Tenho por perto um companheiro e excelente amigo que desde a juventude se agarra à terra que embeleza e põe a frutificar; nas horas calmas, sentando-se, lavra cada linha da página em branco para nela depositar a sua semente. A propósito de uma conversa, trouxe-me o sermão do padre António Vieira aos peixinhos:
"A primeira coisa que me desedifica, peixes, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastava um grande para muitos pequenos, mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Evidentemente, António Vieira não defende nem aconselha que o homem seja o lobo do homem. Ao invés, realça que são os mais pequenos que abundam na natureza, lembrando que os grandes se alimentam deles, pois bem sabemos que milhares de pequenos são precisos para gerar um único maior. Se fosse lícito ao homem, destituído de consciência moral, dizimar outros homens, o que ensinaria o padre, que lugar teria no mundo a religião?
Vieira (1608-1697) dirige o sermão aos peixes mas a sua fábula aponta o que seria justo: que muitos pequenos comessem um grande. Bem entendido, os homens não são peixes embora possam juntar-se em cardume e empreender acções de grupo com óptimos resultados. Têm no corpo sangue quente e pulmões em vez de guelras, além de possuírem aquela singularíssima consciência do bem e do mal que serve para tudo, inclusive para crer que existe uma «natureza humana» eterna...
Quero assegurar, com toda a clareza, que os peixes não merecem de modo nenhum que os seus comportamentos gerais sejam assimilados aos dos humanos. Sabem viver correctamente, alimentar-se e reproduzir-se segundo regras integradas que o canal National Geographic expõe à admiração do mundo. No reino animal e mesmo no vegetal, a harmonia entre as espécies decorre naturalmente, como «lei» imutável, que apenas o homem, autoproclamado dono e senhor da natureza, tem o descoco de torpedear.
As ferocidades dos humanos não tem paralelo na natureza. Pretender justificar os seus desmandos com uma suposta «lei da selva» deixa os humanos sozinhos a debater as suas culpas e desmandos. Pior ainda, mostra-os incapazes de perceber as autênticas lições de vida que se contêm na natureza, basta-nos ver ali o que é elementar.
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