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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Forjaz de Sampaio e Lisboa

Não será saudosismo ou algo que se pareça. Será tentativa de confrontar a impressão de leitura que fiz muito jovem com a leitura que pude repetir agora, quase setenta anos depois. A primeira impressão foi forte, marcante, inesquecível; e a de agora?
Mas vou iniciar o comento recordando que, ao consultar o livrinho de pequeno formato
A Tipografia portuguesa no século XVI, me recordei de duas leituras marcantes. O autor do livrinho (ed. Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1932) era Albino Forjaz de Sampaio, autor de Palavras Cínicas e de Lisboa Trágica, dois títulos que me ficaram na memória.
Estes livros circulavam e ainda eram citados no meu ambiente natal, onde o estereótipo da “cidade” como antro de vícios e a “aldeia” como jardim de ventura se mantinha após a Segunda Grande Guerra. Albino Forjaz de Sampaio (Lisboa, 19-01-1884 / 13-03-1949), jornalista aos 16 anos na “Lucta”, cedo ficou a conhecer o submundo das vielas da capital. Grande amigo de Fialho de Almeida e Brito Camacho, foi autor de uma bibliografia torrencial, mas aqueles dois títulos deram-lhe imensa projecção e popularidade.
Palavras Cínicas, de 1905, pessimista à Schopenhauer e depressivo à Fialho, foi dos livros mais vendidos no Portugal da época (teve 46 edições); Lisboa Trágica, de 1910, subintitulado “Aspectos da cidade”, atingiu apenas sete edições ou pouco mais.
Forjaz de Sampaio dedicou-se a seguir, entre 1920-22, à recolha e estudo de teatro de cordel conseguindo que o mundo literário reconhecesse essas obras de expressão popular. Começou a deixar de ser, como pretendia, um “jornalista levado dos diabos”, para se afirmar um distinto bibliófilo e publicar
Como devo formar a minha biblioteca, obra que perdurou como manual recomendado. De facto, coleccionou apaixonadamente os nossos autores clássicos de Quinhentos, aos quais rende tributo no livrinho acima citado sobre a história do livro e da impressão em Portugal, de tal modo que, em apresentação, o antigo jornalista pôde acrescentar ao seu nome “Da Academia de Ciências de Lisboa”.
A honra que lhe foi concedida pela Academia não calou os detractores (diziam-no autor cuja “leitura estava a matar a literatura”). Ora
Lisboa Trágica, relido na velha reedição de 1940, traz a epígrafe de Fialho: “…esta imensa cidade de quatrocentos mil habitantes e seis milhões de egoísmos”. Saboreáveis, hoje, são os dois prefácios do autor, que nota: desaparecem os “homens integrais”, baixa o “sentimento da Honra”, “as vacas já não andam pela rua a distribuir leite”; naquele tempo [1910] “desconhecia-se o foot-ball e o cinema” (sic), agora “há o pontapé na bola e as fitas policiais”, mas jogar “antigamente era um crime”…

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Vicente Campinas: evocação


Vendo-o, ninguém diria quem estava ali. Vulto pequeno, de aparência vulgar, António Vicente Campinas abrigava convicções firmes, energia combativa e sonho inesgotáveis. Republicano e democrata com sensibilidade social, identificou-se com as causas operárias e populares (foi, desde cedo, militante comunista) num sentido que o aproximou e integrou na corrente neo-realista expressa em literatura e cinema.
Algarvio, Vicente Campinas publicou mais de trinta obras, de poesia, ficção (conto e romance) e prosas diversas. Começou em 1938, com Aguarelas, poesia, e avançou até 1994, com Guardador de Estrelas, antologia. O seu poema “Cantar alentejano”, em memória de Catarina Eufémia, ficou bastante famoso com música de Zeca Afonso (álbum “Cantigas de Maio”, 1971).
Muitos dos seus livros saíram em edições do próprio autor (alguns sob pseudónimo) e alguns tiveram-me como “editor”. Esta singularidade pede explicação. Vicente Campinas nasceu em Vila Nova da Cancela, concelho de Vila Real de Santo António, em 28-12-1910, e morreu em Lisboa em 3-11-1998, de modo que a vida vivida entre estes anos, quase 88, nada teve de fácil…
Abriu caminho a pulso. Foi tipógrafo, guarda-livros num escritório, livreiro. Jovem autodidacta, as suas ideias políticas atraíram a repressão do regime de Salazar então a implantar-se. Sofreu prisões, resistiu mas teve que exilar-se – “saltou” para Paris.
Contactou-me nessa altura, sem nos conhecermos pessoalmente, para me pedir um favor: receber em minha casa umas quantas caixas com livros da sua biblioteca que depois lhe enviaria, em pequenos pacotes, pelo correio normal para o seu endereço parisiense. Assim fiz e, viva!, não houve extravios. Campinas sentiu-se grato (deixara de trabalhar na dureza do bâtiment, arranjara por fim lugar de contabilista, já tinha consigo sua mulher) e convidou-me a ir visitá-lo e… conhecê-lo no aeroporto.
Ele sabia da colaboração que, como “parteiro” de edições eu dava à Nova Realidade, de Tomar, e pediu-me para o ajudar de tal jeito. Arranjei tipografia e orçamentos, fiz as revisões de cada livro, recebia a tiragem pretendida e despachava-a para o endereço indicado e pagava a factura com o dinheiro que me mandava. O caso repetiu-se, que me lembre, desde Proa ao Vento, 1966, Preia-mar, 1969, Raiz de Serenidade e Reencontro, 1971, entre outros.
Campinas era autor compulsivo. Colaborou intensamente na imprensa, fundou o “Jornal do Cinema” e o “Foz do Guadiana”. E apenas quando regressou do exílio, após o 25 de Abril, pude verificar que o recém-chegado era militante comunista.
O centenário do seu nascimento foi comemorado em Vila Real de Santo António em 2010. Neste município, Campinas também é patrono da biblioteca municipal e tem o nome numa rua. É com homens desta têmpera que existe cultura viva!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Evocação: Lília da Fonseca


Gostaria de repegar no meu álbum de afeições particulares. Por diversos motivos, a vida vivida aproximou-me de pessoas estimáveis que me apraz recordar agora que pouco espaço nos resta do que anda por aí consagrado aos heróis mediáticos do tempo efémero. Recordo-as já desaparecidas, vitimadas pelo cutelo da dupla morte que nem tento esconjurar.


Lília da Fonseca é uma dessas pessoas amigas. Nasceu em Benguela, Angola, em 1916 e morou prolongadamente em Lisboa, onde faleceu em 1991. Maria Lígia Valente da Fonseca Severino, seu nome civil, pouco conhecido foi mas o nome literário que adoptou chegou a ser, sobretudo na segunda metade do século XX, bastante apreciado e querido pelos leitores de jornais, revistas e livros em Angola, Moçambique e Portugal. Destacou-se ainda por ter sido a primeira mulher que teve a coragem de concorrer às eleições legislativas para a Assembleia Nacional, em 1957, como candidata pela Oposição Democrática.
Lília da Fonseca foi jornalista (começou em “A Província de Angola”) e escritora. Fundou “Jornal Magazine da Mulher” (1950-56), em Lisboa, que dirigiu, e colaborou em numerosas publicações, como “Século Ilustrado”, “Mundo Português” e “Seara Nova”. A qualidade geral da sua intervenção cívica evidenciou-a como palestrante activa. Na literatura estreou-se com o romance Panguila, 1944, a que se seguiu Poemas da Hora Presente, 1958, Filha de Branco, contos, 1960, e, em 1961, O Relógio Parado, romance que o regime da ditadura proibiu mas que a autora reeditou após a democratização do país.
Porém, foi como autora de literatura infanto-juvenil que Lília da Fonseca especialmente se distinguiu. Publicou mais de trinta títulos, conquistou o prémio João de Deus em 1960 e em 1963, e a colecção “Carrocel”, que dirigiu, teve o apoio da Fundação C. Gulbenkian. Fundou ainda o Teatro de Branca Flor, em 1962, de fantoches, com peças e bonecos também de sua autoria.
Em Lília encontrei a vontade que quer melhorar as misérias do mundo, vontade utópica, evidentemente (e não será a utopia alimentada por alguma poesia?), mas pulsão imperecível. Com ela, com a sua amizade e com os seus livros entrei na aventura que me deixou a experimentar escrever para crianças. O caminho faz-se a andar e é pelo sonho que vamos...

Todavia, anotar o perfil da vida e obra de Lígia numas poucas linhas de extensão limitada é problemático e frustrante. O essencial fica talvez sumariado. A faltar ficará o restante, o que com ela desapareceu. [Foto: Lília da Fonseca no Porto (1970?).]

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A tineta da Crónica


Os leitores que acompanham de algum modo o que tenho vindo a publicar conhecem-me a tineta: parece que fiquei amarrado com juras de amor eterno à Crónica. O Conto e outros géneros literários também aparecem na minha bibliografia mas, ai de mim, é a Crónica que sobressai no conjunto. Ora isto não serve para graduar um autor pois, como muito bem realçou o amigo Arnaldo Saraiva na apresentação que estou a lembrar de obra de um conceituado cronista brasileiro, apenas o Romance pode distinguir o escritor com o autêntico selo literário.

Flores,Açores.jpgIgnoro se o autor brasileiro, ali presente, engoliu em seco. Eu concordei de boamente, conformado com a modéstia da condição que aliás reivindico, percebendo no entanto que nesse ponto exacto coloco a pedra angular do que é e vale para mim a Literatura. Afinal - e aqui está o busílis – importa-me tão pouco ser escritor distinguido na feira das vaidades!
Venho de um tempo em que os autores, incluídos os principais, quase pareciam fugir da “visibilidade” que os autores de hoje tanto perseguem. Colocavam-se por trás do que escreviam, esperando que os seus trabalhos circulassem e brilhassem, não a própria pessoa escrevente recolhida em penates. Os escritores dispensavam-se então de acções de public relations, isto é, de circular em postura bem falante e poses mediáticas porque a Literatura não existia ainda como espectáculo nesta sociedade que tudo mercantiliza (outrora acontecia isto: Jorge Amado causou escândalo porque perguntou ao seu editor, F. Lyon de Castro, à chegada ao aeroporto da Portela, se os seus livros vendiam bem – e ainda não chegara a Gabriela Cravo e Canela).
Virei contra mim a fragmentação que, página a página (centenas e centenas, de espetactor no seu mundo),  andei a praticar levado nas ondas de um entusiasmo, uma respiração voluntarista que me afastou sempre da realização de obra de largo fôlego (o romance). Quer dizer, não produzi volume memorável, negligenciei a famosa “visibilidade”. Realmente, muito pouco me interessou ganhar - ganhar fama, protagonismo, dinheiro, honrarias – e, muito mais, seguir a minha estrela.
Todavia, não lamento coisa nenhuma neste percurso; ao invés, apraz-me provir de um tempo em que os bons escritores eram remunerados conforme o que escreviam, de maneira que posso agora perceber quanto dano causou a vulgarização que banalizou a Literatura. Sim, agora há muitos mais autores mas o número dos autores presentes no mercado e em concorrência acesa aumentou paralelamente, provocando uma diminuição geral do valor dos seus trabalhos e expandindo o costume (vicioso) das colaborações não pagas. Ganhar “visibilidade” na praça, exibir a “marca” que é o nome de cada autor tornou-se investimento difícil mas vital como garantia de futuro…

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Para quem escrevo

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Ao iniciar um texto, disponho-me a escrever para toda a gente. Algo me convence (um heróico optimismo?) de que é importante lançar umas considerações sobre o assunto que me ocupa e que se me afiguram de interesse geral. Porém, a disposição esvai-se logo com as ideias envolvidas nas primeiras frases: não é mais possível acreditar que vou poder atingir (merecer) a generalidade dos leitores.
Terminado, um texto (a página da crónica), parte em voo solto como canção nova que esvoaça na rua e quer chegar a ouvidos que a façam sua. Sendo como é, agradará mais ou menos ou deixará na indiferença quem alcance, assim, naturalmente, pois o texto se apresenta revestido de uma fisionomia própria, que é ou será a da personalidade de quem o escreveu. Não será apenas pelo tema abordado, a perspectiva específica ali esboçada ou a expressão verbal do autor: será o todo que se funde no texto.
No que escrevo, não pesco à linha com isco de eficácia garantida e, muito menos, com rede de arrasto e malha estreita que deixa os fundos varridos. Sei o que todos sabemos, que nenhuma página consegue interessar e, cumulativamente, agradar a todos que a leiam, pelo que, acima de tudo, me importa garantir a quem chega à minha página tanta liberdade quanta a que eu tive na escrita. Porém, se então ocorre o encontro do texto com o leitor que o faz “seu”, esse texto encontrou plenamente o destinatário que desejava e eu para quem o escrevi.
Tais encontros terão decerto alguma coisinha de epifânico. Logo, um texto pode permanecer longamente sem encontrar disponível o leitor a que aspira. Escasseia espaço nos circuitos da leitura onde tantos leitores parecem precisar de ser atraídos, seduzidos e mesmo enganados por imagens e jogos de retórica fácil que os divirtam.
Confesso: em primeiro lugar, escrevo para mim (mas, pequeno como sou, devo ter assimilado muita gente na minha pequenez, os muitos autores que li, admirei e me formaram o gosto). Em último lugar, ao terminar o texto continuo a escrever-me a mim próprio. Porque, em boa verdade, espero que os meus escritos sejam avaliados e valham pelo que de intrínseco possuam, não pela cara do escrevente (afinal bem pouco conhecida ou mediática: gosto deveras de andar incógnito pela rua).
Há pessoas, umas quantas raridades, que nunca pretenderam ser mais do que eram per se, na sua radical simplicidade. Escrevem como quem se analisa ao espelho da sua consciência e, incessantemente, se interroga “quem és?” porque essa é a questão fundamental que procuram esclarecer. Por algum motivo eu já punha em título (crónica de 02-07-2008) a declaração: “Estou no que escrevo”.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Prendinhas de Natal

As minhas primeiras leituras não escolares foram, em autêntica estreia, o que deveriam ser: histórias para crianças. Mas iniciava-se o quarto decénio do século passado, a designada literatura infanto-juvenil era então raridade ainda maior do que bibliotecas públicas no Portugal salazarento. Havia pouca e pouco havia que escolher. 

ler.livros.jpgO entusiasmo, o deslumbramento que essas primeiras leituras me proporcionaram parece que continuam presentes no cabouco da pessoa que o rapazinho viria a ser, pois as vivências de então, determinantes, nele ficaram guardadas em memória indelével. Nunca mais deixei de gostar, gostar apaixonadamente, de literatura infanto-juvenil, quer dizer, de Literatura, logo contos para crianças. Quando entrei a colaborar na imprensa não tardei a escrever sobre o tema – a situação geral, os seus impasses. 
Assim tenho vindo a acompanhar a produção e circulação de tal género de livros no país ao longo dos anos (mais de cinquenta), de modo que alinhei ao longo do tempo uma grande quantidade de artigos, crónicas, pequenos estudos. Algumas dessas abordagens encontram-se recolhidas em volumes que publiquei de abrangência temática afim, outros permaneceram dispersos. E agora, perante essas dezenas e dezenas de textos, esboçou-se a ideia de os reunir para perceber se algo deles poderia extrair-se. 
Porém, a simples tarefa de ir aos jornais e revistas e livros recolher os escritos deixou-me a recapitular a matéria. Requeria um esforço enorme. E mais: com resultado à vista, a bem dizer, incerto e assaz duvidoso. 
Afinal, o que tenho vindo a escrever sobre literatura para crianças, ou infanto-juvenil, reflecte, acima de tudo, julgo eu, as transformações essenciais por que passou o género em cerca de 60 anos. Assim evoco o contributo proporcionado pela Fundação Calouste Gulbenkian (bibliotecas itinerantes e fixas) que dinamizou muitíssimo os sectores nacionais da edição e da leitura pública desde a sua criação, em 1958. Quando muito, interessaria uns poucos: uma franja de leitores atentos e algum sociólogo ou historiador da literatura. 
Quer dizer, a matéria não serviria para, demonstrando, ensinar coisa alguma a alguém. Estamos todos colocados numa realidade em flagrante, sabemos quanto o crescimento das publicações infanto-juvenis já contribuem para activar as editoras. Mas seria interessante analisar e documentar quanto a evolução em foco, sendo positiva, banalizou os livros “para crianças” ao ponto de esbater, e até abolir, com a expansão do mercado, a noção de que somente os (poucos) livros capazes de encantar os adultos têm mérito real suficiente para chegarem aos pequenos leitores.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Ana Hatherly e Cértima

Ao receber em 1993 o espólio do escritor António de Cértima, isto é, ao manusear em sua casa os papéis e outros documentos integráveis na doação feita pela sua viúva, descobri um pequeno conjunto de folhas assinadas por Ana Hatherly e, nas estantes da sua biblioteca, os primeiros livros publicados pela então jovem escritora. Ali soube que Cértima era tio de Ana. Nasceu uns 35 anos antes da sobrinha, mas a diferença de idades não obstou a terem sido “muito afeiçoados”.
As relações de Ana (Porto, 8-05-1929 / Lisboa, 5-08-2015) com Cértima (Oliveira do Bairro, 27-07-1894 / Caramulo, 20-10-1983) são certamente posteriores a 1949, quando Cértima deixa o consulado de Sevilha e se fixa em Lisboa para se casar e retomar plenamente a criação literária. O parentesco trouxe-me logo à lembrança que o bairradino autor de Epopeia Maldita frequentou o círculo intelectual do Porto, onde tinha familiares. Nesta cidade terá composto o poema “Oração a Dionyso” publicado na primeira página do quinzenário de afirmação galega “Rexurdimento” (Betanzos, nº 2, de 16-08-1922). 
Todavia, em 1949 Ana estudava na Alemanha canto lírico, carreira que abandonou por motivos de saúde. Em Lisboa, nos anos ’50, decidiu optar pela literatura e então aproximou-se do tio, escritor bem conhecido no ambiente da época. Cértima conservou no conjunto dos papéis uma carta de Ana, talvez de Dezembro de 1953, cujo teor parece esboçar um primeiro gesto dessa aproximação em admirativa exaltação. 
Os papéis que o tio dela quis conservar são, em breve súmula, três cartas manuscritas; duas páginas em papel bíblia com texto dactilografado intitulado Le Danse de l’Oubli e autógrafo ao tio em 19-12-1956; um poema manuscrito, em jeito de improviso, datado de 11 de Julho de 1957 e a nota “Em casa de António de Cértima”; três poemas dactilografados; mais três poemas manuscritos (dois com datas: Janeiro de 1959 e 1964). 
Ana Hatherly frequentava a universidade e aparecia com os primeiros livros: uma antologia da “Moderna Poesia Portuguesa”, em 1960, que a autora baniu da lista dos seus livros decerto por causa da epígrafe de Salazar, e a narrativa O Mestre em 1963. Depois adviria um certo afastamento, também ideológico, do tio, a sua adesão à poesia concreta e experimental, o doutoramento em literaturas hispânicas, o cinema (que foi aprender a Londres), a consagração como “pintora da palavra”. Neste percurso, o traço que mais vincadamente marcou Ana foi a reserva com que manteve a sua vida pessoal. 
A relação que manteve com o tio terá sido tão discreta que, em geral, passou inadvertida, mas Cértima quis documentá-la nos papéis que guardou, assim como a existência de filha de Ana, Catherine, vítima mortal de acidente automóvel perto de Londres, em 1970. Conhecendo-os, convidei Ana Hatherly em 1994 a participar num ciclo de conferências que assinalou o centenário do nascimento do tio, mas ela recusou. Gorou-se a minha intenção de restituir os papéis à autora. 
A eles tornei aquando da morte de Ana Hatherly. Achei-os significativos. Que destino dar-lhes? 
Resolvi oferecê-los à Biblioteca Nacional de Lisboa, entidade que já havia recebido uma doação da própria Ana. Entretanto, julgo ser meu dever dar pública notícia deste conjunto de papéis, aqui e em artigo a sair na revista digital TriploV de Dezembro próximo. Podem interessar ao eventual investigador. [Foto de Ana Htherly na contracapa de «O Mestre», 1963.]


Post scriptum


O texto supra, editado em 10-11-2015, ficou para mim tingido por desgosto e tristeza. Parece que as relações pessoais estabelecidas pelos dois autores em foco, que descrevo em poucas linhas (mas remeto para o estudo mais desenvolvido que assinei então na revista «TriploV»), resulta em assunto assaz incomodativo. Ora eu, no caso, sempre me senti completamente neutro, isento de qualquer interesse particular. Lembro: dei alguma atenção a António de Cértima para assinalar o seu centenário, publiquei livro «António de Cértima - vida, obra, inéditos» (Figueirinhas, Porto,1993), etc., porque ele nascera na minha terra natal e eu corria pelo restauro do património cultural daquela região (sendo eu de esquerda e ele tivesse feito carreira apoiando a ditadura de Salazar); quanto a Ana Hatherly, respeito-a pelo seu perfil académico, de escritora e de mulher. Se algo me move no caso é apenas o desejo de contribuir para o melhor conhecimento de Ana, pessoa tão ciosa da sua privacidade que, por exemplo, nem sabíamos que tivera uma filha. Apesar de tudo, colhi fortes motivos de perplexidade e aborrecimento: a recusa da directora da Biblioteca Nacional de receber a minha doação dos documentos (recusa peremptória, inexplicável, pois a directora e a BN poderiam tratar e divulgar os papéis conforme quisessem; a publicação na revista também não correu bem, foi mais perplexidade e aborrecimento. Outras ocorrências deixaram-me a considerar o caso desagradável de tal modo que o descartei da agenda. Acontece, porém, que o texto supra tem vindo a receber constantes leitores de variados países e isso traz-me por fim a cumprir o que talvez seja uma obrigação: esclarecer o caso, encerrar o assunto. De facto, mantive-me tonta e longamente persuadido de que o estudo editado na revista digital «TriploV» era acompanhado pelas digitalizações dos documentos principais (cujo teor transcrevo). Por isso, o meu livro Inclinações Pontuais [ISBN 978-989-54234-82-49], publicado na plataforma digital da SPA em Agosto, 2018, indica no final, em nota, que as digitalizações eram acessíveis no endereço da revista, indicação errónea não corrigida. Mas os leitores eis a surpresa! podem hoje encontrá-las aqui. Finalmente! No cabeçalho, em «Página» (tem duas entradas: uma tem capas e links de meus ebooks); abram a segunda, «Ana Hatherly-digitalizações»). Entram na página e visionem as 24 imagens com o tamanho dos documentos originais. Mostram mensagens de Ana, poemas inéditos (?), duas pp em papel bíblia dactilografadas; nota do punho de Cértima em fl A4 que regista morte da filha; carta de Catherine para os tios António e Arminda, um autógrafo anotado por Cértima, etc. (a menina já projectava livros desenhando a lápis a capa). A foto que Cértima guardava no conjunto - o retrato de Catherine - já saiu no texto da revista e agora é aqui repetido. [09-07-2019]

Acrescento


Resolvi ampliar a exposição dos papéis de Catherine, filha de Ana Hatherly, integrados no conjunto deixado pronto por António de Cértima e recebido por mim junto com o seu espólio geral. Acrescento sete novas digitalizações de textos elaborados por Catherine atendendo a dois motivos essenciais: documentam as aptidões extraordinárias que a menina já demonstrava (chegam a ser aptidões impressionantes e bem mereciam referência especial); e poderão auxiliar um eventual investigador num esforço pela definição do perfil humano, como pessoa e como mãe, de Ana, detectando o que dela própria possa encontrar-se reflectido na filha. O «tio» Cértima e «tia» [Ar]Minda terão acompanhado afectuosamente o talento de Catherine, autora do poema «A Morte» (4 pp, peq. dim.) A menina enviou-o ao casal, considerando no poema que a morte «é uma ave branca e pura» e que «Mais vale entrar na vida sendo poeta». Note-se também o «romance O amor Falso» com capa, prefácio e apontamentos sobre personagens, cenários, etc., que Catherine, com 10 anos de idade, escreveu a lápis em folhas de papel costaneira usadas outrora por merceeiros em cadernos de folhas soltas.  Era papel de fraca qualidade e daí a fraqueza das imagens -, decerto sua mãe dava-lho para que ela rabiscasse. A infantil autora assume-se como Catherine d’Elche (pseudónimo?) e supõe: «Mas parece que Deus me escolheu para ser mais uma serva de arte para ele.» Também estes esboços chegaram aos «tios» e talvez a Fátima (ou Fati, diminutivo familiar), a filha do casal com quem a filha de Ana brincou. Ignoro o ano e onde nasceu Catherine, o nome do progenitor. Atentei no ano inscrito na «capa» do «romance», 1960, quando a menina teria 10 anos. Poderá deduzir-se que teria nascido em 1950? E tendo falecido em 15-01[ou 02?]-1970 (talvez já com 20 anos?!), conforme regista Cértima? Ora, em 1960, Ana Hatherly contaria uns 21 anos pois, conforme se sabe, nasceu em 8-05-1929. Quanto a mim, cingido ao factual, dispenso-me de interpretações, deixando-as para alguém que se disponha, séria e competentemente, a investigar e estudar todos os dados existentes. Se esse alguém, em tempo útil, me contactar em tal sentido obterá de mim acesso adequado a todos estes papéis. Se ninguém comparecer, prevejo desde já uma solução de mero recurso: irei levá-los em mão e doá-los ao arquivo da Biblioteca da Universidade de Aveiro, para juntar aos dois espólios (o meu e o de António de Cértima) ali constituídos por mim há anos.  Assim ficará arrumado este assunto. Missão cumprida!
Lembro que A. de C. tem nome em blogue que criei, onde estiveram presentes dois livros de sua autoria, inéditos: uma peça de teatro não representada e uma colectânea de contos, em edições digitais: «Ela e o Homem» e «Os Que Sentem e os Que Pensam». Foram retirados do blogue por perda da plataforma que os mantinha. [28-07-2019 e 26/28-11-2019]

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Encontro de jornalistas JN

À beira do terceiro encontro da malta JN (31-10-2015, de novo em Coimbra), recordo: apareci pela primeira vez no segundo. Falhei o inicial por impedimento que já se me varreu, mas lembro-me da pena que isso me deixou. O meu nome tinha sido agregado à lista dos contactos preparatórios pela mão do Fernando Mendes, que me apareceu a desencadear a iniciativa e que antes da concretização do evento foi tristemente levado pelas Parcas.
É bem verdadeiro o meu gosto por reencontrar os companheiros do nosso jornal e por trocar com eles um abraço. Partilhámos experiências, vida vivida e mesmo algum sonho. Mas confesso que duvido se alguns dos meus velhos companheiros terão tanto gosto quanto eu pelo reencontro e o abraço que nos poderemos dar.
Naturalmente, no jornal tal como em convívio gratificante, criam-se subgrupos dentro do grupo pela força de correntes espontâneas que crescem em liberdade. Serão expressão de simpatias pessoais compartilhadas, afinidades ou de outro «algo» humano que por vezes resiste ao entendimento, ou resultantes de simples desencontros ocasionais. Mas o facto é que «passei» pelo JN sem levar dali a lembrança de uma relação de amizade digna desse nome.
Assinalo somente o pormenor (com autocrítica: corria demais naquele tempo, logo sem tempo para acamaradar?), reconhecendo porém que me congratulo deveras com estimas ou simples considerações pessoais que sinto merecer de antigos camaradas para mim especiais. Na verdade, dei-me sem restrições ao nosso Jornal. Comecei a colaborar nas suas colunas bastante cedo, em 1954, no designado «Suplemento Literário» coordenado pelo dr. António Ramos de Almeida e, em 1960, por convite do director Manuel Pacheco Miranda, como cronista semanal e logo, em 1963, num passo seguinte, encetei paralelamente a profissão.

Escolhi-a desistindo de um lugar em biblioteca itinerante da Gulbenkian, em Chaves, que me foi proposto em dia frígido, de intenso nevão. Recusei-o e optei por me fixar no Porto. Já tinha livros publicados, algum nome literário, bons relacionamentos no meio portuense, e o jornalismo aproximava-me do que mais queria - escrever.
Tive que pagar a factura: os jornalistas tarimbados olharam-me como «literato», isto é, de algum modo, como um intruso, duvidosos se eu seria capaz de escrever uma notícia chapa cinco, uma reportagem convincente ou de fazer uma entrevista e, entre os escritores, só uns poucos acharam que terei dado algum brilho à profissão.
O Jornal morava na Avenida dos Aliados. Chefe de Redacção era o sr. Brochado; passava o tempo com novelas policiais. O subchefe, Manuel Ramos, o nosso familiar Raminhos, sempre em luta com a Censura, de manguitos enfiados até aos cotovelos, encarregava-se do expediente.
Foi abreviado aquele meu primeiro período de serviço no JN. Em Junho de 1964, a PIDE quis obsequiar-me com três meses de clausura e no regresso encontrei o ambiente geral muito carregado de antigamente, o que acabou por me empurrar para a demissão. Voltei após a democratização, em 1978. Permaneci até sair (em 1992) na «Cultura» (como editor, quando esta figura ainda não existia no país), secção que surgiu, pequenina, mas depois botou corpo.
Fui cronista regular (semanal) em diversas ocasiões - trabalho de casa, pura oferta. Fiz de tudo quanto um jornal daqueles precisava, afora, é claro, o desporto, praticando abundantemente nas suas páginas a cartilha dos géneros redactoriais. Cheguei a crer que pequei por excesso, ao ponto de cair - erro crasso! - em dizer um dia ao então director: «Gosto tanto disto que até pagava para o fazer!»
Mas, vejamos, se não estamos apaixonadamente na profissão, que sentido terá a nossa vida? Lembro o filósofo: «Escolha um trabalho que ame e não terá que trabalhar um único dia na sua vida.» Enfim, tudo aquilo já se dilui num passado que pouco ou nada interessa, pelo que torno ao filósofo para assentar: «É fácil apagar as pegadas; difícil é caminhar sem pisar o chão.»

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-2


Honra-se um autor de modesta condição como a minha colocado nesta prestigiosa companhia tendo embora em conta a diferença das respectivas estaturas. Na verdade, consagrei imensas energias a uma espécie de animação cultural que, a meus olhos, sempre integrou uma certa dimensão de participação cívica pro bono. Neste sentido, creio que uma pessoa, máxime um autor, não pode negligenciar ou truncar a relação com a sua comunidade sem grave perda para si e para a comunidade.
Olhando para trás, penso ver espelhar-se no percurso que segui a coerência do que foi ou terá sido o meu crescimento. Andei longamente a encanar a perna à rã, posso dizê-lo, mas, para minha desculpa, fiquei possuído desde a juventude pela tineta do pagador de promessas que ninguém fez mas que alguém teria que pagar. Animado decerto por um voluntarismo sôfrego, este rapaz, já sexagenário, e mesmo depois, ainda acudia, peregrinando com armas e bagagens, na defesa das causas públicas que encontrava despejadas nos baldios.
Documentada ficou a surpreendente antiguidade histórica do lugar onde nasci e de alguns outros topónimos da redondeza. Pois não tende o homem a considerar o seu lugar de nascimento como centro do mundo?
Do pequeno lugar de origem pude abranger a região que o envolvia. Até meados dos anos ’80, a Bairrada era entidade quase sem referência que não fosse coloquial. O vinho e o leitão punham os sápidos à mesa. Porém, para além disso, demonstrada ficou a existência, ali, de um vasto e rico património, também surpreendente, que teve méritos para integrar a minha região natal no universo da cultura.
Estudei as questões fundamentais da informação e do jornalismo pois, a trabalhar na Imprensa, precisei de enquadrar a prática da profissão nas funções da comunicação social no Estado republicano e democrático. Parei onde estou, a apalpar as paredes da liberdade…
Debati as questões da edição literária, da crítica e da recensão das novidades, do mercado livreiro, da tradução, da leitura pública e da divulgação dos clássicos… Cuidei do Português, que por aí anda a empobrecer-se tanto e tanto carece de bons amigos que o estimem…
Frequentei alguns ateliers de artistas estimáveis. Convivi com figuras proeminentes do neo-realismo (Mário Sacramento, Óscar Lopes, Fernando Namora, Alexandre Cabral, Álvaro Salema, Mário Braga, entre tantos outros, como Ferreira de Castro). Em 1962 (remoto ano!), ao entrar nas ficções, de um varandim de outra margem acusaram-me de mostrar maior pendor existencialista do que adesão à estética neo-realista que noutras páginas defendia. Acolhi o reparo na medida em que a eclosão do existencialismo literário ocorria entre nós ao mesmo tempo, mas isso não impediu a doação do meu espólio a este Museu, onde cabe no lugar que se vê.
Em suma, pouco tempo útil me sobrou para a criação literária de maior fôlego. Volumes de contos e crónicas são, julgo, o que pela quantidade sobressai na misturada da minha bibliografia (onde até figura um dicionário de autores). Por lá ficou, em amostra estratificada, um pouco de tudo, incluindo uns naipes de “histórias para crianças” – mais contos -, resultantes de incursão também encetada em meados dos anos ’80 que acompanhei com umas ideias ensaiadas sobre a matéria. Tudo isso foi decerto a mais “infantil” (e adulta, difícil, envolvente) “brincadeira” que pude experimentar.
Que fiz eu? Confesso que vivi, direi, tomando para mim o título da obra de Neruda que traduzi. Mas, vejamos: olha que confissão! O sonho chamou-me e pelo sonho andarei enquanto anima me restar, a exemplo de quantos temperam a vida com o seu grãozinho de loucura.
Cresci rodeado de livros e com eles (agora apenas com uns poucos escolhidos), quero continuar a viver. A viver e, felizmente, a resolver por fim uns problemas de coabitação. Livrei a casa do recheio das estantes, que o mesmo é dizer: acredito numa cultura viva e na função prestimosa das bibliotecas públicas. Que os livros, com cheiro ou sem cheiro, em papel impresso ou formato digital, cresçam, cresçam sempre e nos ajudem a crescer! [Na expo, com Erika Zavala -  do México um sinal / a brilhar em Portugal]

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-1

O texto anterior, inédito publicado pelo Museu do Neo-Realismo (V. F. de Xira) no livrinho ali referido, foi gesto com esta consequência: colocou-me perante um outro texto meu, igualmente inédito, também ali presente. O livrinho teve escassa tiragem, pelo que resolvo trazê-lo para aqui, dividido em dois posts.


Pessoas que tenho próximas sustentam que sou organizado, metódico. Repetem-me a opinião como se isso fosse um atributo raro, elogiável como a pontualidade que nos deixa à espera de quem a não tem. É certo que aprendi a caligrafar as letras na antiga escola primária escrevendo dentro das duas linhas mas cedo me habituei a ultrapassar as pautas azuis para salientar o poder das maiúsculas ou para desenhar as pernas dos pp e dos qq, letras pequenas com que se escreve “por quê”.
De facto, não me considero assim tão notadamente organizado, arrumadinho. Pensando no percurso existencial que fiz, vejo em mistura o que a norma dos percursos individuais separa com bastante nitidez. A mistura começa logo no período juvenil com a minha formação escolar: trabalhei estudando e longamente estudei, trabalhando.
Quer dizer, o trabalho foi a minha escola porque a Escola propriamente dita pouco trabalho me deu. Naquele tempo, que foi o meu tempo, aprendi fazendo e, pondo-me à prova, fazendo me fiz. Continuo a ser, evidentemente, o que sempre fui: um apagado e eterno aprendiz de tudo – do mundo, das ideias, da arte, da vida. A misturada que realmente me aconteceu na trajectória existencial com a preparação escolar e cultural, e logo depois com a literatura, o jornalismo, a participação cívica, continuou, continuou… Sou vizinho da Ria de Aveiro, gosto da caldeirada!
Para tudo o que me importava, não precisei de diplomas. Bastou-me querer e demonstrar na prática a competência real que prometia ou já possuía. Mas era o tempo, hoje incrível, em que a profissão jornalística não exigia curso ou formação escolar prévia (então inexistentes) e a criação literária era já o que continua a ser, a ilha do tesouro atreita a todas as abordagens.
Estou a ver ali na estante um volumezinho escrito por Carlos Ceia, professor universitário lisboeta, que põe o assunto na capa interrogando: “A literatura ensina-se?” Não se ensina, aprende-se.
Sobrou-me ousadia para expandir ainda mais a misturada. Transpus “a salto” diversas fronteiras de géneros consagrados, gostando de gerar híbridos onde deles sentia falta. Quem pode arriscar, por exemplo, uma definição cabal do que seja texto jornalístico ou texto literário?
A verdade é que a expressão escrita me cativou desde que me conheço. Quis experimentá-la, fazê-la toda minha para a amar. Derramei-me pelos seus diversos registos – o comentário ligeiro, o poema, a crónica, a ficção, o ensaio – para depois considerar, muito sinceramente, que estou no que escrevo. Aí me encontro. A pulsão da escrita associada à pulsão da leitura (duas ocupações solitárias, silenciosas) arredou-me de convivências festivas, camaradagens de grupo, cumplicidades. E não produzi senão migalhas, umas pequenas migalhas que, reunidas em monte, estarão longe de constituir Obra.
Quem assim se derramou, esmigalhando-se página a página, talvez desenhe um perfil. Aparecerá essa “obra” como “a sua vida” conforme a legenda da capa desta brochura sugere? Lembro neste ponto uma página de David Mourão-Ferreira (em Tópicos Recuperados, 1992, p 191) que distingue com especial agudeza, no plano dito da nossa “acção cultural”, duas “famílias” (assim Mourão-Ferreira as nomeia). Cito: “a [família] daqueles que vivem exclusivamente para a sua arte (quando não mesmo egoisticamente para a promoção ou a propaganda do que julgam ser a sua arte) e a daqueles que pelo contrário se entregam – quantas vezes com sacrifício de si próprios – ao serviço da Arte ou da Cultura em geral, no definido propósito de mais amplamente as fazerem usufruir por parte da comunidade a que também eles pertencem.”
David Mourão-Ferreira foi poeta, ficcionista, crítico literário, ensaísta, professor, além de divulgador de poesia, conferencista e, enfim, animador cultural de invulgar envergadura. Em sua homenagem, ponho aqui o trecho completo em foco: “Nem os primeiros, por via de regra, são os que se mostram mais exigentes com aquilo que fazem, nem os segundos os que menos têm para exprimir ou comunicar. Talvez possa dizer-se que uns são apenas o que são, enquanto os outros, além do que são, se impõem como homens de Cultura; e trata-se ainda, num caso e noutro, de algo que deriva e depende da estrutura moral dos indivíduos, do grau de percepção que manifestam ou não manifestam acerca das suas responsabilidades sociais – e, prioritariamente, da percepção e assunção dessas suas responsabilidades no próprio domínio da Cultura, em relação à própria Cultura.” [continua]

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Três poetas “de pedra”

Entre os poetas líricos temos alguns que, sendo como todos os líricos, se inclinam por vezes para a poesia social. São poetas militantes, marcadamente solidários com o povo, prontos para misturar a sua voz poética nos ardores das lutas colectivas em defesa das causas nobres. Os aplausos populares, vivos e entusiásticos, que os rodeiam contrastam de imediato com a sanha dos tiranos que os metem nas suas masmorras, os torturam e mandam para o exílio.
A um período especial de tiranias pertencem três poetas do século XX merecedores de especial evocação. O primeiro surge em Caracas, Venezuela, e ali ficou a avultar como herói nacional. Andrés Eloy Blanco (1896-1955) é o celebrado autor de Barco de Piedra, 1937, poemas compostos entre 1928-32 em diversos cárceres nacionais.
Aquele país, à semelhança de tantos outros na América Latina, conheceu então déspotas e tiranos, ditadores e carrascos, políticos e regimes detestáveis. O título do livro proclama, por sinédoque evidente logo bem recebida nos dois lados do Atlântico, que regimes execráveis não teriam futuro, depressa se afundariam. Por desgraça, nos anos ’30 e posteriores, não eram os povos latino-americanos os únicos atingidos pelos horrores da repressão ditatorial permitida pela abolição da liberdade e da democracia.
A metáfora contida no título de Andrés Eloy Blanco foi retomada em seguida por outros poetas também erguidos contra a tirania e a barbárie. Celso Emilio Ferreiro (1912-1979) publicou Longa Noite de Pedra em 1962, em protesto contra o regime franquista que sufocava a sua Galiza natal, forçando-o ao exílio na Venezuela. A “noite de pedra” seria agora a situação dos Galegos oprimidos por um ditador que maltratava o seu próprio povo.
Uma outra obra de Celso Emilio Ferreiro, galeguista assumido, evocarei a propósito (extraindo a imagem da capa do site do poeta). É Autoescolha Poética, publicada por Razão Actual, no Porto, em 1972, recolha de poemas de 1954-1971. Aquela minha editora editou obras de outro poeta galego, Manuel Maria [F. Teixeiro] na norma galega então vigente.
Mas, entretanto, aos Portugueses, sob Salazar, não sorria melhor sorte. Luís Veiga Leitão (1912-1987) publicou Noite de Pedra em 1955, depois aumentada e reeditada em Ciclo de Pedras, 1964. Neste ponto, importaria averiguar quão original terá sido cada variante do título inicial e se foi inicial, mas é trabalho que excede em extensão o braço que isto escreve. Porém, assim se consagrou a pedra, ou noite de pedra, como metáfora de cárceres políticos ou ambientes repressivos, emparedados e frios como os regimes ditatoriais que os utilizam… então e sempre. [Capa da 1ª ed. de Barco de Piedra, comprada em 1957 - Caracas.]

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Um “Som” com 30 anos

Os últimos três “posts” pedem umas palavras de explicação. Ao reeditarem três páginas extraídas de um livro publicado em 1984, interromperam o meu costume de colocar aqui textos inéditos. Creio no entanto que terão tido o sabor de “novos” para muitos leitores.
O livro é de minha autoria, naturalmente, conforme indica a nota inserida no fim de cada página. É o Som de Origem – arte d’escrita, publicado em Lisboa há trinta anos. Então, porque chegaram agora os “sons” a esta coluna?
Explico. Com os três textos (incompletos, obedecendo à regra aqui vigente) quis aguçar o apetite dos leitores para a obra na altura em que ia colocá-la como ebook na lista de “Os meus livros – links”, portanto junto das outras minhas nove obras já presentes na plataforma ISSUU. Realmente, continuo a gostar dela, o que vale dizer que continuo a prezar o que publiquei há três dezenas de anos.
Som de Origem está, desde há uns dias, disponível para os leitores. Foi preciso mudar o suporte do escrito (pois, recorde-se, em 1984 os livros ainda eram entregues dactilografados aos editores; computadores e disquetes surgiriam nos anos seguintes). E foi assim que tive de pegar no livrinho impresso (só tem 80 páginas) para digitar o texto e elaborar a edição digital.
A edição é revista, tal como as outras nove que a acompanham (quer dizer, expurgada de uma ou outra falha de estilo, posto que, por certo, ainda não perfeita), portanto em condições de ficar e perdurar. A tarefa de a reescrever, entretanto, trouxe à memória a sessão (única) do seu lançamento.
Recordo-a com prazer. Decorreu no Porto, na galeria Nazoni, e Som de Origem e eu tivemos a honra de apresentação pelo saudoso Oscar Lopes. Um actor de renome leu na sessão umas páginas emotivas.
O livrinho teve um razoável acolhimento mas nada impediu que resultasse num projecto falhado. Terei ambicionado voo alto em demasia? Pretendi construir um “romance” experimental, com textos algo cronísticos ensaiando um restauro da sensorialidade em plenitude quando a humanidade caía no embotamento.
Creio que o livrinho conserva a actualidade que no momento tinha, se acaso essa actualidade, entretanto, não recrudesceu dramaticamente. Apreciem-no agora os leitores na plataforma de leitura grátis onde estão os dez títulos de que sou autor – volumes de ficções, crónicas, estudos e ensaios, etc. –, mais três títulos de vária autoria com entrada diversa, já antiga. Nota final: mantenho na Amazon doze títulos de ficções “para crianças” cuja encomenda, em edição normal impressa, os interessados terão que pagar.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

É escritor porfissional?


Nunca me apeteceu ser ou vir a ser escritor profissional. É, pois, com alguma estranheza que me deparo com praticantes da escrita que afirmam, e logo nos seus começos, que querem ser “profissionais”. Por outras palavras, querem viver exclusiva ou principalmente do que as letras lhes rendam.
Aspiração legítima. O trabalho da criação literária, sendo diferente e deveras exigente, é trabalho a remunerar como qualquer um outro. Mas poderá ser mesmo “profissão” regular?
Tenho dúvidas. Sempre tive. Não consigo conceber a criação literária como ocupação diária com horário marcado, fins de semana, período de férias…
Concebo tão só o aparecimento de um autor subjugado por uma força que o amarra a um esforço maior do que a sua vontade e que ele realiza, sem ter outra saída, envolvendo a sua totalidade humana como quem se liberta da febre de uma pulsão imperiosa. Assim, mais ou menos, costuma sair a Obra com marcas de génio. Agora o contraste: um autor “profissional”, cultor de oficina, hábil em recursos de “escrita criativa”, que trabalha para lançar no mercado a cada ano obra(s) com quatrocentas ou quinhentas páginas…
Lembro muitas vezes, em conversas pessoais, que fui para o jornalismo porque não via outra profissão mais aceitável. No jornal praticaria também a escrita e eu já andava “naquele tempo”,
desde que publicara os livros iniciais, há bons anos, a colaborar na imprensa então enriquecida com suplementos literários. A literatura nem com cantos de sereia me daria para viver.
Era então capaz de gostar da literatura ao ponto de a amar. Amar deveras, sinceramente. E continuo sem mudança.
Creio mesmo que é preciso começar cedo, como leitor, a gostar fortemente de literatura. A distinguir e a saborear a expressão literária em prosas e poemas onde a arte da escrita fulgure com belos esplendores. Não é verdade que o autor, como escritor, será o que foi (e será sempre) enquanto leitor? [Imagem: pintura de porta em rua do Funchal, Madeira.]

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Questionário de Proust

Nos anos '60 esteve bastante em voga, nos meios literários, um Questionário de Proust constituído por trinta perguntas supostamente capazes de captar o perfil essencial do autor que lhes respondia. Parece que o dito ainda hoje tem uso e foi isso que me lembrou de que outrora também eu fui na onda. Topei com o esquecido texto que, nesta lonjura temporal, não lembro onde terá aparecido. Resgatado do limbo, aqui fica.

1. O que é para si a felicidade absoluta?
- Um conceito inspirado no Absoluto. Arrumou-o a filosofia no outro lado da lua.
2. Qual considera ser o seu maior feito?
- Ser quem sou.
3. Qual a sua maior extravagância?
- Acreditar tantas vezes na sinceridade alheia.
4. Que palavra ou frase mais utiliza?
- Equilíbrio. Harmonia. Paz.
5. Qual o traço principal do seu carácter?
- A procura da simplicidade. É tão prática!
6. O seu pior defeito?
- Os meus excessos.
7. Qual a sua maior mágoa?
- Contemplar o espectáculo das carneiradas a seguir atrás dos pastores a caminho do açougue.
8. Qual o seu maior sonho?
- Viver entre pessoas verticais, lúcidas, independentes.
9. Qual o dia mais feliz da sua vida?
- Continuo a esperá-lo…
10. Qual a sua máxima preferida?
- Máxima mínima: responde por ti, a mais não és obrigado.
11. Onde (e como) gostaria de viver?
- Em qualquer Cidade do Sol, na Utopia prometida.
12. Qual a sua cor preferida?
- O vermelho, cor do arco-íris.
13. Qual a sua flor preferida?
- A rosa que vai florir amanhã de manhã apesar das fúrias à solta e as outras que se anunciam.
14. O animal que mais simpatia lhe merece?
- O Homem maltratado.
15. Que compositores prefere?
- Beethoven, Wagner, Mahler, Mozart e… o rol é extensíssimo.
16. Pintores de eleição?
- Jerónimo Bosch, Rembrandt, Velázquez, Cèzanne, Picasso, etc., etc.
17. Quais são os seus escritores favoritos?
- Nos extensos pomares das selectas, como escolher apenas umas árvores e uns frutos (autores, obras) de sabores (abordagens, expressões) tão diversos e ricos – no nosso país, no espaço lusófono e na Literatura Universal?
18. Quais os poetas da sua eleição?
- Portugueses: Camões, Pessanha, Cesário, Pessoa, etc., etc.
19. O que mais aprecia nos seus amigos?
- O calor humano, a amizade, a dádiva imaterial.
20. Quais são os seus heróis?
- As pessoas que se deparam diariamente com feirantes de microfone à boca e, sem os ouvir, passam ao largo.
21. Quais são os seus heróis predilectos na ficção?
- Ulisses, Jean Valjean, Jean Christophe, Demian e, entre outros, o mago que tocando gaita levou para longe da Cidade a praga dos ratos.
22. Qual a sua personagem histórica favorita?
- Buda, na companhia de Gandhi, Marx, Freud, Galileu, Einstein e de todos quantos lutaram por alguma libertação.
23. E qual é a sua personagem favorita na vida real?
- No tempo antigo, o escravo sem nome que colocou a última pedra (e depois morreu) no zigurate erigido para glória do soberano cujo nome ficou esquecido; no nosso tempo, o Che.
24. Que qualidade(s) mais aprecia num homem?
- O carácter, a dignidade humana, o sentido ético, a educação.
25. E numa mulher?
- Idem, mais a beleza da sua feminilidade.
26. Que dom da natureza mais gostaria de possuir?
- Todos.
27. Qual é para si a maior virtude?
- A modéstia honrada e honrosa, sem artificialismo cabotino.
28. Como gostaria de morrer?
- Tranquilamente, num fim de tarde, a ver o pôr do sol no mar… e de ser logo incinerado.
29. Se pudesse escolher como regressar, quem gostaria de ser?
- Alguém capaz de emendar o mundo. Definitivamente!
30. Qual é o lema da sua vida?
- Uma vida sem lema mas com amigos convivenciais, merecendo-os; vivendo o mais possível de acordo comigo mesmo e com a natureza de que faço parte.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

E sempre sem diplomas!

Pegando na deixa da crónica precedente, devo notar que temos por aqui uma outra crónica de sucesso comparável. É a «Sem diplomas» (25-07-10), que tem sequência na «Pois, sem diplomas!» (04-07-11). O espanto, talvez mesmo o escândalo de certos leitores provinha claramente do facto de me apresentar sem licenciatura e de, sem pudor, dir-se-ia com um orgulho mal disfarçado, assumir a condição de autodidata.
As duas crónicas ficaram recolhidas no segundo volume de E Foi Assim por nelas se espelhar o que se me afigura um dos mais vivos paradoxos do nosso tempo. Cursos superiores com licenciatura multiplicaram-se ao abrigo da democratização do ensino e, como se sabe, lamentavelmente, até ficaram ao alcance de quem tem pressa e poder para obter o apetecido diploma em universidade carecida de receitas. Todavia, todos reconhecem também que, contra as aparências, esse avanço parece não corresponder a grande melhoria do nível de cultura geral dos portugueses...
Nesta situação, fazem-se ouvir os idosos que, vindos de outrora - quando valia a valer a capacidade do indivíduo afirmada na prática e, portanto, valor traduzido em ato -, encaram com reserva ou suspeita o ensino superior, desdenhando dos canudos de licenciados dos tais ditos «de aviário». Acham preferível a escola antiga, onde se aprendia com aplicação e disciplina. Radicam-se na atitude que acredita nos méritos demonstrados pela pessoa concreta e não nos seus diplomas. 
É, quer-me parecer, atitude prudente e defensável. Nas crónicas supracitadas referencio alguns casos de escritores que se afirmaram na nossa Literatura desprovidos de canudo apropriado. Mas quem, recuando um pouco no tempo, lance o olhar para lá de 1930 e entre no século XIX, bem pode estarrecer.
Abundam os casos frisantes. Por exemplo, Rodrigues Sampaio (António), Rebelo da Silva (Luís Augusto) ou Oliveira Martins não passaram por universidade e, escrevendo livros ou na imprensa, deixaram memória cintilante no liberalismo luso. Saboreie-se agora a surpresa maior: Camilo Castelo Branco, consagrado mestre da língua vernácula, e Alexandre Herculano, poeta, romancista e egrégio fundador da nossa historiografia, formaram-se igualmente sem universidade.
Quem o lembra é nada menos que Sampaio Bruno (1857-1915), outro autodidata, portuense espantoso que sabia latim, inglês, francês, italiano, espanhol, além de possuir profundos conhecimentos de filosofia, religião, matemática, música. Recordei há semanas o seu livro A Ideia de Deus onde o tema é equacionado. Então, muito a propósito, de Eça de Queirós, bacharel, José Pereira de Sampaio (Bruno em memória de Jordano Bruno) evoca a página queirosiana que fala dos quatrocentos mil bachareis portugueses capazes de requererem nestes termos: «Diz Fulano de Tal, bacharel formado em direito, não sabendo ler nem escrever, pela mão dum pedreiro, que este firma a seu rogo, etc.»