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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Martha Nussbaum: autora off-side?


Martha Nussbaum (na foto) nasceu em Nova Iorque em 1947. É autora prestigiada e notória de numerosos livros sobre filosofia, justiça, educação, desenvolvimento e ética, entre outros relacionados com as ciências sociais, área em que o prémio Príncipe de Astúrias a distinguiu em 2012. Realmente, muitos desses livros estão vertidos para espanhol - tal como o abaixo citado (ebook) - mas, veja-se, apenas um saiu em Portugal!
Foi o caso de Educação e Justiça Social, traduzido por Graça Lami e editado na colecção Pedago, em Mangualde, em 2014. A BN regista também um texto policopiado, de 2006, intitulado “O conceito de justiça poética em Martha Nussbaum”, por duas autoras. Tão escasso resultado desperta atenção e levanta a interrogação: porquê?
Martha formou-se em Harvard, onde ensinou filosofia e literaturas clássicas, depois mudou para a Universidade de Brown e, por fim, para a de Chicago. Tornou-se desde logo referência em foco ao publicar Aristóteles, De motu animalium, em 1978. As suas obras posteriores, focadas na filosofia e no direito, incluem Sexo e Justiça Social, obra de 1998, Mulher e Desenvolvimento Humano, 2000, e Emoções Políticas: porque o amor importa à justiça, 2013
Desde os anos ’80, Martha colaborou com o economista Amartyn Sen, prémio Nobel, sobre temas ligados a desenvolvimento e ética. Vale a pena citar uma outra obra significativa da autora: O Ocultamento do Humano: repugnância, vergonha e lei, de 2004. Estes títulos aparecem aqui com os originais traduzidos para melhor explicitação.
Assim se levanta, em torno desta autora, uma dúvida: estará ela off-side? Com um livro apenas editado em português (e decerto para fins pedagógicos, livro que nem terá atingido o mercado), a estranheza do caso justifica-se. Onde estará escondido o motivo que impede Martha Nussbaum de ser lida em Portugal?
Motivo tão singular talvez possa encontrar-se no texto saído na revista da Unesco “Courrier Internacional”, edição portuguesa nº 175, Setº, 2010. Condensa o primeiro capítulo do livro Not for Profit: Why Democracy Needs Humanities, ed. 2010 (Não por Lucro: Como a Democracia precisa de Humanidades), cap. “Uma crise planetária da educação” traduzido por Ana Cardoso Pires. As primeiras linhas bastarão para nos esclarecer. Escreve Martha: “Atravessamos actualmente uma crise de grande amplitude e de grande envergadura internacional. Não falo da crise económica mundial iniciada em 2008; falo da que, apesar de passar despercebida, se arrisca a ser muito mais prejudicial para o futuro da democracia: a crise planetária da educação.
Estão a produzir-se profundas alterações naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos jovens e ainda não lhes aferimos o alcance. Ávidos de sucesso económico, os países e os seus sistemas educativos renunciam imprudentemente a competências que são indispensáveis à sobrevivência das democracias. Se esta tendência persistir, em breve vão produzir-se pelo mundo inteiro gerações de máquinas úteis, dóceis e tecnicamente qualificadas, em vez de cidadãos realizados, capazes de pensar por si próprios, de pôr em causa a tradição e de compreender o sentido do sofrimento e das realizações dos outros.
De que alterações estamos a falar? As Humanidades e as Artes perdem terreno sem cessar, tanto no ensino primário e secundário como na universidade em quase todos os países do mundo.”
Porque será que as Humanidades e as Artes ficaram off-side? Martha, atingida, aponta o motivo: são “Consideradas pelos políticos [como] acessórios inúteis”!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Em nome da Democracia

Está visto, a Democracia não é como a pintam quantos a erguem como bandeira para remar até à ilha dos seus amores. O sistema democrático pode aparecer em certos momentos, aqui e ali, com geometria variável, sem ofender a consigna básica forjada em Paris pelos revolucionários da Comuna. Não pode é perder ou deixar subverter a consigna suprema que a identifica como sistema assente no poder do povo, pelo povo e para o povo.
Os movimentos políticos de direita sempre quiseram colorir-se de algum matiz democrático, isto é, sempre quiseram afirmar-se “democráticos” por mero oportunismo demagógico. No fim de contas, todas as políticas e todos os partidos reivindicavam o rótulo nas suas propagandas e estratégias eleitorais ainda que beijassem a mão à minoria social e penalizasse duramente a maioria popular. Ser “democrático” acabou por soar tão vulgar como um lugar-comum, nada a levar a sério.
Porém, a irrupção dos alegados populismos na Europa e na América acordou as inteligências bem-pensantes dos cosmopolitas e outras figuras das elites ocidentais para o perigo nascente. Continuam a defender a globalização (ou seja, a liberdade de comércio para fruição das empresas transnacionais, bancos e fundos financeiros omnívoros; logo, não promove a interdependência positiva das nações) e a Comunidade Europeia mas confundem líderes ditos populistas de direita radical com líderes de esquerda autenticada. Confusão nada ingénua, muito lamentável.
Um sistema pratica a democracia na medida em que, realmente, outorga o poder efectivo à maioria dos cidadãos cuja vontade teve expressão política em liberdade. Acusar de “populismo” um líder que se dispôs a escutar os anseios e apelos populares e sai vitorioso, com maioria eleitoral, é propaganda antidemocrática, argumento ilegítimo e balofo. Assim se explicam as estranhezas que tornaram a surgir com a recente eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, não com base na contagem dos votos populares mas sim na soma de uns 280 votos dos Grandes Eleitores estaduais, apenas!
É, portanto, na expressão da vontade popular (quando erra aprende com o erro) e na consequente concretização prática das reformas, revolucionárias quando necessário, que poderemos encontrar o índice democrático presente e envolvido. É, enfim, o sistema (denegrido, suspeitoso) do povo, para o povo e pelo povo. Autêntico, desnudado, sem rótulos enganadores ou roupagens “democráticas”.
Vejamos. Uma democracia (é o que mais está a faltar; abunda, sim, a desigualdade – e para onde foi a fraternidade humanista?), bem desenvolvida, pode avançar até atingir o socialismo integral completo - essa magnífica utopia. Será a realização da temida democracia directa que, qual vento gélido, eriça o pêlo a tantos fervorosos “democratas” de aviário?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O poema de Maiakovski

“Na primeira noite, eles aproximaram-se e colheram uma flor do nosso jardim. E não dissemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. / Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.”
Maiakovski é, de longe, mais conhecido mundialmente como autor deste poema do que como autor de Os Banhos ou outros livros seus. A força poético-dramática da mensagem contida nestas poucas palavras torna o poema absolutamente notável, inesquecível. Celebrizou-se ao ponto de ter sido glosado por variados autores: Martin Niemöller, Bertolt Brecht e outros, apelando sempre para uma resistência cidadã contra a invasão de qualquer tirania
; o mais recente será talvez Cláudio Humberto, brasileiro, com poema de 09-02-2007, que começa: “Primeiro roubaram-nos os sinais, mas não fui eu a vítima”.Vladimir Maiakovski nasceu em 1893 e morreu em 1930. Martin Niemöller (1892-1984) parece ter aparecido com a sua glosa em 1950, quando também a de Brecht (1898-1956) surgia, embora Niemöller possa ter aflorado o mesmo tema em 1933, após Maiakovski falecer. Prevenia: “Primeiro vieram buscar os comunistas e eu não disse nada pois não era comunista. Depois vieram buscar os socialistas e eu não disse nada pois não era socialista. Depois vieram buscar os sindicalistas e eu não disse nada pois não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus e eu não disse nada pois não era judeu. Finalmente, vieram buscar-me a mim – e já não havia ninguém para falar.”
Realmente, o poema de Maiakovski começou a circular pelo mundo em meados do século XX, quando os países europeus se reconstruíam a custo, erguendo-se dos horrores sofridos com a Segunda Grande Guerra, já sem Hitler e o fascismo de Mussolini na Itália mas com Franco ainda a reinar em Espanha. A divulgação do poema veiculava portanto uma rejeição apelativa de mais ditadores, guerras, destruições, e vem de novo à memória de quem lobriga no seu horizonte idêntico perigo. Como foi o caso de um texto de opinião de Tiago Moreira de Sá («Público», 29-11-2016, p. 23, tit. «Donald Trump e a lição de Martin Niemoller»).
Moreira de Sá cita Niemöller e
repete o argumentário corrente do discurso anti-Trump mas omite o autor do poema original, o que é grave. Deixa em suspenso duas hipóteses: involuntariamente, por escassez de cultura literária, ignora que o poema até celebrizou Maiakovski; ou, voluntariamente, por um poeta soviético, logo comunista, provocar urticária até em quem está, como ele se diz, com tanta preocupação: “pode estar em causa a qualidade da democracia na América”. Ali, na pátria da Democracia Modelar, onde por sinal uma candidata à Presidência com mais de dois milhões de votos cidadãos do que o antagonista perderá a eleição por decisão, talvez, dos Grandes Eleitores, 280 votos! [Imagem: desenho de Emerenciano.]

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Os afluentes da confluência


A deriva que subverte o nosso mundo, virando-o do avesso em aspectos decisivos, tem avançado com redobrado ímpeto apoiado na confluência de variados contributos parcelares. A conjugação aparentemente espontânea desses contributos na corrente principal da deriva deu-lhe força esmagadora, indiscutível como imposição de uma nova ordem das coisas. Notemos agora a confluência gerada por alguns desses contributos.
A voga da globalização (isenta de patriotismo e ecumenismo) aparece em destaque. Apoiada na livre circulação de capitais, em “paraísos fiscais” e offshores, aproveitou a empresas transnacionais, banqueiros e governos. Não debilitou apenas o vigor industrial, o crescimento e o emprego de economias desenvolvidas; também abriu o caminho a corrupções e situações de trabalho quase ou mesmo escravo (só crianças asiáticas?).
Porém, a globalização tem arautos entusiastas, infatigáveis desde há anos a festejar o que, à evidência, empobrece os povos nuns países e explora outros povos ainda mais pobres. Mas tanto entusiasmo derramado nos media – televisão, imprensa e rádio – não parece convencer a população que se debate com desemprego e baixos salários, embora inspire governos, origine défices orçamentais e endividamentos nacionais acatando o neoliberalismo de porta aberta para a austeridade programada. Mas põe a lavrar no povo a desconfiança e a revolta.
Os sistemas escolares público e privado, reformados, contribuíram igualmente para alavancar a deriva. Avançaram para além do “facilitismo”: concentraram-se sobretudo em estabelecer um ensino de tipo tecnológico-pragmatista em substituição do “velho” ensino humanista. E pior: as novas gerações formadas em tal modelo educativo são em grande parte provenientes de meios familiares desestruturados.
Estas e outras correntes da deriva espelharam-se dia após dia no conjunto dos media acríticos, acomodatícios em face das versões oficiais da Verdade Única, de modo que os órgãos de informação nela se envolveram activamente. De facto, o jornalismo trabalha junto das instâncias de poder seja ele político, governamental, económico, social, financeiro. Apenas não tem que se lhe submeter para sobreviver, mas a situação de crise atingida pela função noticiosa entrou em descalabro, contribuindo na inversa para a resposta “populista”.
O alinhamento dos media com a deriva geral caucionou sensivelmente o avanço das figuras e das políticas de direita. Também a liberdade de expressão e de Imprensa, tal como os profissionais do jornalismo, vêm sofrendo gravíssimos ataques (em especial na Turquia, Egipto e noutros países referidos pela organização Repórteres Sem Fronteiras num quadro internacional).

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Elites em falência

Finalmente, a acumulação de elementos que anunciam a eclosão de uma tempestade perfeita a desabar sobre o Ocidente começou a ser notada. Vozes de bom aviso apontam semelhanças da situação que está a desenhar-se após a eleição do novo presidente estado-unidense com o período histórico vivido nos anos ’30 do século XX. Um calafrio percorre as bolsas de meio mundo.
Ora eu, nascido em 1930 (adolescente no fim da Segunda Grande Guerra, que acompanhei ouvindo a BBC e lendo jornais), julgo ter sentido ainda alguma coisa da Grande Depressão no pós-guerra. Lembro também a Europa de então: fascismo e nazismo, ditadores em Portugal, Espanha, Itália, Alemanha; direitos fundamentais banidos, atraso, repressão, desemprego, miséria, fome. Os intelectuais queriam-se deveras ao lado do povo mas naquele tempo as massas populares estavam irremediavelmente entregues a si mesmas: não havia redes sociais, qualquer fonte de informação alternativa.
Eis como os anos vividos sob os terríveis efeitos do Crash se distinguem do nosso tempo. As elites ocidentais distanciaram-se largamente das massas populares, no Reino Unido votando o “Brexit”, sentando na Presidência dos EUA Donald Trump e, na Europa, apoiando partidos, políticas e líderes de extrema direita. Assim se compôs um quadro inquietante, alarmista, que desperta por fim para a necessidade urgente de mais economia, mais economia – e como?
As elites (intelectuais, políticos, académicos, cosmopolitas) traçam neste quadro a linha de uma clivagem fundamental: aderem à globalização, à União Europeia e à moeda única; são-lhes indispensáveis os EUA e a NATO à “defesa do mundo livre”. Repudiam, portanto, a saída do Reino Unido da EU e a política antiglobalização de Trump, contrária às “parcerias” comerciais (que convidam as transnacionais a deslocarem-se em busca de baixos salários e transforma a nação antes exportadora em importadora). Neste “proteccionismo” dito populista encontrou Trump o seu maior trunfo eleitoral.
As elites não aderem à direita nem à extrema esquerda, preferindo claramente não arriscar navegando ao centro no mainstream. Misturam populistas e líderes de esquerda num mesmo saco (em lamentável confusão com ditadores) Al Sissi, Recep Erdogan, Putin, Xi Jinping, Kin Jong-un ou Nicolás Maduro. Estarão hoje estas elites verdadeiramente ao lado do povo?
As massas populares (a maioria que elege políticos, partidos e governos, onde tem raiz a democracia que tantos reduzem a relíquia-miniatura a exibir na lapela) estão desligadas dos intelectuais virados para a globalização; sentem a pátria debaixo dos pés, acreditam ora em populistas de direita, ora de esquerda. As elites preferem olhar para o alto, levitam na alta cultura, já nem se lembram do hino nacional. Estão em falência.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A classe média existe!


Escuso de me repetir, é a realidade dos factos que agora, bem melhor do que eu, o demonstra. A classe média existe mesmo (aí temos em prova o resultado das eleições nos EUA), votou em massa e, de acordo com o sistema eleitoral vigente, levou de vencida Donald Trump até à Casa Branca. Mas os factos demonstram mais: o povo americano votou percebendo que a globalização o empobrece e que muito melhor será a nação começar a fechar-se em si própria.
Bastantes sectores da classe média europeia já sentiam na pele que a globalização trazia a austeridade e todos os sacrifícios impostos pelas políticas do neoliberalismo, a subordinação da União Europeia às estratégias da especulação financeira mundial. Talvez agora decidam virar também as costas às suas elites: os seus cosmopolitas e outros intelectuais. Provavelmente virão a tê-los na consideração liminar em que já têm os políticos e os partidos que se revezam nos governos: tudo escumalha mentirosa, não merecedora de confiança e por vezes corrupta.
Inquietem-se, portanto, os adversários do populismo. Venceu nos Estados Unidos, onde a vitória do candidato independente à Presidência ficou a dever-se ao imenso apoio que recebeu dos media… populistas. Ora o populismo está em franca expansão pela Europa e pelo mundo.
Na verdade, as populações estão fartas de partidos alternantes, políticas demagógicas, dificuldades de vida inaceitáveis. Podem ler poucos jornais, ouvir pouca rádio, mas vêem televisão. A informação que passa pelos canais noticiosos envolve-se quase sempre muito mais de propaganda que informação, abundando em espectáculo, mero espectáculo para entreter crianças de todas as idades.
Donald Trump soube interpretar o sentir profundo das massas populares, suas tradições conservadoras, hoje receosas das mudanças sempre para pior, ou seja, que o eleitorado, dividido, queria ouvir quem o atendesse. Arriscou-se a negar o sistema em bloco, foi ao ponto de atribuir aos próprios americanos o atentado dos aviões contra as torres gémeas nova-iorquinas, a propor boas relações com a Rússia, o Irão… Com ele, a política como espectáculo atingiu novo limite, o que deliciou com opíparos fartotes os media.
Os dados estavam lançados e os resultados do jogo deram no que deram: Trump é o presidente eleito. Prometia políticas ora com visos ora de esquerda, ora de direita, mas um cavalo de Tróia está postado à porta da cidade.
Ninguém vai acreditar que Trump caia em beliscar interesses de milionários espertos como ele. Seguirá, portanto, políticas de direita, as tais que alvoroçam multidões de manifestantes em cidades estado-unidenses acentuando a deriva ideológico-política que se dissemina pela Europa e em outros espaços. Temos a dúvida: até que ponto o designado underdog irá unir a sua palavra à acção?

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Os cosmopolitas avançam

Multiplicam-se velozmente. Aparecem, abundantes, nos aeroportos, cruzam os céus a caminho de Londres, Nova Iorque, Paris, Tóquio, Vancouver… e quando regressam já estão de partida. São viajantes incansáveis, autênticos cosmopolitas.
Encontram interlocutores em qualquer cidade, têm estatuto académico, brilham em colóquios e areópagos internacionais onde se engendram grandes estratégias, conhecem os principais hotéis e museus do mundo. Já participaram de um governo ou estão em fila de espera, e falam fluentemente pelo menos três línguas. A primeira é a novíssima língua franca (o inglês, naturalmente), dado que os cosmopolitas se querem sintonizados com o quotidiano nova-iorquino e, o mais possível, o pulsar da potência americana.
São defensores aguerridos da globalização em curso, de modo que apoiam o famigerado TTIP que pretendia pôr as multinacionais americanas a mandar discricionariamente nos países europeus, tal como aquele mesmo tratado de comércio, na versão CETA, entre Canadá e União Europeia, que acabou desgraçadamente por ser assinada. Coerência deles: recusam nacionalismos, fronteiras, alfândegas.
Parece que pretendem o mundo inteiro aberto e livre de peias para os grandes monopólios transnacionais se expandirem e poderem agir à vontade. Vêem tão alto e tão longe que não enxergam a inovação que vai arruinar em cada país a agricultura, as comunidades rurais, as pequenas e médias empresas, o pequeno comércio, fazendo disparar o desemprego, a pobreza e a miséria. A sua visão é a de quem vê o mapa da janela dos seus voos a jacto.
Os cosmopolitas evocam talvez uns antigos “cidadãos do mundo”. Mas a comparação falha porque os cosmopolitas aparecem desprovidos dos “idealismos utópicos” que impregnavam os “cidadãos” em meados do século XX. Contraste marcante: o humanismo de uns foi substituído pela tecnocracia nos outros.
Sabem a cartilha toda escrevendo e publicando crónicas, artigos, ensaios e conferências sobre questões cruciais. Ninguém dirá que têm ideias políticas de direita e, ainda menos, de esquerda. São por uma democracia de largo espectro, que se basta com dois partidos alternantes no poder e algumas reformas cosméticas.
Curioso e sintomático: questionam a existência da pequena burguesia, ou classe média, que não reconhecem corporizada na maioria da população nacional e base eleitoral legitimária das políticas governamentais, mas atestam a existência histórica da classe burguesa. Não se sabe o lugar certo onde sentam o clero e a nobreza (de sangue ou a nova, dos himalaias de riqueza). Talvez o mundo cosmopolita se componha e complete somente com burguesia e povo – o plebeu, a ralé dos patrícios do império romano…

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O rapto da Europa

europa.jpg (em Notas Soltas)
1 A altíssima concentração da riqueza em poucas mãos que o capitalismo atingiu nos nossos dias agrava as desigualdades e provoca tremendas mudanças políticas, económicas e sociais. Todavia, um pensador de outrora, hoje esquecido, previu que a fase suprema do capitalismo seria a do imperialismo. Mas hoje o sistema bancário europeu e mesmo o mundial estão a naufragar (exemplo: a emergência no Deutch Bank é colossal!), pelo que Vítor Constâncio, vice-governador do BCE, já opinou: sejam então, mais uma vez, os contribuintes europeus a salvá-los!

2 O cidadão de olhos abertos, que vota informado e conscientemente, percebe desde há muito tempo que a tão festejada União Europeia não está ali ao serviço dos povos dos seus países. Administra as prestações que os membros se obrigam a pagar-lhe - um avultadíssimo caudal, note-se, de fazer inveja ao banco mais ostensivo com bem diverso objectivo. Ora os responsáveis das instituições europeias, que ninguém elegeu e que até são inimputáveis, não substituem somente os governos nacionais privando-os de soberania e de moeda nacional. Como herdeiros do plano Marshall, apoiam a NATO e declaram-se fiéis acompanhantes das estratégias globais dos EUA, de modo que o eurogrupo já participa nas intervenções norte-americanas no Médio Oriente e talvez se disponha a entrar igualmente numa grande guerra, a terceira.
3 Sanções de Bruxelas ameaçam Lisboa (ontem, de não receber dois mil milhões de fundos especiais de investimento; hoje, com o álibi do défice orçamental). Mas para que servem esses milhares de milhões? Para abrir ainda mais autoestradas, construir novos hotéis ou expandir supermercados, ou seja, apoiar empresas privadas a fundo perdido (que irão gerar mais rendimentos privados) e onde nós todos somos convidados a gastar o nosso dinheiro. O que podem tais investimentos interessar aos portugueses? Já temos demasiada abundância onde gastar, falta-nos, isso sim, onde produzir - produzir bens de consumo essenciais de que carecemos, de agricultura e pescas, ou industriais, e que nos obrigam a importar. Por que motivo os comissários da União Europeia nos afastam sempre, tão decididamente, da produção do que a economia do país precisa (desde logo para fomentar o emprego e o PNB em vez de aumentar as dívidas e os juros a pagar) e gosta tanto de nos pôr a gastar e a importar demais?
4 O que expõe flagrantemente a entrada no Goldman Sachs, banco de investimentos mundiais, do mais recente ex-presidente da União Europeia? Basta ter olhos para ver claramente o que aparece à vista. O trânsito de políticos e dirigentes da UE de e para bancos como Morgan Stanley, Lehman Brothers e outros desenvolveu-se até atingir um máximo. Deu nas vistas. E agora surgem alegações formidáveis que põem os americanos a inspirar os cabouqueiros da EU e a criação da moeda única, depois os EUA a controlar os líderes europeus e, aparentemente, as políticas da austeridade.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Começou o futuro!

brexit.jpgEstes são os dias do resto da vossa vida, sentenciaram os povos das ilhas. Ouviram-nos em Bruxelas, do outro lado do canal com feitio de manga e, sem esperarem dali outra resposta, os senhores plenipotenciários entreolharam-se, surpreendidos, e ficaram suspensos como cabides na corda a oscilar ao vento. Começava o futuro!

De pouco ou nada serviu espalhar tanto medo. Aqueles povos distinguiram claramente os factos e não se amedrontaram. E conseguiram depois espalhar medo em quem procurou infundir medo.
Realmente, não demorou nada que outros povos, a começar por um vizinho de Bruxelas, erguessem as vozes para sentenciarem como os das ilhas. Muitos outros vão também querer lavrar sentença. A estrela caída, segunda em grandeza, parece que correu uma cortina que deixou agora a cena toda iluminada.
Os senhores plenipotenciários mostram semblantes os mais carrancudos, carregam nos tons ameaçadores, tentando castigar os povos das ilhas e, ao mesmo tempo, dissuadir outros povos da mesma peripécia. Estão dentro dos seus papéis, mas, avançando por esse caminho, contra os seus interesses, provavelmente mais depressa farão cair da bandeira umas quantas estrelas da constelação unida. Sim, para todos os efeitos, entrámos no dia seguinte, eis-nos no futuro!
Definitivamente, o facto tornou-se óbvio. Os senhores de Bruxelas não foram eleitos, por lá as regras democráticas pouco significam, de modo que as estrelas constituintes do círculo perfeito desenhado na bandeira podem ser tratadas de modos desiguais, imperfeitos. A duplicidade de critérios tornou-se flagrante.
Agora até se pode perceber quanto o imperialismo foi servido com a organização de um mercado único de quinhentos milhões de consumidores. E perceber igualmente o objectivo fundamental que orienta a organização (se acaso não estava já imbuído na matriz original). Por algum motivo os senhores plenipotenciários são apontados como servidores dos interesses da especulação financeira internacional.
Na verdade, a união dos vinte e oito desfaz-se quando se afunda em paralisia económica e o desemprego cresce sem remédio à vista, demonstrando quanto vale a visão das troikas, do neoliberalismo e da austeridade. Bastava, porém, a escandalosa crise dos refugiados ou o inspirado alastrar das forças políticas da extrema-direita pelo velho continente. Portanto, sem sequer lembrar o famigerado, o incrível Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento que o presidente Obama andou por cá a vender…

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O mundo dos bárbaros


bárbaros.jpgUm vento de insânia, tenebroso e gélido, atravessa os continentes e parece atordoar os cérebros, eclipsar os direitos humanos, transformar os princípios éticos ou a própria decência civil em toleima anacrónica. Trump, candidato estado-unidense à presidência, repete frases bombásticas de estarrecer, no Brasil o golpe de Estado de Temer é escândalo posto em cima de um monte de escândalos (veja-se o retrato dos ministros do “governo de gestão” que até já quer mudar a Constituição), Uribe, presidente da Colômbia, apelou em Miami, em cimeira “Concórdia”, por uma intervenção militar de “forças armadas democráticas” na Venezuela em apoio da oposição e, sem dúvida, para enterrar a Revolução Bolivariana, Cristina Kirchner, após doze anos a morar na Casa Rosa argentina, e seus filhos enfrentam seis acusações de corrupção. Na (des)União Europeia há cada vez mais países em derivas políticas radicais quase incríveis, como na Áustria, Dinamarca e França austeritária com novas leis laborais impostas por decreto.

Na Indonésia, o presidente eleito promete eliminar criminosos matando-os, prender manifestantes e teria muito gosto se tivesse violado também uma tal freira bonita. Duterte, novo presidente das Filipinas, quer mudar a Constituição e aplicar “linha dura” na governação (em campanha já ameaçava matar “traficantes”) e desafia a China dispondo-se a reivindicar umas ilhas em disputa. Tudo isto, apanhado num simples relance, deixa uma pessoa estupefacta, de boca aberta: estará o Mundo entregue aos bárbaros?
Olhando um pouco ao lado e girando o globo, está a Rússia rodeada mais e mais por forças e aliados dos Estados Unidos. Na Ucrânia, antigo “celeiro da Europa”, Yanukovych ganhou a presidência em 2010 numas eleições perfeitamente democráticas (mas o que vale hoje a democracia?), o parlamento destituiu-o e ele exilou-se em 2013 para ser substituído por Poroshenko, pró União Europeia e NATO. No Egipto, Morsi, da Irmandade Muçulmana, venceu as primeiras eleições democráticas do país mas foi deposto em 2013 por golpe de Estado do general Al-Sissi que, com nova Constituição, declarou a Irmandade “terrorista” e legalizou a pena de morte, pelo que o tribunal condenou 529 pessoas num único dia, aumentou a repressão (mortos 595 manifestantes pró-Morsi em 14-08-2013, outros 152 condenados, jornalistas perseguidos, etc.), mas atenção, Al-Sissi não é ditador! (soube entregar duas ilhas à Arábia Saudita em troca de grande ajuda financeira para as forças militares egípcias).
E na Turquia? O presidencialista Erdogan sabe jogar em tabuleiros diferentes sempre a ganhar, acusam-no de corrupção mas o homem defende-se, persegue opositores, prende e leva julgamento jornalistas mesmo estrangeiros para os quais o partido curdo não é “terrorista”, e não lhe falem de direitos humanos, de refugiados ou do acordo que fez com a Alemanha de Merkel. É este o mundo dos bárbaros: inimigos da civilização, da dignidade humana, da justiça.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Acabemos com as offshores!


Ninguém, com migalha de juízo, pode admitir que estes alçapões sem fundo foram criados e espalhados pelos quatro cantos do mundo por conveniência das classes médias. Nem vai supor que as sociedades de advogados envolvidas nos selváticos emaranhados contidos nos “paraísos fiscais” se dediquem tão-só, conforme alegam, a dar apoio jurídico às empresas e a ajudar a gerir fortunas. Os jornais, toda a comunicação social, levantando uma ponta do véu, mostram que não se esconde por lá a riqueza dos 99% da população mundial; esconde-se, sim, o gigantesco poder financeiro acumulado pelo famoso 1%, poder tão forte que move legisladores e governos.

Ora, nos Panama papers, não aparecem todos os multimilionários do planeta, bem acompanhados, como escreve um jornal, por burlões, políticos corruptos, reis da droga, traficantes de armas… interessados por igual em fugir aos impostos e disfarçar dinheiro ilícito obtido de negociatas secretas. De Portugal, nos 11,5 milhões de documentos (papers) em análise, não constam muitos fregueses: serão, diz-se, algo mais de duas centenas. Pedir menor opacidade às offshores ou propor melhor controlo das suas malas-artes, é oração nada piedosa, de mãos postas suplicando que tudo continue na mesma.

As fugas ao fisco têm crescido a par da corrupção. Afinal, o que impede o administrador de uma grande empresa ou de um banco de negociar a compra de uma outra empresa em maus lençóis ou de um outro banco insolvente, pagando o preço e, por baixo da mesa, recebendo uma comissão? De solicitar, ou conceder, um grande empréstimo a empresa insolvente beneficiando também de comissão secreta?
O mundo dos negócios tornou-se mafioso (segundo a Oxfam, 50 grandes multinacionais têm 1,4 biliões de dólares em offshores, causando 111 mil milhões de perdas anuais de impostos nos EUA). Mas não são apenas as grandes empresas que escondem lucros naqueles buracos negros para escapar aos impostos. Há milhões e milhões ilegais, gerados pela corrupção, em transacções de compra-venda, que se acoitam no mesmo refúgio.
panama.jpgNo fim de contas, a política austeritária tem origem nos imensos oceanos de dinheiro saído das economias reais, sobretudo em países com dificuldades de desenvolvimento, onde as próprias carências de investimento convidam à corrupção e à fraude. Mas as offshores servem à maravilha para acolher “fundos abutre”, como os que atormentaram a Argentina endividada. Até parece que já servem mal para pôr a render tanta riqueza subtraída aos povos que dela agora necessitam para responderem ao desemprego, à estagnação da economia e a tantos outros seus problemas sociais.
Um programa mundial, sistemático e geral, de extinção das offshores, é imperativa. Argumentos contra este objectivo essencial são pura perda de tempo. Vejamos: então o inconcebível e monstruoso Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento, elaborado pelos EUA em parceria com a União Europeia, que põe as multinacionais a mandar em estados e governos, não foi também possível?

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Offshores: escândalo e violência


A estrondosa falência de grandes bancos em 2008, que rastilhou a explosão da crise actual, já então existente, parece não ter alertado deveras para a radical mudança por que o nosso mundo passava. De repente, o mundo era outro. Bastará agora o terramoto provocado pelo escândalo dos Panama papers para um acordar geral dentro do pesadelo?

panama2.jpgÉ preciso compreender todos os alcances essenciais da mudança sofrida. De contrário será apenas o barulhar dos escândalos que ecoam na comunicação social com a dimensão planetária da corrupção e dos corruptos, um barulhar que depressa se dissolve e apaga na desmemória colectiva. Objectivamente, com a máxima crueza, ficámos perante uma ampla janela aberta para a caverna de Ali Babá e sua quadrilha de ladrões e convencidos de que não é a única nem sequer a pior.
A firma de advogados do Panamá em foco, fundada em 1977, já criou umas trezentas mil empresas offshore nuns 40 países e emprega mais de 500 pessoas. Calcula-se que o volume de capitais envolvidos na pretensa “criação” destas empresas excederá o dobro do orçamento global da União Europeia. Por aí se poderá avaliar quanta riqueza já foi subtraída à economia real das nações e empobreceu os povos.
Sabemos que uns doze governantes, centenas de políticos, milhares de pessoas famosas e centenas de milhares de empresas escapam aos impostos, processam lavagem de dinheiro desonesto, alimentam negócios de armas, traficâncias. Sabe-se, igualmente, que na União Europeia (500 milhões de hab.) a fuga ao fisco é calculada em dois mil euros anuais por cada cidadão. Os contribuintes de cada país também sabem como se multiplicam por todo o lado as dívidas: dos Estados, dos orçamentos dos governos, dos bancos, das empresas - e até parece que o BCE não imprime 70 mil milhões novos cada mês!
Na verdade, as democracias (mais ou menos pouco democráticas) passaram a servir descaradamente os interesses da alta finança com o apoio das maiorias eleitorais que os elegem. A riqueza concentrou-se em tão poucas mãos que o poder financeiro, clandestino e naturalmente especulativo, assumiu o controlo efectivo do poder. Novidade nenhuma: do facto têm vindo a dar-nos notícia a WikiLeakes em 2010, Edward Snowden em 2013, e, agora, os Panama papers divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.
Obviamente, a única resposta viável está nas mãos dos povos eleitores de cada país. Aflige-os o desemprego e o emprego sem direitos, a perda do estado social e dos direitos cívicos da democracia, a subida dos impostos. Tamanha concentração da riqueza é desigualdade violenta e escandalosa. Urge abolir, radicalmente, os paraísos fiscais do planeta em nome da decência e da justa legalidade (e se os governantes e demais forças políticas não se impuserem aos interesses criados, bem poderemos todos dizer adeus à nossa civilização)!

segunda-feira, 7 de março de 2016

Ser cidadão, hoje


A questão tem que ser enunciada nos devidos termos. Ser cidadão, hoje, é muito difícil e mais difícil ainda, decerto, será entender porquê. Votar quando há eleições, participar nos debates públicos, ter partido e opinião política é pouco, parece não chegar já para se ser cidadão.

Tudo isso pode ser positivo e mesmo desejável porque a percentagem das abstenções se torna preocupante, os filiados se arredam dos partidos (confundindo-os decerto com sindicatos) e os debates públicos, incluídos os parlamentares, pouco e mal aquecem o ambiente. Sobram os opiniosos comentadores que em aluvião enchem os espaços da comunicação social. Assim chega o momento de apurar, decantando, o velho ou envelhecido conceito de cidadão.
Cidadão não é, pela minha ideia, quem milita em partido e, subordinado às respectivas tácticas, faz da política a sua profissão; quem abre a boca e reproduz a cassete da retórica concordante com o sentido do seu voto; quem chama aos governantes gatunos, não sabe para o que serve aprovar um orçamento de Estado e nada entende de política sabendo de tudo no futebol. Passemos a nossa população adulta por este crivo: quantos cidadãos tem o país, afinal?
Terá bastante menos do que se julga. Cidadãos, quero dizer, pessoas suficientemente conhecedoras das dificuldades económico-financeiras nacionais, que reclamam uma urgente saída do sufocante garrote das dívidas soberanas; pessoas com conhecimento e coragem para perceberem que o melhor para os portugueses será a saída da moeda única e mesmo da União Europeia em falência; pessoas que sabem o que é o TTIP e que portanto se opõem ao aberrante Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (tem “na sua base um acordo de parceria entre a União Europeia e os Estados Unidos”); pessoas, enfim, que lutam por salvar a Democracia que, de outro modo, irremediavelmente se perde.
Mas pergunte-se: acaso será necessário, para se ser cidadão, que as pessoas assumam tal perfil, isto é, uma ideologia e um pensamento de esquerda radical? Sim e não, conforme cada situação individual concreta. Todavia, no fim de contas, parece imprescindível a ocorrência de uma ruptura terminante com o caldo de cultura instalado pela informação de massas (nesse caldo, em expansão como metásteses, se apoiam as políticas de direita), trocando-o por fontes informativas alternativas independentes que cada um terá que buscar. Curiosamente, este cenário traz à memória um antigo cenário que os portugueses, hoje idosos, conheceram – e sofreram – no regime da ditadura salazarista-marcelista: então, como agora, as forças da “Situação” e as da então designada “Oposição Democrática” resumiam os dilemas. Estamos novamente em presença de dois campos, uma divisão crucial: a preto e branco.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Sobre Democracia

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Diversos povos vivem há décadas sob modelos de democracia tão esvaída que apenas mantém do conceito a forma, não o autêntico conteúdo. É verdade, porém, que falar de democracia remete para um conceito controvertido por inúmeras manipulações ou aproveitamentos oportunistas. Mas o próprio conceito mostra geometria variável apontado para o idealizado “governo do povo pelo povo”, a evidenciar quanto o sistema democrático é projecto inesgotável, em constante realização e devir.

Este sistema torna-se efectivo e legítimo, realmente, na medida em que desenvolva as estruturas económicas, culturais e ideológicas da sociedade, ou seja, a igualdade. Realizar eleições periódicas para apurar a vontade da maioria será, em tal sentido, bem pouco, mas já parece tornar-se uma formalidade, um ritual obrigatório numas quantas sociedades actuais onde dois partidos hegemónicos se alternam no poder. Se os eleitores, em substancial maioria, se repartem, oscilando, por esses partidos ao longo dos anos, estão, em última análise, a desistir da democracia, cristalizando-a.
O poder exercido pelos dois partidos alternantes aproxima-se assim de uma ditadura a funcionar, perigosamente, com fisionomia democrática (e onde haverá ditadura que não seja “democrática”?). As opções eleitorais, restringidas, conduzem as massas para uma passividade que as afasta do dinamismo vivo da autêntica democracia, alheando-as do debate político. Curiosamente, isto tanto pode ocorrer com povos de elevados índices de bem-estar e prosperidade nacional bem como com outros atingidos por grave crise: recessão, estagnação económica, austeridade, desemprego, empobrecimento.
A alternância bipartidária empalidece o vigor da democracia porque mascara a realidade social representando-a resumida a traço grosso (traço duplo na aparência mas, numa afinidade fatal, único). Nestas condições, o simples processo eleitoral dificilmente permitirá a formação do melhor governo. Os resultados eleitorais, diminuídos por crescente abstenção, tendem a seguir muito de perto o teor da narrativa que ecoa nos noticiários dos meios informativos (tendenciosos: omitem o que diz a “outra parte”) e sai da boca dos comentadores (“não há alternativa”, entoa o coro).
No entanto, são os defensores da Verdade Única que reagem imediatamente para lançar alarmes e atoardas delirantes quando o sistema bipartidário da rotina chega ao fim. Declaram o que gostariam de calar: o seu incómodo perante a viragem operada por novos movimentos de opinião social que irrompem e alteram o quadro das forças bipartidárias tradicionais, reagindo contra o estado dos interesses instalados. Contra os negócios, contra a corrupção-cliente dos paraísos fiscais.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A deriva vai indo


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Um certo amigo, quando me encontra, não só me abraça com efusão e me retém num diálogo breve mas prazenteiro como parece fazer questão de me deixar os miolos a ralar. Aconteceu agora outra vez. Não afirmou nada, apenas comentou, de chofre, que a União Europeia até pode ter sido organizada apenas para que os Estados Unidos consigam contactar rápida e comodamente com os seus líderes, assim se dispensando de ligar para cada um dos líderes nacionais do euro-grupo.
A hipótese, mera hipótese do meu animoso amigo, inquietou-me logo ali e continuou a inquietar-me. Surpreendeu-me tal como a aceitação tácita dos Portugueses que em 1999 trocaram os seus valiosos escudos pelos euros a um preço caríssimo que ninguém ousou questionar e ainda menos discutir. Escaldado, já começo a sofrer ao avistar aquele amigo e a perguntar-me que prego novo irá ele cravar-me na cabeça.



As ralações agravaram-se, agora que três países principais da União Europeia (França, Alemanha e Reino Unido) entram na guerra contra o Estado Islâmico. Colocaram-se portanto ao lado dos Estados Unidos com apoio de uma espectacular campanha na comunicação social focada no terrorismo jihadista que, por outro lado, vai justificando restrições de liberdades cívicas, nacionalismos, xenofobias, insegurança social… Estaremos realmente a ensaiar, ou já a entrar na terceira guerra mundial (70 anos depois da segunda e outra vez na Europa)?
Mas enquanto a corrente de refugiados prossegue imparável, de olhos acusadores fitos no velho continente, os noticiários aparecem com novidades de estalo. Michael Flynn, chefe das informações militares dos EUA, falando em programa que passou pela RTP em 30-11-2015, às 23h32, considerou que a invasão do Iraque (Bush, 2003) foi um “erro gigantesco” pois “criou o Estado Islâmico”. O escritor britânico de origem paquistanesa Ziauddin Sardar, nascido em 1951, descrito como reformista muçulmano, afirmou em Lisboa, onde esteve para uma conferência, que “o Estado Islâmico sempre existiu, é a Arábia Saudita” - o que, neste ponto, concorda com Noam Chomsky (entrevista sobre o EI, Youtube).
Por outro lado, o ex-chefe da polícia secreta portuguesa, em declarações feitas no âmbito de um processo judicial notório que também o abrangeu, falou do “porto militar grego Astakalos usado para operações encobertas, para transporte de armas dos Estados Unidos para o Médio Oriente”, porto esse que em 2010-14 estava em vias de ser privatizado. Coincidência: naqueles anos o presidente da Turquia viu-se acusado de ter recebido cinco mil milhões de dólares para apoiar a guerra na Síria, então a desenvolver-se. Actualmente o governo da Turquia, membro da NATO, é apontado como apoiante do Estado Islâmico, o que não o impede de receber três mil milhões do euro-grupo para conter o afluxo dos fugitivos das guerras entrecruzadas que se guerreiam na região, martirizando as populações e os seus poços de petróleo.
A deriva? Vai indo bem, obrigado.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

O que diz o Outro

Quem está lá fora merece ser ouvido. É pessoa habilitada, grande amigo da verdade e da paz com justiça, defensor dos direitos humanos. Conheço-o há longos anos e peço licença para dizer que o senhor director de conferências desta instituição bem faria se lhe permitisse vir falar, expor aqui as suas ideias.
Quem está lá fora, senhor director, acumulou muita experiência. É pessoa das mais viajadas do mundo. Observou-o de longe, pela janela, mas isso não prejudicou a observação; pelo contrário, livrou o Outro de respirar as camadas da poluição ambiente em que vivemos, tantas campanhas publicitárias, propagandas maliciosas, maquinações confusas, golpes de teatro que nos atordoam, nos escandalizam ou nos revoltam.
O que ele tem a dizer não é atendido e entendido pelas multidões que correm nas ruas mesmo sem pressa e se endividam a consumir imensos bens supérfluos, todas as novidades das telecomunicações, os famosos gadgets, que põem as multidões a dormir e a sonhar como criancinhas ao colo do Big Brother. Se aqui o não ouvirem, onde mais será? A sua mensagem está a perder-se irremediavelmente, e devo notar-lhe, senhor director, porque é importante, o Outro segue a religião da humanidade, para ele sagrada e consagrada.
Mas continua lá fora, à espera. Lamentavelmente, digo eu. Porque ele viajou tanto que sabe ver e entender as trapaças do mundo com meridiana clareza.
Note, senhor presidente, que o Outro andou pelo mundo, vendo-o a girar e a arrastar consigo ventos e nuvens que a espaços o cobrem. Da sua janela, teve o benefício de contemplar três auroras por dia e pôde seguir a devastação que extinguia imensas indústrias produtoras de bens nos países desenvolvidos, onde fazia crescer o desemprego, baixar os salários e espalhar uma estagnação contagiosa para mobilizar legiões de escravos do outro lado do mundo. Obviamente, a globalização resultava da máxima concentração da riqueza, portanto de uma desigualdade despótica, expressão acabada do imperialismo.
Os verdadeiros donos do mundo, que efectivamente mandam e querem mandar, são agora os tentáculos poderosos do polvo gigantesco que o envolvem e espremem. São os comandantes da alta finança, que especulam e se aproveitam dos Estados endividados, dos programas de austeridade, das falências, sempre a lucrar mais depressa e melhor que nunca. Servidos por um sistema de organismos internacionais, bancos, partidos e políticas neoliberais, bocejam quando lhes falam da democracia, eleições, vontade expressa por maioria, brincadeiras de crianças que eles, adultos, desdenham.
Senhor presidente, quer saber quem é o Outro? Convide-o a entrar! Verá que o conhece tão bem quanto eu.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A onda passou e o que ficou?

Há cerca de um mês, uma poderosa onda emocional varreu a Europa e parece que todo o Ocidente. Atroou praças e avenidas o grito das multidões que exigiam “liberdade de expressão”. Os ecos de tamanho clamor popular devem percutir ainda em algumas memórias menos frágeis, chega agora o momento de considerar o acontecido.
Manifestar o direito público à liberdade de expressão evidenciou desde logo a índole conformista do gesto: encobria que a informação da actualidade fornecida pelos media, sendo incompleta, parcial, tendenciosa, serve cada vez mais a Verdade Única do pensamento dominante. Resultou numa manobra descaradamente populista e, na presente situação da prática objectiva do jornalismo, também hipócrita e algo cínica. A informação e o jornalismo estão sob um crescente controlo que filtra o que aparece na imprensa, na rádio e na televisão, em obediência a um breviário de “verdades” assentes contra o que seja tomado como de esquerda.
Defender a liberdade de expressão no actual contexto? Seria pouco, se isso valesse a pena. Muito melhor seria denunciar a manipulação, a parcialidade, o seguidismo massificador da informação que as empresas de comunicação social servem ao público e pedir outra, diferente, capaz de ouvir sempre o “outro lado” das questões.
O que aconteceu acirrou os ânimos já aquecidos pela conflitualidade atiçada entre radicais muçulmanos e cristãos; o radicalismo islâmico ganhou mais base e a direita europeia, festejando, cresceu. De súbito, a União Europeia viu-se a cair nos braços abertos da América. Com os seus milhões de desempregados e a baixa dos salários imposta pelos programas da austeridade + estagnação económica, a zona euro dispensa a barateza do “canalizador polaco” e a emigração clandestina da margem sul do Mediterrâneo, pelo que se propõe rever o acordo de Schengen da livre circulação, até porque a ameaça jihadista também mora cá dentro.
Este velho e retalhado continente ficou mais inseguro e ameaçado, além de mais intolerante e xenófobo, isto é, mais afastado da Liberdade, Igualdade, Fraternidade carimbada nos direitos humanos. No mundo de hoje, o terrorismo, venha de que lado vier e que sinal tiver, presta-se a aproveitamentos oportunistas e a conspirações obscuras de interesses ideológicos e políticos contraditórios, em função de estratégias e propagandas mistificadoras tão confusas que já parecem compor um cenário pré-bélico. O jornalismo de uma imprensa livre iria naturalmente investigar cada situação, mas, nas presentes circunstâncias, nem espaço lhe sobra para questionar, por exemplo, porque foram abatidos os alegados dois irmãos do atentado ao “Charlie”, tal como o indivíduo que interveio na loja kosher, assim como abatidos foram, sem interrogatório policial nem julgamento, Sadam Hussein, Khadafi ou Bin Laden.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Esvai-se a dimensão do sagrado


O que resta de sagrado neste nosso mundo, hoje? A interrogação é pertinente e, de modo especial, ganha toda a oportunidade na moldura dos atentados em Paris, há uma semana. O primeiro atingiu o semanário “Charlie Hebdo”, matou oito dos seus jornalistas mais quatro pessoas e espalhou pelo espaço mediático a gloriosa bandeira do “Todos somos Charlie”, levando um nosso jornal a citar novamente Mark Twain (referido na minha última crónica) agora com um esconjuro: “Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo.”
Manifestações populares estrondosas, de bastantes milhões, com um nutrido leque de governantes de variadas nacionalidades à testa, apoiaram uma liberdade de expressão da Imprensa sem restrições, portanto com sátiras impiedosas e blasfemas. E foi bonito. Mas tamanho estrondo levantou esta velha e sempre renovada questão: a liberdade de expressão é uma entre as várias das liberdades cívicas essenciais à plena vigência da democracia, que se realiza apenas no plano de uma igualdade efectiva no mundo onde crescem as desigualdades... 
Os órgãos jornalísticos, obedientes ao pensamento único que dita a verdade única mundial, informaram sem explicar os acontecimentos, como matéria sensacional. Emocionaram e pouco mais, em vez de contextualizarem, recuando, se fosse preciso, ao início do século XX e à “economia do petróleo” ou às mudanças operadas desde então no Médio Oriente. Agravaram-se as contradições existentes no terreno, as ideias e as políticas de direita expandiram-se e deram mais força aos profetas da “islamização da Europa” que apontam para o “choque de civilizações”. 
Quer dizer, alastraram os motivos do medo e do ódio ao “outro”, da intolerância e da xenofobia, radicalizando, com recurso a propaganda manipuladora, a crescente oposição entre cristãos e muçulmanos. É esse, afinal, o caldo de cultura (caldo espesso de oposições apoiadas em crenças subjectivas, sem suporte racional nem razões concretas) em que se desenvolve a violência que pode alimentar o terrorismo no interior de populações massificadas. Ora o terrorismo convém a uns tantos (e não só de um lado), quando serve uns interesses estratégicos de quem sabe agir e continuar longe, invisível. 
A Ocidente, a questão parece estar hoje no apagamento da dimensão do que antes era sagrado. Os europeus declaram-se cristãos mas reduzem a religião, banalizada, à prática eventual de algumas tradições. Sagrado, para eles, é sem dúvida o deus-Mercado (apanágio da democracia, dizem!) e o seu direito indiscutível ao consumo massificado ainda que estejam agora sob rigoroso regime da austeridade imposto pelos governos. 
Mas vejamos. Se o sagrado se esvai (e o que seja venerável, respeitável), não deveriam brilhar com luz rutilante e vermos, onde quer que estivéssemos, os princípios humanizantes, isto é, os Direitos do Homem colocados à altura mais eminente? Não deveriam ser sagrados e consagrados, em primeiríssimo lugar, por toda a população do planeta?

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O voto não é a arma do povo?

A surpresa esperava-me na última página do jornal, onde pensamentos de autores diversos aparecem citados. Parei, embasbacado, a ler: “Se votar fizesse diferença, não nos deixariam fazê-lo. Mark Twain (1835-1910)”.
Então o voto já não era mais a proclamada e tão pacífica “arma do povo”? E era um jornal dito de referência que, naquela manhã, vinha lembrar-nos o dito do grande escritor e humorista norte-americano segundo o qual as eleições não serviam para nada?! Ah, sim, pois, é claro: naquele mesmo dia os deputados gregos iam votar em Atenas a dissolução do parlamento, convocar eleições antecipadas e, talvez, por esse caminho, dar a vitória ao partido de esquerda, Syriza…
A mensagem implícita, portanto, era clara. Não vale a pena fazer eleições quando o sistema económico-político estabelecido impõe pagar as dívidas nacionais à usura financeira internacional ainda que a economia do país e o seu povo estejam de rastos. Todavia, é exactamente neste ponto que a questão se estabelece nos seus precisos termos. 
O jornal, ao enunciar o dito de Mark Twain, colou-o a uma situação que o escritor não poderia prever. Alinhou, além disso, com toda a direita política que defende os programas da austeridade justificados pelas dívidas dos Estados criadas na armadilha dos défices. Quer dizer, tomou partido, admitindo incluso um ostensivo desprezo pela vontade de uma possível maioria eleitoral manifestada democraticamente. 
É certo que o sistema democrático tem vindo a perder conteúdo até se transformar no indigno rótulo tão frequente que já parece normal. Mas o sistema, e de igual modo, o regime, são de geometria variável tão larga que se estende do socialismo retinto à corruptela designada como democracia burguesa. Todavia, são as nações com sistemas de mero rótulo democrático reduzido à simples alternância de dois partidos afins no poder que mais impõem os modelos da sua democracia ao mundo. 
Assim, os tempos não vão bons para a cultura da Democracia. O que em geral predomina é o discurso da direita política, incluso nos media, abertos à Verdade Única em circulação e reticentes no acolhimento de qualquer assomo de pluralismo. Um regime de esquerda democrática (e pode ser um governo de Syriza) torna-se hoje tanto mais suspeito e merecedor de campanha de descrédito quanto mais se mostrar de esquerda: discute as dívidas nacionais, quer um reescalonamento, relançar a economia, etc. 
De facto, a “cultura” democrática mudou de signo. Os donos disto tudo capturaram governos, políticas e meios de comunicação mundiais e querem convencer os povos a aguentar. Veremos em seguida se as massas (i. e., as classes médias) vão continuar, resignadas, a estrebuchar com a corda na garganta na forca da austeridade perpétua ou se, finalmente, acordam de vez para outra sorte.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A destruição dos Estados

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, assim começa um dos mais lembrados sonetos de Camões. Mas o tempo é imutável, corre sempre num fluir insensível e completamente alheio às volições humanas. As vontades, sim, mudam momento a momento nas fogueiras dos nervos e das paixões.
O que o verso camoniano enuncia poeticamente é, pois, um tempo mudado pelas vontades colectivas. Logo, os tempos mudam por mudança das vontades humanas, sendo estas que atribuem a “cor” (quente ou fria, belicosa ou quieta) à situação de uma paisagem social. Compreende-se, portanto, que esta nova época histórica emerge em resultado de mudanças tão vastas e profundas a ocorrer no interior da sociedade que marcam este tempo como um “tempo novo”.
Na verdade, um novo período histórico até pode trazer e restaurar um tempo antigo, por exemplo, com algo de escravatura ou de feudalismo. Isto, evidentemente, não de forma plena assumida, antes em restauros parciais do que no essencial interesse à oligarquia dominante. O tempo presente demonstra-o com dramática clareza.
O povo, cada povo, parece esquecido de que, em última análise, corporiza “o Estado” com a sua história, língua e cultura, no território de que detém efectiva soberania. Assiste, desde há anos, em completa passividade, a uma destruição audaciosa programada. O Estado, que é o próprio povo, vai desaparecendo, derrubado pouco a pouco, bocado após bocado.
As funções normais do Estado, que garantem a soberania nacional e a segurança geral da população, além de outras funções, entram em grave crise. A maioria da população sofre com a degradação das suas condições de vida enquanto uma minoria prospera e enriquece, extremando a desigualdade social. Desemprego elevado, empregos precários e salários reduzidos abrem o caminho para a oligarquia no poder do Estado avançar.
Outorga privilégios e mais privilégios às grandes empresas privadas, bancos incluídos, nacionais e internacionais, protegendo-as de reveses e prejuízos. As grandes empresas agem, com os seus trabalhadores e os seus clientes, como estados dentro do Estado. E generaliza-se a corrupção nas instituições e nas entidades.
Por este nefasto caminho de mudanças, o Estado, acompanhado pelas empresas (com gestores formados nas escolas do neoliberalismo retinto), e auto-aniquilado, estabelece sobre o povo domesticado um novo tipo de relação. Vigiando-o por todos os lados e controlando-o pela cobardia do medo, não o pretende mais, nem na aparência, como conjunto cidadão sujeito às regras “democráticas”, apenas como contribuinte, produtor e consumidor. Mas atinge algo mais fundo: instaura o feudalismo e alguma escravidão, com insofrível aviltamento da condição humana.