco (1896-1955) é o celebrado autor de Barco de Piedra, 1937, poemas compostos entre 1928-32 em diversos cárceres nacionais.
Aquele país, à semelhança de tantos outros na América Latina, conheceu então déspotas e tiranos, ditadores e carrascos, políticos e regimes detestáveis. O título do livro proclama, por sinédoque evidente logo bem recebida nos dois lados do Atlântico, que regimes execráveis não teriam futuro, depressa se afundariam. Por desgraça, nos anos ’30 e posteriores, não eram os povos latino-americanos os únicos atingidos pelos horrores da repressão ditatorial permitida pela abolição da liberdade e da democracia.
A metáfora contida no título de Andrés Eloy Blanco foi retomada em seguida por outros poetas também erguidos contra a tirania e a barbárie. Celso Emilio Ferreiro (1912-1979) publicou Longa Noite de Pedra em 1962, em protesto contra o regime franquista que sufocava a sua Galiza natal, forçando-o ao exílio na Venezuela. A “noite de pedra” seria agora a situação dos Galegos oprimidos por um ditador que maltratava o seu próprio povo.
Uma outra obra de Celso Emilio Ferreiro, galeguista assumido, evocarei a propósito (extraindo a imagem da capa do site do poeta). É Autoescolha Poética, publicada por Razão Actual, no Porto, em 1972, recolha de poemas de 1954-1971. Aquela minha editora editou obras de outro poeta galego, Manuel Maria [F. Teixeiro] na norma galega então vigente.
Mas, entretanto, aos Portugueses, sob Salazar, não sorria melhor sorte. Luís Veiga Leitão (1912-1987) publicou Noite de Pedra em 1955, depois aumentada e reeditada em Ciclo de Pedras, 1964. Neste ponto, importaria averiguar quão original terá sido cada variante do título inicial e se foi inicial, mas é trabalho que excede em extensão o braço que isto escreve. Porém, assim se consagrou a pedra, ou noite de pedra, como metáfora de cárceres políticos ou ambientes repressivos, emparedados e frios como os regimes ditatoriais que os utilizam… então e sempre. [Capa da 1ª ed. de Barco de Piedra, comprada em 1957 - Caracas.]

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Galiza lusófona avança

Entrou em vigor na Galiza, há poucas semanas, uma lei que introduz o estudo do Português em todos os níveis do seu sistema educativo. Aprovada por unanimidade no parlamento daquela região autónoma, a lei visa ainda o estreitamento dos laços com os países da comunidade lusófona. É um importante passo em frente que merece registo e caloroso aplauso.
A lei, resultante da proposta designada Iniciativa Valentin Paz-Andrade, teve na base a sociedade civil. Assinada por 17 mil cidadãos galegos, gerou no parlamento uma rara unanimidade das opiniões partidárias. Agora, a lei ordena ao governo galego “incorporar progressivamente a aprendizagem do Português em todos os níveis de ensino”; privilegiar o seu domínio como um mérito especial para aceder à função pública; e a tomar “quantas medidas sejam necessárias” para que o território galego receba as emissões de rádio e tv portuguesas.
Assim, a opinião pública da Galiza parece orientar-se finalmente para um consenso, encerrando o longo período de conflito linguístico em que se debatiam as correntes e se digladiavam as soluções. A adopção do Português abre mesmo o caminho para que o governo da Galiza peça para que a região autónoma entre (“de algum modo”, nota Xose Morell, porta-voz da comissão promotora da proposta) na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Citado na imprensa, Morell assegura que “hoje há mais gente que vê o galego como língua internacional e útil para se comunicar com Portugal, Brasil ou Angola”.
Efectivamente, o galego é o ancestral da nossa língua materna, conforme ensinou Manuel Rodrigues Lapa, saudoso mestre bairradino, profundo conhecedor da cultura e do povo galego, tema de estudo que manteve aberto toda a sua vida. O ensinamento do mestre juntou seguidores, os “lapistas”, e eu fui um deles. Não resta dúvida de que a língua galega se manteve paralisada sob uma conjuntura histórica secular, enquanto o Português evoluiu e se transformou no que é, uma língua de cultura.
Obviamente, a actual aproximação ao Português é, em última análise, a solução mais convincente e conveniente. Todavia, para que não se repita outro “veto de gaveta”, é preciso que o governo autónomo (de maioria absoluta PP) concretize no terreno, com meios financeiros suficientes, a lei emanada da vontade popular. E, em Portugal, será de recordar que uma delegação galega participou em 1990, no Rio de Janeiro, nas negociações da reforma ortográfica unificada, isto a sugerir a substituição da Guiné Equatorial pela Galiza na CPLP para tocar mais fundo no coração dos povos dos dois lados do rio Minho. [Foto: "Alameda das faias", plantadas no séc. XVIII em Antrim, Irlanda do Norte.]

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O futuro da lusofonia


Há poucos dias, uma conferência que reuniu em Lisboa um naipe de linguistas, debruçou-se sobre o futuro da comunidade lusófona. Considerou então que a nossa língua materna, hoje vista num sexto lugar entre as principais do mundo, iria atingir nos próximos trinta ou quarenta anos um ainda mais radioso futuro. Atingiria o terceiro lugar, a seguir ao Mandarim e ao Hindi!
O sentimento patriótico deve ter pulado nos peitos lusitanos com uma alegria de taça conquistada no campeonato e erguida, de braço no ar, em triunfo. Em tão pouco tempo, o nosso Português até iria suplantar o Inglês, língua franca da globalização! A comunidade lusófona seria, finalmente, a suprema coroa de glória do agora tão deprimido povo português…
No entanto, com tamanho optimismo, varria-se para debaixo do tapete um facto tão irrecusável quão comezinho. Não pode ser omitido que... os portugueses não são donos da sua língua! O Português pertence a cada falante e cada escrevente que, algures, resolva utilizá-lo conforme saiba ou entenda porque estará a exercer um incontestável direito!
Somar mecanicamente as populações de cada membro da comunidade e projectar no porvir as taxas dos seus crescimentos demográficos, para inserir os dados num quadro estático, é exercício vão. Vejamos: quantos indivíduos dessas populações dominam actualmente a nossa língua? Quantas, e como, aderem ou vão aderir ao Português?
Perfilhada na comunidade como língua oficial justifica, ao que parece, tiradas grandiloquentes e triunfalismos indómitos dentro do pátrio rectângulo, mas o que vale isso? Quem vai ao Brasil (o Brasil!) é questionado por bastantes dos seus naturais que lhe perguntam “que língua falam os portugueses”? Tente utilizá-la, para glorificar Camões, quem viaje pelo vasto interior de Angola… e talvez nem precise de ir mais longe.
Cada uma das oito nações da comunidade lusófona (repito: excluindo, lamentavelmente, a Galiza) segue as coordenadas de desenvolvimento da sua própria conjuntura. Todavia, são ainda raras as tentativas para apreender cada uma dessas situações particulares e as integrar numa visão complexa do conjunto em perspectiva (foi o que eu fiz em Inclinações Pontuais, Porto: Campo das Letras, 2000, pp 127-173; e, antes, na rev. “Nós”, Braga-Pontevedra, 1986-1988). Bem mais fácil – e confortável - é colocar simplesmente o conjunto lusófono no mapa das derivações românicas…
Afinal, o Português está a herdar os resultados históricos de uma prolongada falta de investimento que tem mantido a “política da língua” em banho-maria. Nem sequer teve a sorte do Inglês ou do Francês, por exemplo, nos decénios posteriores à descolonização portuguesa (até os nossos emigrantes se queixam de perder apoios escolares). Em suma, o futuro da nossa língua materna, no pátrio território, apenas provoca apreensão (conforme digo em
O futuro do Português) e o futuro da lusofonia vai também por esse caminho.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O futuro do Português

As previsões são sempre falíveis. Assumidamente, obrigatoriamente. Mas, avaliando as linhas de força da presente situação, façamos um pouco de prospectiva para indagar: que futuro pode ter a nossa língua materna?
Vou resumir algumas ideias que venho elaborando e sustentando, incluso neste blogue, sobretudo desde que a organização lusófona existe para servir uma qualquer finalidade (não me perguntem qual). A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (oito países: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor e Portugal, com omissão da Galiza onde não falta quem reivindique a pertença!), parece  sujeita a dinâmicas internas próprias de cada um que pouco deixam à conta de “comunidade”. Num breve relance não é possível ir além de uma avaliação global da situação “comunitária”, bastando lembrar a sorte que está a ter o novo Acordo Ortográfico para a deixar demonstrada.
Portugal ficou praticamente sozinho, com o Acordo pendurado na mão, e os maiores países lusófonos reticentes, sem pressa notória quanto à adopção oficial da nova ortografia acordada em 1990. As instâncias oficiais aplicam-na junto com alguma imprensa, mas amplos sectores nacionais, relutantes, mantêm-se firmes na recusa. O resultado, obviamente, é a barafunda ortográfica que entre nós reina.
Na confusão instalada, o escrevente às tantas nem atina na grafia correcta de um vocábulo ou de um verbo. A eliminação das consoantes mudas agravou as deficiências da escolarização existentes e não serviu ainda para garantir uma unificação ortográfica mínima. Mas as deficiências do sistema escolar, acumuladas ao longo dos anos em obediência a interesses políticos obscuros, implicaram-se também na falta lamentável de uma verdadeira “política da língua” com visão e verdadeiro rasgo.
Assim desembocámos na presente situação de autêntico descalabro. Sem excessivo exagero, pode dizer-se que os Portugueses estimam e conhecem a sua língua materna como se estrangeiros fossem. O falar e o escrever correctamente são já raridades preciosas que restam apesar das deficiências do sistema escolar e dos atropelos da comunicação social no quadro da geral decadência do país.
O Português vai sendo invadido por barbarismos, sobretudo ingleses, e a realização fonética vulgar, fugindo da gramática, atenua ou apaga mesmo a sonoridade das vogais, tornando a língua, antes vocálica, mais e mais consonântica. E pior: só uma pequena parte do nosso vocabulário será talvez ainda conhecida e um tanto utilizável pela população letrada. A parte restante jaz morta e arrefece na vala comum dos dicionários depois de ter brilhado com os esplendores de uma língua de cultura.
Com tudo isto, não estaremos a condenar à ilegibilidade as obras fundamentais da literatura portuguesa? E, rapidamente, a caminhar também para implantarmos no canteiro ibérico uma língua “nossa” e só “nossa”? As próximas duas ou três gerações, herdeiras das anteriores, decidirão se os nossos livros clássicos estarão ou não redigidos numa “língua morta”.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sempre em Galiza

Os portugueses denotam uma certa relutância, ou indiferença, perante as hipóteses de relacionamento solidário, a sério, com os vizinhos da Galiza. É uma sensação que aparece no terreno, a um certo nível das relações intelectuais, à medida que descemos do Alto Minho para sul, especialmente a partir de Coimbra. Ao transpor as águas do Tejo, dilui-se nas brisas.
Talvez haja uma explicação para isso, uma explicação advinda do complexo de circunstâncias acumuladas pela história. Observando o documento cartográfico de 1066 (aqui ao lado), que indica a verde a velha Gallecia do período romano, pode-se ter uma primeira visão do assunto. Abrangia uma franja peninsular desde a Corunha, no topo norte, e terminava além de Leiria, embora outras fontes, porventura mais consistentes, se detenham na linha do Mondego.
Os amigos galegos gostam de nos lembrar que a Gallecia foi por muitos séculos o nosso território comum com capital na augusta Bracara. Eu, quem sabe se por força das minhas origens, acho que é fácil e bom gostar do povo galego, posto que tenha levado o pé ligeiro a Tui já com 18 anos e andasse nos 40 quando entrei a valer em contacto com a sua cultura (lembro-o aqui). Manifesto-lhes, a esse povo e sua cultura, uma solidariedade desvaliosa mas sincera, apoiando, se apoio me pedem, e lamentando atitudes de quem lhes responde com escusas e polidas reticências.
Comecei a sentir esta resistência há uns bons quarenta anos, quando a Galiza lutava por autonomizar (leia-se: proteger) a sua fala materna da contaminação pelo Castelhano. Uma porção de intelectuais portugueses ou desconhecia o berço de origem do Português ou, pura e simplesmente, virava as costas ao assunto. A nossa indiferença declarou-se ao nível oficial e diplomático aquando da organização da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, composta por oito Estados (Timor-Leste incluído)... e sem a Galiza.
Gostaria de pensar, sem saber o que pensar, que continuamos ainda virados para sul, em luta pela Reconquista, em assédio a Lisboa e projetados até Faro. Demoro-me, porém, a contemplar o povo irmão que temos a norte do rio Minho, hoje com uma pitada de nostalgia porque encontro num blogue de lisboetas motivo para evocação e saudade. Benedicto Garcia aparece ali a considerar que José Afonso e ele cantavam a mesma canção (de protesto) e que a Galiza, para Zeca, foi «pátria espiritual».
Não se lembrou aquele amigo galego que veio cantar ao Porto, no início dos anos '70, por convite meu. Tinha então creio que um único disco com quatro cantigas, editado em Barcelona em 1968, e pertencia ao grupo Voces Ceibes (Vozes Livres). Foi o comum amigo Manuel Maria que nos pôs em contacto (estava eu a publicar-lhe a primeira obra de poesia junto com outra, de outro poeta galego, Celso Emilio Ferreiro) e os caminhos ficaram abertos para novos  encontros.
Tantas lembranças a vir (e serão só minhas?!): Benedicto deu cá entrevistas na rádio, as suas cantigas entraram no ar, actuou ao vivo, estabeleceu contactos entre nós. Um deles foi com Manuel Freire, então com a «Pedra filosofal» em evidência. Logo, em 1972, visitou Zeca em Setúbal e começou a amizade luso-galega documentada com nome de rua em Santiago de Compostela, onde nasceu em 1947 o próprio Benedicto.