sábado, 23 de fevereiro de 2013

Democracia ou partidocracia?

Os partidos assenhorearam-se do sistema democrático, colocando-o flagrantemente ao seu serviço. É essencial que existam para que o sistema funcione, bem o sabemos, mas na condição única de que os partidos sirvam realmente a democracia e não a inversa.
De facto, as organizações partidárias, em particular as que ocupam habitualmente as cadeiras do poder, onde se substituem numa rotina assente em função das  maiorias eleitorais, apregoam grandes exigências de “transparência democrática” estando na oposição ou governando. No entanto, essas declarações de formal conveniência não chegam para que os actos da governação ou a vida interna dos partidos alcancem o nível razoável de transparência que a democracia supõe. Temos que denunciar a torpeza da situação para fazer reinar os princípios democráticos ou, em alternativa, reconhecer a sua falência.
É o funcionamento concreto dos partidos da órbita do poder que começa e acaba por atestar e validar a saúde do sistema. Nesta base, uma questão avulta desde logo com crucial relevância. É a mesma questão que agita nestes dias a Espanha, ameaçando de demissão o governo PP de Rajoy - a do financiamento desses partidos.
Uma opacidade esconde do conhecimento geral as fontes onde os partidos obtém os proventos que lhes permitem prosseguir posto que rodeados de dispositivos de controlo faz-de-conta. O erário público subsidia-os, recebem doações e donativos ocasionais de montante com máximo estabelecido e os seus militantes pagam quotas. Mas há leis em vigor da iniciativa de partidos que os próprios são os primeiros a desrespeitar e uma delas é a que estabelece a apresentação das respectivas contas integrais para competente análise e aprovação.
Essas contas, em geral, não são tidas como claras, completas e convincentes. Documentam uma parte da actividade desenvolvida e, alegadamente, deixam na sombra receitas e despesas talvez tão elevadas que se afundam numa escuridão clandestina sem deixar rasto. Por outro lado, sofre constantes atrasos a apresentação dessas contas.
Alguém sabe, sequer pergunta, quanto vencem mensalmente os líderes dos partidos da oposição ou do governo em funções? E os restantes dirigentes desses partidos? Será isso um segredo aceitável? Ou não será uma negação viva da transparência?
Acusam Mariano Rajoy, primeiro-ministro espanhol, no caso Bárcenas, de receber do PP um “mensalão” canalizado por empresas construtoras. Em Portugal, banqueiros e empresas multinacionais parecem também muito próximos dos partidos que se revezam no poder ao ponto de provocar graves insinuações. A corrupção pode entrar por aí, pela porta dos partidos e dos políticos que os protagonizam; existindo dentro do sistema que os permite e requer, esses partidos e políticos podem virar-se contra a democracia e chegarem a subvertê-la, deixando à vista a ilusão de uma simples aparência.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Vaticano: o papa resigna

A resignação de Bento XVI, tal como foi anunciada, de rompante, provocou o choque mediático que podia prever-se. Os ares e os dias encheram-se com ladaínhas devotas dos turibulários de sacristia a incensar e a glorificar os esplendores da decisão papal. Mal se ouviu, porém, no meio do alarido, a voz de quem percebeu no caso o sinal perturbante de uma crise que se aprofunda na cúria romana.
Essa crise aumentou ao ponto de provocar esta insólita novidade, impelindo para a desistência de funções o chefe supremo da Igreja católica. Certas fontes vinham de referir o seu real isolamento, o poder fragilizado. A situação geral merecia comentários, as preocupações adensavam-se.
Aparentemente, a renúncia de Bento XVI descerra o que as espessas paredes do Vaticano gostam de conservar bem dentro de círculos muito restritos e esse gesto, de chamar as atenções de um público mais amplo para a situação, será por certo o resultado maior que pretendeu atingir. Talvez o contexto em que se consumou deva incluir, por exemplo, a recente declaração do papa, que condenou o capitalismo selvagem, num pano de fundo em que se movem e contrapõem interesses que tomam o Vaticano como presa em disputa (máfias, maçonaria, opus dei...) Os poderosos senhores do planeta - novos deuses invisíveis - ambicionam estabelecer um governo mundial que naturalmente se completa com a integração do poder religioso.
Seja como for, a Igreja católica atravessa um período agitado de crise geral e de grave decadência. O papa pôde fazer-se perdoar pelo juvenil “passado nazi” mas não teve igual sorte pela cobertura dada enquanto cardeal Ratzinger a padres pedófilos alemães. Por outro lado, não contribuiu para o prestigiar o seu perfil conservador ou a sua pressa na produção de tantos e tantos beatos e santos.
Na verdade, a religião, e particularmente a católica, tem vindo a perder influência no interior das novas gerações (só europeias?), demonstrando que não há religião com as barrigas vazias. O que pode resultar do apelo do papa, há dias, para um renovado aggionarmento da Igreja católica, um outro Vaticano II? As populações envelhecem, há menos nascimentos, mas a sociedade actual, laica, ao desumanizar-se, aprofunda uma radical indiferença pelo outro, o próximo, o semelhante.
O enfraquecimento da vivência religiosa ressalta onde se generaliza a materialização das relações humanas que afirma o individualismo egoísta, a sensualidade ávida de prazeres fáceis e rápidos. Não será decerto apenas a falência da religião enquanto tal. Será também a perda do sentido do que é humano-humanizante no homem, dos valores universais da cultura, matriz da espiritualidade.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A erosão costeira


O instituto meteorológico nacional mudou a tabuleta, agora designa-se do Mar e da Atmosfera. Compreende-se: é na zona marítima e no ambiente planetário que se concentram as mudanças mais extremas provocadas pela acumulação das agressões humanas contra os equilíbrios ecológicos. As costas continentais, com imensos pontos críticos, estão sob ameaças tremendamente dramáticas e ninguém já discute o aquecimento global porque não tem remédio nem há tempo a perder.
Portugal, país cronicamente mal administrado, tem uma longa costa muito aberta aos assaltos constantes do mar. Eu, que me tomo por especialista de coisa nenhuma, pus aqui “A erosão da costa” em 13-11-2011, e a crónica surpreendeu, oxalá que alarmando também, os leitores que esta coluna tem na minha região natal, a Bairrada. Regresso hoje ao tema, como simples cidadão, curioso interessado, pois na zona me fiz quem sou, com os pés na Ria, passeio à Torreira, banho na Costa, trepa ao farol da Barra, salto à praia da Vagueira ou mais além…
Quero registar, com o devido agradecimento, um estudo do Dr. Paulo Manuel Correia Silva intitulado “A tendência da linha da costa entre as praias da Maceda e São Jacinto” resultante da dissertação do seu mestrado na Universidade de Aveiro. (http://hdl.handle.net/10773/9652) A leitura não é pêra doce, evidentemente, mas, sendo significativa, abunda em conhecimento útil. O Autor considera que aquelas praias, arenosas, estão expostas “a um grande recuo da linha de costa na maioria da área de estudo, devido à redução no fornecimento de sedimentos e a condições de elevada agitação marítima.”
O seu estudo, com 111 pp, baseou-se bastante na interpretação de fotos aéreas obtidas em 1958, 1970, 1998 e 2010-12 na zona costeira em foco. Revelaram “uma taxa de erosão de cerca de 4 m/ano na zona de Maceda e taxas de acreção que alcançam os 11 m/ano na zona de S. Jacinto.” Estas taxas de acreção devem-se “a existência de estruturas humanas, tais como os esporões, que são usados para proteger as áreas urbanas (Furadouro e Torreira) e o porto de Aveiro.” Anota: “As linhas de projecção futuras mostram que em algumas zonas a linha de costa poderá recuar 80 m em 20 anos (Maceda), sendo devastados hectares de floresta. Em S. Jacinto, a norte do molhe do porto, pode haver uma acreção de 220 m[etros].”
Oxalá que o Dr. Paulo M. C. Silva, no seu percurso académico posterior, estenda a investigação para sul (até Mira?), por onde as fragilidades do cordão dunar abrem a costa à penetração das correntes marítimas. Por assim dizer, quase toda a costa que envolve o litoral português - onde se aglomeram tantas populações! – aparece em risco de catástrofe natural que os próprios governantes anunciam desde há anos como inevitável. Avisam mesmo que Portugal não dispõe de meios materiais para deslocar essas populações, que perderão tudo, casas e terrenos, devido à erosão costeira - uma tragédia terrível, pesadelo anunciado.
Nota final. As costas foram declaradas propriedade pública do país em 1864. No entanto, sabe-se em geral quanto os governos se descuidam de governar a valer e quanto os portugueses, concordando com os seus (des)governantes, se descuidam da governação nacional. Mas motivou espanto retinto a notícia do semanário “Expresso” de que 30% das costas portuguesas ainda hoje eram propriedade privada, tal como uma praia muito popular frequentada pelos lisboetas. Espanta-se ainda mais quem tem ideia da quantidade incrível de entidades oficiais que cai sobre alguém com projecto incidente na zona. Existem para quê?!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Os lobos, os peixes e os homens

Tenho por perto um companheiro e excelente amigo que desde a juventude se agarra à terra que embeleza e põe a frutificar; nas horas calmas, sentando-se, lavra cada linha da página em branco para nela depositar a sua semente. A propósito de uma conversa, trouxe-me o sermão do padre António Vieira aos peixinhos:
"A primeira coisa que me desedifica, peixes, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastava um grande para muitos pequenos, mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Evidentemente, António Vieira não defende nem aconselha que o homem seja o lobo do homem. Ao invés, realça que são os mais pequenos que abundam na natureza, lembrando que os grandes se alimentam deles, pois bem sabemos que milhares de pequenos são precisos para gerar um único maior. Se fosse lícito ao homem, destituído de consciência moral, dizimar outros homens, o que ensinaria o padre, que lugar teria no mundo a religião?
Vieira (1608-1697) dirige o sermão aos peixes mas a sua fábula aponta o que seria justo: que muitos pequenos comessem um grande. Bem entendido, os homens não são peixes embora possam juntar-se em cardume e empreender acções de grupo com óptimos resultados. Têm no corpo sangue quente e pulmões em vez de guelras, além de possuírem aquela singularíssima consciência do bem e do mal que serve para tudo, inclusive para crer que existe uma «natureza humana» eterna...
Quero assegurar, com toda a clareza, que os peixes não merecem de modo nenhum que os seus comportamentos gerais sejam assimilados aos dos humanos. Sabem viver correctamente, alimentar-se e reproduzir-se segundo regras integradas que o canal National Geographic expõe à admiração do mundo. No reino animal e mesmo no vegetal, a harmonia entre as espécies decorre naturalmente, como «lei» imutável, que apenas o homem, autoproclamado dono e senhor da natureza, tem o descoco de torpedear.
As ferocidades dos humanos não tem paralelo na natureza. Pretender justificar os seus desmandos com uma suposta «lei da selva» deixa os humanos sozinhos a debater as suas culpas e desmandos. Pior ainda, mostra-os incapazes de perceber as autênticas lições de vida que se contêm na natureza, basta-nos ver ali o que é elementar.