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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Martha Nussbaum: autora off-side?


Martha Nussbaum (na foto) nasceu em Nova Iorque em 1947. É autora prestigiada e notória de numerosos livros sobre filosofia, justiça, educação, desenvolvimento e ética, entre outros relacionados com as ciências sociais, área em que o prémio Príncipe de Astúrias a distinguiu em 2012. Realmente, muitos desses livros estão vertidos para espanhol - tal como o abaixo citado (ebook) - mas, veja-se, apenas um saiu em Portugal!
Foi o caso de Educação e Justiça Social, traduzido por Graça Lami e editado na colecção Pedago, em Mangualde, em 2014. A BN regista também um texto policopiado, de 2006, intitulado “O conceito de justiça poética em Martha Nussbaum”, por duas autoras. Tão escasso resultado desperta atenção e levanta a interrogação: porquê?
Martha formou-se em Harvard, onde ensinou filosofia e literaturas clássicas, depois mudou para a Universidade de Brown e, por fim, para a de Chicago. Tornou-se desde logo referência em foco ao publicar Aristóteles, De motu animalium, em 1978. As suas obras posteriores, focadas na filosofia e no direito, incluem Sexo e Justiça Social, obra de 1998, Mulher e Desenvolvimento Humano, 2000, e Emoções Políticas: porque o amor importa à justiça, 2013
Desde os anos ’80, Martha colaborou com o economista Amartyn Sen, prémio Nobel, sobre temas ligados a desenvolvimento e ética. Vale a pena citar uma outra obra significativa da autora: O Ocultamento do Humano: repugnância, vergonha e lei, de 2004. Estes títulos aparecem aqui com os originais traduzidos para melhor explicitação.
Assim se levanta, em torno desta autora, uma dúvida: estará ela off-side? Com um livro apenas editado em português (e decerto para fins pedagógicos, livro que nem terá atingido o mercado), a estranheza do caso justifica-se. Onde estará escondido o motivo que impede Martha Nussbaum de ser lida em Portugal?
Motivo tão singular talvez possa encontrar-se no texto saído na revista da Unesco “Courrier Internacional”, edição portuguesa nº 175, Setº, 2010. Condensa o primeiro capítulo do livro Not for Profit: Why Democracy Needs Humanities, ed. 2010 (Não por Lucro: Como a Democracia precisa de Humanidades), cap. “Uma crise planetária da educação” traduzido por Ana Cardoso Pires. As primeiras linhas bastarão para nos esclarecer. Escreve Martha: “Atravessamos actualmente uma crise de grande amplitude e de grande envergadura internacional. Não falo da crise económica mundial iniciada em 2008; falo da que, apesar de passar despercebida, se arrisca a ser muito mais prejudicial para o futuro da democracia: a crise planetária da educação.
Estão a produzir-se profundas alterações naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos jovens e ainda não lhes aferimos o alcance. Ávidos de sucesso económico, os países e os seus sistemas educativos renunciam imprudentemente a competências que são indispensáveis à sobrevivência das democracias. Se esta tendência persistir, em breve vão produzir-se pelo mundo inteiro gerações de máquinas úteis, dóceis e tecnicamente qualificadas, em vez de cidadãos realizados, capazes de pensar por si próprios, de pôr em causa a tradição e de compreender o sentido do sofrimento e das realizações dos outros.
De que alterações estamos a falar? As Humanidades e as Artes perdem terreno sem cessar, tanto no ensino primário e secundário como na universidade em quase todos os países do mundo.”
Porque será que as Humanidades e as Artes ficaram off-side? Martha, atingida, aponta o motivo: são “Consideradas pelos políticos [como] acessórios inúteis”!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Governo de multimilionários


O termo perdeu força, devia ser actualizado. Um milhão de euros ou de dólares já não chega para colocar quem o possui na, outrora invulgar, categoria de ricos. Verdadeiramente ricos são agora, como bem sabemos, os donos de incontáveis milhares de milhões, tantos, tantos, e a crescer, a crescer…
Girando com rapidez, as rotações centrípetas do capitalismo esvaem as periferias em direcção ao eixo central, onde se acumulam. Os Estados Unidos são o eixo económico-financeiro do Ocidente sendo também a nação mais poderosa e rica pátria (embora a mais endividada) de quase todos os maiores multimilionários que este mundo criou; pátria, também, e decerto não por acaso, onde o seu novo presidente eleito, o multimilionário Donald Trump, junto com os membros do seu gabinete, somam tanta riqueza multimilionária que tal Governo será recordado, sem dúvida, como um caso histórico fenomenal metido na Casa Branca. Novidade estreme é, porém, a vontade súbita que os senhores gerentes de tão colossais fortunas se disponham a governar.
Prometem governar a nação federal conforme governam as suas empresas - bancos, fundos financeiros, investimentos, marcas transnacionais. Mas será isso possível, incluso com a celestial ajuda de todos os santos? De facto, os multimilionários administram as suas empresas orientando-as de maneira a aumentarem os lucros; ora, feitos ministros (ou “secretários”, como por lá se usa), se vão governar tal qual, não irão servir os cidadãos, apenas aumentarão os lucros…
Todavia, a entrada de tantos multimilionários na governação estado-unidense é novidade apontada num outro sentido. Então já não lhes interessam mais as reuniões do Clube Bilderberg, querem mesmo liderar o órgão cimeiro político-administrativo? Isto é, vão dispensar a cambada do sistema bipolar republicano-democrata e mandá-la para a reforma?!
Ouviram? Um estouro aterrador percutiu nas paredes e nos tímpanos dos presentes anunciando o Diabo, que surgiu no palco envolto numa nuvem de fumo. Mostrou o seu jogo.
Os multimilionários são já os donos disto tudo. E sabem tudo. Conhecem as regras do sistema, chega a hora grande de os empresários, homens de colossais negócios, substituírem políticos, diplomatas, jornalistas e arautos de regulamentações incómodas.
Empresários sabidos, sem dúvida. Até sabem o que pensamos, consumimos e fazemos, quer dizer, todos nós, os milhões de entregues à americanização e ao consumismo que em cada país frequentamos os centros comerciais. Naquelas suas mãos concentram terras férteis e recursos hídricos que produzem os alimentos e os artigos que as populações urbanas se habituaram a consumir: bananas e calças, livros e cereais, crédito e vinhos, fotocópias, televisores e smartphones tal como água potável e o oxigénio que respiramos (bens esgotáveis, que se valorizam).
[Pintura de Iman Maleki, artista híper-realista iraniano.]

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Em nome da Democracia

Está visto, a Democracia não é como a pintam quantos a erguem como bandeira para remar até à ilha dos seus amores. O sistema democrático pode aparecer em certos momentos, aqui e ali, com geometria variável, sem ofender a consigna básica forjada em Paris pelos revolucionários da Comuna. Não pode é perder ou deixar subverter a consigna suprema que a identifica como sistema assente no poder do povo, pelo povo e para o povo.
Os movimentos políticos de direita sempre quiseram colorir-se de algum matiz democrático, isto é, sempre quiseram afirmar-se “democráticos” por mero oportunismo demagógico. No fim de contas, todas as políticas e todos os partidos reivindicavam o rótulo nas suas propagandas e estratégias eleitorais ainda que beijassem a mão à minoria social e penalizasse duramente a maioria popular. Ser “democrático” acabou por soar tão vulgar como um lugar-comum, nada a levar a sério.
Porém, a irrupção dos alegados populismos na Europa e na América acordou as inteligências bem-pensantes dos cosmopolitas e outras figuras das elites ocidentais para o perigo nascente. Continuam a defender a globalização (ou seja, a liberdade de comércio para fruição das empresas transnacionais, bancos e fundos financeiros omnívoros; logo, não promove a interdependência positiva das nações) e a Comunidade Europeia mas confundem líderes ditos populistas de direita radical com líderes de esquerda autenticada. Confusão nada ingénua, muito lamentável.
Um sistema pratica a democracia na medida em que, realmente, outorga o poder efectivo à maioria dos cidadãos cuja vontade teve expressão política em liberdade. Acusar de “populismo” um líder que se dispôs a escutar os anseios e apelos populares e sai vitorioso, com maioria eleitoral, é propaganda antidemocrática, argumento ilegítimo e balofo. Assim se explicam as estranhezas que tornaram a surgir com a recente eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, não com base na contagem dos votos populares mas sim na soma de uns 280 votos dos Grandes Eleitores estaduais, apenas!
É, portanto, na expressão da vontade popular (quando erra aprende com o erro) e na consequente concretização prática das reformas, revolucionárias quando necessário, que poderemos encontrar o índice democrático presente e envolvido. É, enfim, o sistema (denegrido, suspeitoso) do povo, para o povo e pelo povo. Autêntico, desnudado, sem rótulos enganadores ou roupagens “democráticas”.
Vejamos. Uma democracia (é o que mais está a faltar; abunda, sim, a desigualdade – e para onde foi a fraternidade humanista?), bem desenvolvida, pode avançar até atingir o socialismo integral completo - essa magnífica utopia. Será a realização da temida democracia directa que, qual vento gélido, eriça o pêlo a tantos fervorosos “democratas” de aviário?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A cultura do decrescimento

Serge Latouche, economista e pensador francês, distinguiu-se na defesa de uma causa impopular: a cultura do decrescimento. É autor de vários livros em que justifica as suas ideias por sinal marcadas pela influência recebida de François Partant, outro economista francês. De facto, Latouche co-fundou e dirige La ligne d’horizon, plataforma dos Amigos de Partant dedicada à difusão das suas teses.
Eu apoio, desde a década de ’70 do século passado, a bandeira do decrescimento que, como todos sabemos, se mantém desde então sob rigoroso apagamento. Porém, alguns livros de Latouche foram publicados em Portugal e também no Brasil. Não há dúvida, paga-se um preço nada razoável por se ser crítico do consumismo, do crescer por crescer, porque, para este autor, o crescimento ilimitado é incompatível com um planeta limitado; logo, quem tal diz, “é louco ou é economista”.
O autor pede uma descolonização do nosso imaginário de consumidores compulsivos. Afirma que “a verdadeira riqueza consiste no pleno desenvolvimento das relações sociais de convívio num mundo são”. Ora este objectivo “pode ser alcançado com serenidade, na frugalidade, na sobriedade, até mesmo com uma certa austeridade no consumo material, ou seja, aquilo que alguns preconizaram com o slogan gandhiano ou tolstoísta da simplicidade voluntária.”
Como haveríamos de estranhar o prolongado apagamento das ideias de Serge Latouche (n. em Vennes, 12-01-1940), que o mesmo será dizer da cultura do decrescimento? Ele vai ao ponto de contrariar a ocidentalização do planeta… Em suma, puxa para um lado e o mundo vai avançando para o outro.
Registo agora um caso pessoal intrigante. A Universidade Estadual do Sudoeste Brasileiro indica o meu nome como tradutor da obra Introdução à Cultura do Decrescimento, de Latouche e que a edição se deveu, em 1973, a Publicações Europa-América. Nessa obra se terá baseado um curso de extensão transdisciplinar cujo programa a Universidade transcreve. Ora eu tenho memória (remota!) de algo semelhante; isto é, sem o poder afirmar, acho que traduzi realmente para a PEA, naqueles anos, diversas obras, uma das quais com o tema versado por Latouche, mas o catálogo geral da BN não a regista e eu não a tenho em casa. Aliás, o tema foi aqui abordado, em "Enfim, o decrescimento»", 01-03-2009.
As primeiras edições portuguesas deste autor são recentes (da Piaget e de Edições 70), portanto muito posteriores a 1973. Como explicar, esclarecer, entender isto? Poderá a ajuda de um leitor benévolo e amável esclarecer o enigma?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Canção da solidão radical


O nosso tempo puxa pelo radical. Parece ter perdido a noção do equilíbrio, está aberto a todos os extremismos. Não o demonstra apenas o que cada um de nós observa no seu dia-a-dia, agora até uma canção popular o exprime.
Agora? Não. Desde 1991, ou seja, há quinze anos que o país anda a ouvir a canção “Nasce selvagem”.
Essa canção está no CD “Palavras ao vento” do grupo Resistência e continua a integrar as playlists em voga, de maneira que percorre os pátrios ares. Mas a letra, musicada com inegável brilho, veicula uma mensagem atroz, pesada, intragável. Declara, ostensiva e rotundamente, o individualismo mais irredutível, feroz, irremediável.
A mensagem não se limita a observar uma certa marginalidade social, avança para mais longe; recomenda e aconselha: “Vive selvagem / E para ti serás alguém / Nesta viagem”.
Explica o porquê da opção: “Mais do que a um país / Que a uma família ou geração / Mais do que a um passado / Que a uma história ou tradição / Tu pertences a ti / Não és de ninguém // Mais do que a um patrão / Que a uma rotina ou profissão / Mais do que a um partido / Que a uma equipa ou religião / Tu pertences a ti / Não és de ninguém”.
Se esta mensagem pretende dirigir-se a um (ou uma) jovem, quer persuadi-lo de que se encontra de facto no mais completo desgarramento, numa absoluta solidão. Não pertence a nada, sejam pais, irmãos, amigos, parentes. Não tem pátria, tradições, história ou religião e, menos ainda, profissão, clube desportivo, sindicato, partido.
Que espécie de ser humano, assim concebido, isto é, assim tão despojado de atributos humanistas, poderá ser este, radicalmente separado de todas as redes de pertenças que o definem socialmente? Despojado de uma dimensão social e, por decisão própria, feito “selvagem”, estará tal ser humano preparado para viver enfrentando um mundo eventualmente ainda mais selvagem? Pior: esse “selvagem” terá de viver dentro na sua “selva” e, muito mais, consigo mesmo!
Nada resta aqui do lembrado “selvagem” de J. J. Rousseau, “bom” porque ainda se mantinha integrado na natureza em que nascera. A canção “Vive selvagem” insiste na sua mensagem dissolvente, repetindo: “Quando alguém nasce, / Nasce selvagem / Não é de ninguém”. Talvez a quadra natalícia seja apropriada para questionar pais irmãos, amigos, partidos, associações culturais, filantrópicas, desportivas e etc.: uma nova geração nasceu e cresce ouvindo isto – não há nadinha, influência nenhuma, a reportar?

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Elites em falência

Finalmente, a acumulação de elementos que anunciam a eclosão de uma tempestade perfeita a desabar sobre o Ocidente começou a ser notada. Vozes de bom aviso apontam semelhanças da situação que está a desenhar-se após a eleição do novo presidente estado-unidense com o período histórico vivido nos anos ’30 do século XX. Um calafrio percorre as bolsas de meio mundo.
Ora eu, nascido em 1930 (adolescente no fim da Segunda Grande Guerra, que acompanhei ouvindo a BBC e lendo jornais), julgo ter sentido ainda alguma coisa da Grande Depressão no pós-guerra. Lembro também a Europa de então: fascismo e nazismo, ditadores em Portugal, Espanha, Itália, Alemanha; direitos fundamentais banidos, atraso, repressão, desemprego, miséria, fome. Os intelectuais queriam-se deveras ao lado do povo mas naquele tempo as massas populares estavam irremediavelmente entregues a si mesmas: não havia redes sociais, qualquer fonte de informação alternativa.
Eis como os anos vividos sob os terríveis efeitos do Crash se distinguem do nosso tempo. As elites ocidentais distanciaram-se largamente das massas populares, no Reino Unido votando o “Brexit”, sentando na Presidência dos EUA Donald Trump e, na Europa, apoiando partidos, políticas e líderes de extrema direita. Assim se compôs um quadro inquietante, alarmista, que desperta por fim para a necessidade urgente de mais economia, mais economia – e como?
As elites (intelectuais, políticos, académicos, cosmopolitas) traçam neste quadro a linha de uma clivagem fundamental: aderem à globalização, à União Europeia e à moeda única; são-lhes indispensáveis os EUA e a NATO à “defesa do mundo livre”. Repudiam, portanto, a saída do Reino Unido da EU e a política antiglobalização de Trump, contrária às “parcerias” comerciais (que convidam as transnacionais a deslocarem-se em busca de baixos salários e transforma a nação antes exportadora em importadora). Neste “proteccionismo” dito populista encontrou Trump o seu maior trunfo eleitoral.
As elites não aderem à direita nem à extrema esquerda, preferindo claramente não arriscar navegando ao centro no mainstream. Misturam populistas e líderes de esquerda num mesmo saco (em lamentável confusão com ditadores) Al Sissi, Recep Erdogan, Putin, Xi Jinping, Kin Jong-un ou Nicolás Maduro. Estarão hoje estas elites verdadeiramente ao lado do povo?
As massas populares (a maioria que elege políticos, partidos e governos, onde tem raiz a democracia que tantos reduzem a relíquia-miniatura a exibir na lapela) estão desligadas dos intelectuais virados para a globalização; sentem a pátria debaixo dos pés, acreditam ora em populistas de direita, ora de esquerda. As elites preferem olhar para o alto, levitam na alta cultura, já nem se lembram do hino nacional. Estão em falência.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A classe média existe!


Escuso de me repetir, é a realidade dos factos que agora, bem melhor do que eu, o demonstra. A classe média existe mesmo (aí temos em prova o resultado das eleições nos EUA), votou em massa e, de acordo com o sistema eleitoral vigente, levou de vencida Donald Trump até à Casa Branca. Mas os factos demonstram mais: o povo americano votou percebendo que a globalização o empobrece e que muito melhor será a nação começar a fechar-se em si própria.
Bastantes sectores da classe média europeia já sentiam na pele que a globalização trazia a austeridade e todos os sacrifícios impostos pelas políticas do neoliberalismo, a subordinação da União Europeia às estratégias da especulação financeira mundial. Talvez agora decidam virar também as costas às suas elites: os seus cosmopolitas e outros intelectuais. Provavelmente virão a tê-los na consideração liminar em que já têm os políticos e os partidos que se revezam nos governos: tudo escumalha mentirosa, não merecedora de confiança e por vezes corrupta.
Inquietem-se, portanto, os adversários do populismo. Venceu nos Estados Unidos, onde a vitória do candidato independente à Presidência ficou a dever-se ao imenso apoio que recebeu dos media… populistas. Ora o populismo está em franca expansão pela Europa e pelo mundo.
Na verdade, as populações estão fartas de partidos alternantes, políticas demagógicas, dificuldades de vida inaceitáveis. Podem ler poucos jornais, ouvir pouca rádio, mas vêem televisão. A informação que passa pelos canais noticiosos envolve-se quase sempre muito mais de propaganda que informação, abundando em espectáculo, mero espectáculo para entreter crianças de todas as idades.
Donald Trump soube interpretar o sentir profundo das massas populares, suas tradições conservadoras, hoje receosas das mudanças sempre para pior, ou seja, que o eleitorado, dividido, queria ouvir quem o atendesse. Arriscou-se a negar o sistema em bloco, foi ao ponto de atribuir aos próprios americanos o atentado dos aviões contra as torres gémeas nova-iorquinas, a propor boas relações com a Rússia, o Irão… Com ele, a política como espectáculo atingiu novo limite, o que deliciou com opíparos fartotes os media.
Os dados estavam lançados e os resultados do jogo deram no que deram: Trump é o presidente eleito. Prometia políticas ora com visos ora de esquerda, ora de direita, mas um cavalo de Tróia está postado à porta da cidade.
Ninguém vai acreditar que Trump caia em beliscar interesses de milionários espertos como ele. Seguirá, portanto, políticas de direita, as tais que alvoroçam multidões de manifestantes em cidades estado-unidenses acentuando a deriva ideológico-política que se dissemina pela Europa e em outros espaços. Temos a dúvida: até que ponto o designado underdog irá unir a sua palavra à acção?

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Os cosmopolitas avançam

Multiplicam-se velozmente. Aparecem, abundantes, nos aeroportos, cruzam os céus a caminho de Londres, Nova Iorque, Paris, Tóquio, Vancouver… e quando regressam já estão de partida. São viajantes incansáveis, autênticos cosmopolitas.
Encontram interlocutores em qualquer cidade, têm estatuto académico, brilham em colóquios e areópagos internacionais onde se engendram grandes estratégias, conhecem os principais hotéis e museus do mundo. Já participaram de um governo ou estão em fila de espera, e falam fluentemente pelo menos três línguas. A primeira é a novíssima língua franca (o inglês, naturalmente), dado que os cosmopolitas se querem sintonizados com o quotidiano nova-iorquino e, o mais possível, o pulsar da potência americana.
São defensores aguerridos da globalização em curso, de modo que apoiam o famigerado TTIP que pretendia pôr as multinacionais americanas a mandar discricionariamente nos países europeus, tal como aquele mesmo tratado de comércio, na versão CETA, entre Canadá e União Europeia, que acabou desgraçadamente por ser assinada. Coerência deles: recusam nacionalismos, fronteiras, alfândegas.
Parece que pretendem o mundo inteiro aberto e livre de peias para os grandes monopólios transnacionais se expandirem e poderem agir à vontade. Vêem tão alto e tão longe que não enxergam a inovação que vai arruinar em cada país a agricultura, as comunidades rurais, as pequenas e médias empresas, o pequeno comércio, fazendo disparar o desemprego, a pobreza e a miséria. A sua visão é a de quem vê o mapa da janela dos seus voos a jacto.
Os cosmopolitas evocam talvez uns antigos “cidadãos do mundo”. Mas a comparação falha porque os cosmopolitas aparecem desprovidos dos “idealismos utópicos” que impregnavam os “cidadãos” em meados do século XX. Contraste marcante: o humanismo de uns foi substituído pela tecnocracia nos outros.
Sabem a cartilha toda escrevendo e publicando crónicas, artigos, ensaios e conferências sobre questões cruciais. Ninguém dirá que têm ideias políticas de direita e, ainda menos, de esquerda. São por uma democracia de largo espectro, que se basta com dois partidos alternantes no poder e algumas reformas cosméticas.
Curioso e sintomático: questionam a existência da pequena burguesia, ou classe média, que não reconhecem corporizada na maioria da população nacional e base eleitoral legitimária das políticas governamentais, mas atestam a existência histórica da classe burguesa. Não se sabe o lugar certo onde sentam o clero e a nobreza (de sangue ou a nova, dos himalaias de riqueza). Talvez o mundo cosmopolita se componha e complete somente com burguesia e povo – o plebeu, a ralé dos patrícios do império romano…

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A “Universidade” de Gorki

capaGorki.jpgAgradam-me as lombadas de tantos livros que mantenho em casa ainda à espera de leitura. São dos mais escolhidos: passaram por clivagens sucessivas e estão comigo há longos anos para os ler ou reler. Eis porque só agora, com todas as delongas do tempo, posso chegar a este volume saído em Lisboa há mais de meio século.
É A Minha Universidade, de Máximo Gorki, volume de 322 pp editado em 1963 por Estúdios Cor, tradução de Patrícia Joyce. Decerto vacilei em demasia entre, por um lado, a previsão de uma obra com forte cunho testemunhal e autobiográfico (logo, porventura menor) e, por outro lado, o prestígio mundial do Autor. Pude confirmar: o lugar de Gorki encontra-se ali bem patenteado no fulgor da sua prosa.

Na verdade, a crítica enaltece o escritor de A Mãe e de A Confissão pela força com que comunica o que é natural na vida do mundo e a beleza do que é espontâneo com alguma transfiguração da realidade. Ora Máximo Gorki (Nijni-Novgorod, 28-03-1868 / Moscovo, 18-06-1936, com 68 anos), sem pais, começou muito cedo a vagabundear, que é como quem diz, viajar. Foi nesse contacto com a realidade nos ambientes sociais populares que teve, ainda adolescente, a sua “universidade” e se animou a publicar romances apenas com 15 anos de idade.
Quando esta obra saiu (em três tomos: A Minha Infância, Ganhando o meu Pão e este), em 1912-13, já era autor consagrado, com uma extensa bibliografia (teatro, conto, romance), conhecera a prisão e o exílio após tentame político contra o czar e viajara por Ásia, Europa e América. Em suma, estas páginas dão ao leitor a plena maturidade do escritor na figura de jovem desvalido mas ansioso por crescer e aprender. E o mundo foi para ele, realmente, uma universidade aberta.
Aprendeu que, “em quase todos os homens, coabitavam ineptamente e em desordem, as contradições, não só entre a palavra e a acção, mas também entre os sentimentos” (p.94). Ora, para os seus amigos “o povo era a incarnação da sabedoria, da beleza espiritual, da bondade do coração, um ser quase divino e único, depositário de tudo quanto era belo, justo e grande” e ele só via carpinteiros, estivadores fluviais, pedreiros, e não via esse povo mirífico, tão superior.” Pelo contrário, parecia-lhe “que era eles [os seus amigos] que incarnavam a beleza e a força do pensamento, que era neles que se concentrava e ardia o nobre e generoso desejo de viver para reconstruir a existência conforme os novos cânones do amor da humanidade.” (p.39)
Bastava-lhe estar uma hora sentado à porta da rua para compreender que “todos aqueles cocheiros, porteiros, operários, funcionários, comerciantes, não viviam como eu nem como aqueles que eu estimava, que eles não queriam a mesma coisa, que não seguiam o mesmo caminho.” (p.92) Mas ainda não era tudo: aparece alguém a declarar que “os intelectuais gostam de se agitar e desde sempre se uniram aos sediciosos” [que] “se revoltam por uma utopia.” Porquê? “O idealista insurge-se e, ao mesmo tempo, revoltam-se os que não prestam para nada, os patifes, os canalhas, e todos esses, por ódio, porque vêem que não há lugar para eles na vida. Os operários sublevam-se para fazer a revolução, têm necessidade de obter uma justa repartição dos instrumentos e dos produtos do trabalho.” (p.53)
Estes tópicos não avultam no contexto da obra. Porém, a crónica vai longa sem citar casos a reter: o apoio do amigo Korolenko a Gorki, a amizade deste com V. I. Lenine, o seu encontro com Tolstoi... Enfim, ponto final. [Imagem: ilustração da capa do livro, por Luís Filipe de Abreu.]

segunda-feira, 7 de março de 2016

Ser cidadão, hoje


A questão tem que ser enunciada nos devidos termos. Ser cidadão, hoje, é muito difícil e mais difícil ainda, decerto, será entender porquê. Votar quando há eleições, participar nos debates públicos, ter partido e opinião política é pouco, parece não chegar já para se ser cidadão.

Tudo isso pode ser positivo e mesmo desejável porque a percentagem das abstenções se torna preocupante, os filiados se arredam dos partidos (confundindo-os decerto com sindicatos) e os debates públicos, incluídos os parlamentares, pouco e mal aquecem o ambiente. Sobram os opiniosos comentadores que em aluvião enchem os espaços da comunicação social. Assim chega o momento de apurar, decantando, o velho ou envelhecido conceito de cidadão.
Cidadão não é, pela minha ideia, quem milita em partido e, subordinado às respectivas tácticas, faz da política a sua profissão; quem abre a boca e reproduz a cassete da retórica concordante com o sentido do seu voto; quem chama aos governantes gatunos, não sabe para o que serve aprovar um orçamento de Estado e nada entende de política sabendo de tudo no futebol. Passemos a nossa população adulta por este crivo: quantos cidadãos tem o país, afinal?
Terá bastante menos do que se julga. Cidadãos, quero dizer, pessoas suficientemente conhecedoras das dificuldades económico-financeiras nacionais, que reclamam uma urgente saída do sufocante garrote das dívidas soberanas; pessoas com conhecimento e coragem para perceberem que o melhor para os portugueses será a saída da moeda única e mesmo da União Europeia em falência; pessoas que sabem o que é o TTIP e que portanto se opõem ao aberrante Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (tem “na sua base um acordo de parceria entre a União Europeia e os Estados Unidos”); pessoas, enfim, que lutam por salvar a Democracia que, de outro modo, irremediavelmente se perde.
Mas pergunte-se: acaso será necessário, para se ser cidadão, que as pessoas assumam tal perfil, isto é, uma ideologia e um pensamento de esquerda radical? Sim e não, conforme cada situação individual concreta. Todavia, no fim de contas, parece imprescindível a ocorrência de uma ruptura terminante com o caldo de cultura instalado pela informação de massas (nesse caldo, em expansão como metásteses, se apoiam as políticas de direita), trocando-o por fontes informativas alternativas independentes que cada um terá que buscar. Curiosamente, este cenário traz à memória um antigo cenário que os portugueses, hoje idosos, conheceram – e sofreram – no regime da ditadura salazarista-marcelista: então, como agora, as forças da “Situação” e as da então designada “Oposição Democrática” resumiam os dilemas. Estamos novamente em presença de dois campos, uma divisão crucial: a preto e branco.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A mim, popularidade!

criança.jpg
O nosso espaço público encheu-se de comentadores e de articulistas que opinam na imprensa e na rádio ou têm porta aberta na televisão. São em chusma pródiga, infinita, de gente da política além de treinadores, jogadores, presidentes e etc. do mundo do futebol, actores de telenovela em exibição ou a cambulhada de autores de livros autoeditados. O espaço não sobra, será mesmo acanhado para acolher tanta gente a fluir de todos os cantos, ansiosa por alcançar imagem pública, protagonismo.
A mim, popularidade!, parece ser a exclamação contida no desígnio máximo que mobiliza os estratos da população. Construir uma imagem, senão pública, pelo menos reconhecível, personalizada, vale agora como passaporte para viver e circular de corpo inteiro. Quer dizer, para banir a própria extinção pelo anonimato.
Evidentemente, a popularidade não se confunde com a celebridade. Mas esta, conforme é demonstrado pela sabedoria das nações, bafeja umas raridades, de modo que pessoas de vulgar bom senso acabam satisfeitas com bastante menos. Quando o facto se impõe, basta-lhes um nadinha fugaz de reconhecimento público, seja de multidões, seja de bairro, de paróquia ou da rua onde habitam.
Daí a necessidade de cada pessoa briosa construir de si uma imagem, na pose convicta e convincente de ás da comunicação modelar, de agrado certo, no café e em todo o lado, porque só pondo à prova a crisálida de novato sem treino que nele lateja irá nascer o comunicador. A aparência (a fotogenia, o look), a maneira de falar, toda a sua gesticulação têm que irradiar bom humor, sendo sedutora, sexy. O que se tenha a dizer importa bem pouco e muito mais que seja dito com graça, entre risos, piadas e estórias divertidas.
Parece, realmente, que jamais como na actualidade (isto é, desde o início do segundo milénio), tanta gente se aplique na obtenção possível de alguma notoriedade mais ou menos pública, assim como náufragos esbracejando para não se afundarem de todo no obscuro pélago dos zés-ninguéns. É preciso despertar as atenções, apertar a mão a milhares, espalhar a cara pela cidade e pelo país, ser conhecido e notório, popular como qualquer carinha mediática (porque quem assim as inveja também quer ter nomeada, quer dizer, ter cara com o seu nome apenso). E ninguém tente convencer a gente de que as carinhas mediáticas perdem liberdade pessoal na medida em que sejam conhecidas na rua – serão esses os invejosos…
Sabe-se: o que corre pelo espaço público é artificioso, frívolo, efémero, espectacular. Mas vivemos todos numa instabilidade geral que é, sem dúvida, a maior marca do tempo presente. Nesta situação, a fraqueza da mobilidade social (dissuasora da luta de classes) parece estimular o fenómeno detectável nas massas: a exploração de comportamentos sociais como promoção individual de compensação meramente simbólica.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O poder da palavra impressa

Uma amiga folheava há dias o caderno dos meus primeiros recortes das crónicas e artigos que começava a publicar em jornais. Comigo ao lado, insistia em me convencer de que aqueles escritos tinham interesse, ainda eram actuais, quando eu via amarelecidos e ressequidos os velhos papéis. Ela parou então numa página e leu em voz alta o primeiro parágrafo.
Eu aplaudia ali o que a prática desportiva tinha de salutar advertindo porém que no futebol não temos resumido todo o Desporto. Aliás, o futebol não pode ser considerado como espectáculo por multidões sentadas vendo a correr no campo os seus reais praticantes, jogadores profissionais. Logo, sobram espectadores e escasseiam praticantes das diversas modalidades desportivas, amadores autênticos capazes de experimentar o prazer do jogo.
“Isto é perfeitamente actual ou não?” - exclamou, vitoriosa, a minha leitora. Abanei a cabeça sem botar palavra. Aquela prezada amiga tinha razão mas só eu podia medir quanta razão lhe faltava!
Realmente, defendo tais ideias e opiniões desde sempre, ou seja, desde que entrei a publicar na imprensa. Ora, quando escrevi os textos guardados naquele primeiro caderno ia nos 21 ou 22 anos de idade e hoje estou nos 85, à distância de uns 63 anos…
Posso medir toda a distância contida nestes anos. Em 1951-52, Lisboa tinha o Estádio Nacional inaugurado em 1944, no “Dia da Raça” salazarista, e o futebol merecia uma singela meia página à segunda-feira nos diários (ainda não tabloides) e uma única foto. Hoje é como se sabe e se vê, uma farturinha de estádios e de futebois, de estridentes “academias”, treinadores, especta-comentadores.
O 25 de Abril permitiu ao país ter, conforme entenderam as inteligências da época, “finalmente, futebol com liberdade” e depois, já com o país bem abastecido de estádios a mais, um jornal dito de referência ergueu em parangonas os heróis dos estádios à categoria de “deuses”. É verdade, opinar que o futebol, assim como outras modalidades desportivas, não deve servir como espectáculo, até parece ter hoje bastante mais actualidade do que há sessenta anos. Mas, nesse caso, levanta-se a questão: que valor tem, ou pode ter, a palavra impressa?
Aparentemente, nenhum. O texto permaneceu “actual” ao revelar a sua provada inutilidade perante factos concretizados, o mundo a girar. Neste caso, resta-nos desejar que os “deuses” do futebol, possuídos por uma santíssima determinação, decidam entrar em greve geral por tempo indeterminado para resgatar os cidadãos da passividade e acabar com tão pobre cenário.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Dinheiro, a pior droga

“O dinheiro é a pior droga do mundo”, disse o homem. Sentado ao balcão, na fila dos bancos altos, parecia absorto, de olhar mergulhado no copo que bebia. Murmurou apenas, como quem medita e, perante a evidência, não pode mais e desabafa, mas eu, sentado num flanco, escutei-o porque o televisor no instante se calou. 

“É pior do que a coca ou de qualquer outra, o dinheiro cria uma dependência muito maior”, considerou o homem. Observei-o de soslaio, intrigado, pois reconhecia naquelas frases uma ideia já experimentada por mim em conversas ocasionais mas nunca exposta por escrito. E via nascer ali a ideia na cabeça de um desconhecido em aturada congeminação! 
Tive que falar e conceder alguma concordância para abrir o diálogo com o homem. A aproximação, sem dúvida, interessava-me. Queria trocar umas frases, mas a sua conversa, conforme já esperava, começou por ser rara e banal para logo se tornar soturna e densa como pedra perdida no meio do trânsito em noite sem iluminação. 
Evidentemente, continuou a desabafar: atacou com ásperas censuras o valor quase supremo que hoje tem a riqueza material, ou a sua mera aparência, o triunfo fácil e rápido a obter em qualquer competição. O “sonho americano” é agora também de tantos europeus que ambicionam ganhar rapidamente o primeiro milhão para, a seguir, trepar aos saltos pela escada de outros milhões. Veja, dizia-me o homem, a quantidade obscena de novos milionários a medrar por aí, os casos de corrupção descobertos no topo das elites que mandam e que possuem. 
As novas gerações foram educadas pelo espectáculo do futebol, a grande escola que ensina que todo o jogo é para ganhar; ganhar a qualquer custo durante os noventa minutos se não puder ser disputado mais rápido. Uma veloz erosão moral varreu o idealismo dos valores éticos e deu lugar ao materialismo dos interesses concretos egoístas. Honestidade, honra, carácter, recta consciência, vergonha na cara, pudor, tudo isso, tal como boa educação, dignidade humana, princípios cívicos, o que valem hoje? 
Ora, enquanto esta crise lança no desespero tantas famílias arruinadas pela concentração da riqueza em poucas mãos e que é a outra face da austeridade que nos impõem, o que acontece? A dialéctica natural das coisas promove uma justiça invisível mas certeira que castiga multimilionários e novos milionários à pena contida na sua fortuna: “ter” tudo o que têm, isto é, imensamente mais do que precisam ou irão precisar para viver, nunca lhes chega, pede sempre mais, e obriga-os a cuidar sem descanso do que têm… Nem dormem, receando o descalabro, serem engolidos por um tubarão maior. 
Não desfeiteei o homem perguntando-lhe se estava com pena dos capitalistas, indaguei somente onde aprendia tais ideias. Disse-me: “A ler os livros do mundo”. Adivinhei logo: mas não a ler no mundo dos livros, claro!

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Imagem da globalização


Um amigo deu-me a ver uma colecção de fotografias de navio porta-contentores chinês que, se não é o maior do mundo, pelo menos será um dos mais gigantescos. A torre de comando excede a altura de dez pisos, mede quase quatrocentos metros de comprimento e é tão largo que não passa pelos canais do Suez e do Panamá. Mas, navegando somente no alto mar, corre vinte vezes mais rápido do que a concorrência, o que lhe permite chegar da China à Califórnia em quatro dias.

O olho leigo embasbaca perante a dimensão colossal do bloco do motor ou da cambota, o diâmetro dos onze cilindros em linha, a força de 110 mil cavalos na hélice entre outras particularidades técnicas, e talvez avalie o peso do investimento, algo como 145 milhões de dólares postos a navegar. Em foco principal fica a carga que o adamastor oceânico pode transportar: quinze mil contentores! Mas, quando o assunto já se esvai para ceder lugar a outro, ouve-se um clique… e não é de máquina fotográfica.
O olho leigo que apreciou o adamastor detém-se a reflectir e então aparece, sobreposta, uma imagem da globalização. Nos seus quinze mil contentores, o cargueiro leva não apenas a mão-de-obra chinesa barata e sem direitos; carrega também os bens de consumo que o Império antes produzia e exportava (passou a importar e não se importa). E quando as onze gruas, quatro dias depois, puserem em terra californiana as mercadorias, bem podem os desempregados queixar-se por lá do desemprego e os empregados trabalharem mais por menores salários.
De regresso à China, o cargueiro leva encomendas urgentes a atender e os contentores atafulhados de rimas imensas de papel, ditas notas de pagamento. Foram produzidas igualmente em quatro dias e valem até que num qualquer canto do planeta algum desesperado tenha o assomo de gritar que o rei vai nu e de pedir a quem de direito que o vista decentemente. Entretanto, a potência imperial espalha oceanos de papel impresso, atolando-se em buracos negros de dívida impagável…
O vaivém pendular do navio porta-contentores desenha no oceano a imagem da globalização, que não consiste apenas na liberdade planetária exigida e obtida pelos movimentos especulativos da alta finança e toda a clientela dos paraísos fiscais. Lembra também uma velha sentença segundo a qual “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos”, ou seja, em linguagem actual, que tudo o que interessa à alta finança internacional interessa à nação. Fiquem, pois, os povos a suportar os défices, os programas da austeridade, do empobrecimento generalizado, da estagnação económica e, a seu tempo, o brinde extremo: a perda da civilização que temos como nossa calcada pelos avanços da barbárie.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Manuel Filipe: surpresa!


Quarenta anos depois do 25 de Abril, restam ainda memórias e factos por resgatar do período da ditadura. Acontecem então descobertas surpreendentes. Uma traz-me agora ao conhecimento, finalmente de corpo inteiro, uma pessoa que mal conhecia: Manuel Filipe.

Mas o que é “conhecer” alguém? Quem diria que este professor do ensino secundário particular, que eu cumprimentava de passagem na minha terra natal e que escrevia sobre educação num jornal onde também comecei a colaborar na verdura dos meus vinte anos, guardava em segredo vivências do seu período académico coimbrão que não escaparam à vigilância da PIDE? Quem iria supor que Manuel (da Conceição) Filipe, com toda a sua bonomia de católico, conservador, apolítico, simpático e amigável, integrou o grupo coimbrão de esquerda retinta durante a sua formação, entre 1934 e 1940?

É fácil a persuasão de que conhecemos um vizinho ilustre (e este, nascido no Troviscal em 23-05-1912, viveu quase sempre ali por perto até morrer, em 03-10-1994). Todavia, logo que concluiu o curso de Letras, M. C. Filipe foi leccionar em diversos liceus nos arredores de Coimbra. A seguir, naturalmente, quis mudar do ensino público para o particular de modo a fixar residência em Oliveira do Bairro e casar.
Podemos agora avaliar esta evolução devido a uma investigação académica realizada pela doutora Luísa Duarte Santos. Focada no grupo de pintores do movimento neo-realista coimbrão inicial, deparou-se com um Manuel Filipe, pintor de Condeixa, que poderia ser o autor de um extenso rol de artigos publicados em “O Diabo”, “Sol Nascente” e “Seara Nova”. Ou seria esse autor um outro Manuel (da Conceição) Filipe, bairradino nascido no Troviscal que a doutora Luísa encontrou referenciado no meu Dicionário de Autores Bairradinos?
Tive o gosto de ajudar a investigadora a esclarecer a dúvida. São duas pessoas distintas, sendo M. C. Filipe o autor provado dos 26 textos (artigos, crónicas e poemas) saídos em “O Diabo” de 1934 a 1940; cinco (artigos, pequenos ensaios) em “Sol Nascente” entre 1937-38; e mais dois na “Seara Nova”, além de escritos soltos, um dos quais, em “Cadernos” (Coimbra, 1937), publicação que foi apreendida e queimada pela PIDE. A polícia política do Estado Novo registava em ficha que ele tinha “ideias avançadas” e que apoiara uma ignota “campanha Nortista”.
No entanto, os seus escritos versavam sobretudo questões de educação e ensino sem declarada expressão política ou ideológica. Num testemunho que lhe pedi e publiquei (suplemento do jornal local, 03-07-1992), M. C. Filipe recorda o seu período coimbrão, quando foi amigo de Joaquim Namorado e Fernando Namora. Foi o que ele pôde avançar do passado “esquerdista” que, como se vê, mantinha sonegado…

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Em nome “da” civilização?

Um indivíduo ou um grupo, uma comunidade ou um povo, que caricaturam e troçam de valores principais ou ícones consagrados de outros povos não exercem singelamente o seu direito à liberdade de expressão. Avançam, queiram-no ou não, até mais longe. E nesse longe aparecem agora acumuladas consequências.
Naturalmente, nenhum direito é absoluto, ou seja, que pode reinar sobre qualquer outro. Pois não manda a boa lógica que as minhas liberdades pessoais cessam onde principiam as dos outros? Mas verdades destas, comezinhas andam a sumir-se por aí nos vórtices rodopiantes da confusão.
Vejamos. O gesto, repetido, de caricaturar e troçar de valores notoriamente consagrados por uma comunidade ou povo até pode demonstrar, em última análise, que a pessoa ou o colectivo do gesto não considera nada, absolutamente nada, sagrado. Eu, porém, nunca vi nem consigo imaginar alguém de consciência totalmente alheia ao que é ou pode ser sagrado (com ou sem vínculo religioso), mas, se tal aberração puder acontecer, o seu gesto desrespeitoso dará aos ofendidos o direito recíproco a reagir.
Neste ponto preciso, creio eu, temos o fulcro da questão que alvoroça e sangra o mundo. Quem troça e escarnece, com irreverente à vontade, do que outros têm como sagrado, demonstra que não respeita o sagrado alheio com alguma da facilidade com que prescinde de respeitar o seu próprio. Permite, no mesmo acto, que o vejam como vil intruso despojado de qualquer transcendência.
Todavia, a irreverência assume todo o seu impacto no gesto que pretende submeter o que é declaradamente diverso para o apagar. Provém de uma força beligerante, arrasadora e brutal, com vocação pretensamente planetária de carácter imperialista. Mas terá uma qualquer civilização, em nome “da” civilização, o direito de se considerar superior e suplantar uma outra?
Talvez esteja aqui a contradição que vai opondo, mais e mais, o ocidente cristão ao oriente islâmico (e sobretudo às comunidades jihadistas geradas em matrizes criadoras de antagonismos estratégicos), de acordo com o “choque de civilizações” prognosticado por Samuel P. Huntington, político norte-americano que viu nas diferenças culturais e religiosas dos povos o elemento detonador de conflitos, depois de Fukuyama teorizar acerca de uns eventuais “fins da história”. Passo a passo, regressou a guerra fria e, sorrateiramente, vai-se preparando o ambiente (só europeu?) para uma terceira conflagração. Acirrados uns contra os outros, os povos começam a armar-se com propagandas intoxicantes, incompreensões induzidas e aversões instaladas… antes de pegarem em armas.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Guilherme Camarinha: evocação

Foi, no seu tempo, um homem e um artista algo peculiar. Nasceu em Valadares, Vila Nova de Gaia, em 01-11-1912 (28 de Abril de 1913 no registo civil). Terminou em 1937 o curso de Pintura na ESBAP (Escola Superior de Belas-Artes do Porto), onde foi assistente entre 1962-1965, e dedicou-se ao ensino secundário em Guimarães. Destacou-se sobretudo na pintura afresco e na tapeçaria com obras de grande projecção, mas trabalhou também, de modo distinguido, o mosaico e a pintura a óleo. Em 1987 recebeu medalha de ouro da sua cidade natal e foi publicado um livro sobre a sua vida e obra.
Correspondeu amiúde a “encomendas” em tal medida que realizou poucas exposições individuais, pois se considerava “um operário no exercício da sua arte”. Só na igreja da Conceição (Porto), Camarinha pintou dez afrescos com 90 metros quadrados que levaram “um ano e meio a executar”. A sua arte em mosaico, que desenvolveu em contacto com um artista veneziano (de modo que espelha toques de expressão bizantina), enriqueceu numerosos edifícios em Portugal e no estrangeiro.
O crítico Joaquim Matos-Chaves situou Camarinha no segundo modernismo português, sublinhando nas suas obras o perfeito domínio de cada técnica, “onde um afresco é pensado como um afresco, uma tapeçaria como tapeçaria, um óleo como óleo”. Por outro lado, Amândio Silva evocou a admiração que desde cedo as suas obras causavam nos alunos de Belas-Artes do Porto pela expressão plástica pessoal, a sua modernidade. De facto, o artista gaiense integrou, no início dos anos ’30, o “Grupo Mais Além”, com Augusto Gomes e Domingos Alvarez, entre outros.
Ao longo dos muitos anos da sua vida, Camarinha executou quase duas centenas de tapeçarias para tribunais, paços do concelho, bancos e outras entidades nacionais e estrangeiras. Os cartões que concebia eram habitualmente elaborados na fábrica de Portalegre, o que contribuiu então, fortemente, para a reabilitação da respectiva técnica no espaço nacional. De alguma maneira, isso fez ecoar em Portugal um movimento que em França tinha à frente a fisionomia de Lurçat. E lembra a peculiar relação estabelecida pelo artista com a cultura francesa.
Nas suas obras abundam sinais da herança greco-latina, numa linha neofigurativa com citações frequentes de temas clássicos em que se fundem e confundem especiais efeitos de teatro e de literatura.
Conheci-o, já idoso, e conversámos umas vezes. Guilherme Camarinha, apegado a um passadismo irredutível, lamentava a Revolução Francesa (isto é, a perda do ancien regimejunto com toda a evolução posterior da história do mundo. Morreu em 1994, na sequência de um atropelamento. Ia nos 82 anos. Viveu sozinho na sua casa, em Vila Nova de Gaia, e conservou-se celibatário embora deixando descendência. [Imagem: tapeçaria do Autor alusivo a tema histórico.]

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O sagrado em reflexão

A ordem das coisas sagradas não é hoje, ou pode não ser, apenas uma questão religiosa, matéria de especulação teologal. Sagradas podem, e devem ser, vidas humanas em risco, aspirações de mais alta justiça, mais liberdade, mais paz. O sagrado dos crentes coabita no mundo com o profano dos não crentes ao ponto de se (con)fundirem nas duas faces de Janus.
Aparentemente, os progressos científico e tecnológico, que permitiram conhecer a estrutura do átomo e a vastidão do cosmos, comprimiram o lugar antigo das religiões, pouco a pouco invadido pelas mentalidades modernas e os costumes da vida laica. Basta, porém, notar, por exemplo, os temas que vão correndo em filmes e romances populares, tão alienantes, recheados de magias incríveis, crendices retrógradas ou fantasias sobrenaturais, para de relance se perceber quanto mudou na paisagem da cultura religiosa vulgar. Ainda assim, note-se, sem paradoxo, a crescente agressividade que os manifestantes cristãos e muçulmanos europeus, acusando-se mutuamente de fanatismo, actualmente revelam.
Uma dimensão sagrada, qualquer que seja, parece inerente à condição humana normal. Sem se imbuir da noção do que é sagrado, proveniente de formação religiosa ou outra, sem deus, mas cultural e humanizada, as pessoas ficam privadas do atributo que supomos estrutural. Por isso, o problema do nosso tempo reside talvez no apagamento de uma formação que, em última análise, confunda educação religiosa ou cultural, ética e humana. 
Daí a interrogação antes posta: o que resta de sagrado no mundo, hoje? É perante o que temos de sagrado que se estabelecem os interditos, as obrigações gerais da ética, os princípios humanos basilares. Ora, o apagamento do que seja sagrado (quer dizer, do “sacrário”, lugar íntimo onde guardamos os valores supremos, imateriais, sem os quais os indivíduos e a espécie ficam sem defesa) expõe os povos a incalculáveis perigos. 
Não há dúvida, a barbarização dos costumes está a progredir e a (in)civilização do século XXI a descambar, avançando cegamente, conforme algumas vozes previnem, para uma nova Idade Média e, provavelmente, uma terceira grande guerra. 
As massas habituaram-se ao seu próprio aviltamento e à violência – nos campos de futebol, nos filmes, nos televisores – e praticam-na quotidianamente, de variados modos, nos ambientes familiares e nos espaços públicos. A decadência da Europa vai além da estagnação económica e da crise geral em que se afunda. Envolve os desvios sofridos pelos sistemas escolares, a fraqueza da criação e fruição cultural autênticas, o abandono de programas de elevação colectiva das pessoas e dos povos.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Esvai-se a dimensão do sagrado


O que resta de sagrado neste nosso mundo, hoje? A interrogação é pertinente e, de modo especial, ganha toda a oportunidade na moldura dos atentados em Paris, há uma semana. O primeiro atingiu o semanário “Charlie Hebdo”, matou oito dos seus jornalistas mais quatro pessoas e espalhou pelo espaço mediático a gloriosa bandeira do “Todos somos Charlie”, levando um nosso jornal a citar novamente Mark Twain (referido na minha última crónica) agora com um esconjuro: “Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo.”
Manifestações populares estrondosas, de bastantes milhões, com um nutrido leque de governantes de variadas nacionalidades à testa, apoiaram uma liberdade de expressão da Imprensa sem restrições, portanto com sátiras impiedosas e blasfemas. E foi bonito. Mas tamanho estrondo levantou esta velha e sempre renovada questão: a liberdade de expressão é uma entre as várias das liberdades cívicas essenciais à plena vigência da democracia, que se realiza apenas no plano de uma igualdade efectiva no mundo onde crescem as desigualdades... 
Os órgãos jornalísticos, obedientes ao pensamento único que dita a verdade única mundial, informaram sem explicar os acontecimentos, como matéria sensacional. Emocionaram e pouco mais, em vez de contextualizarem, recuando, se fosse preciso, ao início do século XX e à “economia do petróleo” ou às mudanças operadas desde então no Médio Oriente. Agravaram-se as contradições existentes no terreno, as ideias e as políticas de direita expandiram-se e deram mais força aos profetas da “islamização da Europa” que apontam para o “choque de civilizações”. 
Quer dizer, alastraram os motivos do medo e do ódio ao “outro”, da intolerância e da xenofobia, radicalizando, com recurso a propaganda manipuladora, a crescente oposição entre cristãos e muçulmanos. É esse, afinal, o caldo de cultura (caldo espesso de oposições apoiadas em crenças subjectivas, sem suporte racional nem razões concretas) em que se desenvolve a violência que pode alimentar o terrorismo no interior de populações massificadas. Ora o terrorismo convém a uns tantos (e não só de um lado), quando serve uns interesses estratégicos de quem sabe agir e continuar longe, invisível. 
A Ocidente, a questão parece estar hoje no apagamento da dimensão do que antes era sagrado. Os europeus declaram-se cristãos mas reduzem a religião, banalizada, à prática eventual de algumas tradições. Sagrado, para eles, é sem dúvida o deus-Mercado (apanágio da democracia, dizem!) e o seu direito indiscutível ao consumo massificado ainda que estejam agora sob rigoroso regime da austeridade imposto pelos governos. 
Mas vejamos. Se o sagrado se esvai (e o que seja venerável, respeitável), não deveriam brilhar com luz rutilante e vermos, onde quer que estivéssemos, os princípios humanizantes, isto é, os Direitos do Homem colocados à altura mais eminente? Não deveriam ser sagrados e consagrados, em primeiríssimo lugar, por toda a população do planeta?

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O voto não é a arma do povo?

A surpresa esperava-me na última página do jornal, onde pensamentos de autores diversos aparecem citados. Parei, embasbacado, a ler: “Se votar fizesse diferença, não nos deixariam fazê-lo. Mark Twain (1835-1910)”.
Então o voto já não era mais a proclamada e tão pacífica “arma do povo”? E era um jornal dito de referência que, naquela manhã, vinha lembrar-nos o dito do grande escritor e humorista norte-americano segundo o qual as eleições não serviam para nada?! Ah, sim, pois, é claro: naquele mesmo dia os deputados gregos iam votar em Atenas a dissolução do parlamento, convocar eleições antecipadas e, talvez, por esse caminho, dar a vitória ao partido de esquerda, Syriza…
A mensagem implícita, portanto, era clara. Não vale a pena fazer eleições quando o sistema económico-político estabelecido impõe pagar as dívidas nacionais à usura financeira internacional ainda que a economia do país e o seu povo estejam de rastos. Todavia, é exactamente neste ponto que a questão se estabelece nos seus precisos termos. 
O jornal, ao enunciar o dito de Mark Twain, colou-o a uma situação que o escritor não poderia prever. Alinhou, além disso, com toda a direita política que defende os programas da austeridade justificados pelas dívidas dos Estados criadas na armadilha dos défices. Quer dizer, tomou partido, admitindo incluso um ostensivo desprezo pela vontade de uma possível maioria eleitoral manifestada democraticamente. 
É certo que o sistema democrático tem vindo a perder conteúdo até se transformar no indigno rótulo tão frequente que já parece normal. Mas o sistema, e de igual modo, o regime, são de geometria variável tão larga que se estende do socialismo retinto à corruptela designada como democracia burguesa. Todavia, são as nações com sistemas de mero rótulo democrático reduzido à simples alternância de dois partidos afins no poder que mais impõem os modelos da sua democracia ao mundo. 
Assim, os tempos não vão bons para a cultura da Democracia. O que em geral predomina é o discurso da direita política, incluso nos media, abertos à Verdade Única em circulação e reticentes no acolhimento de qualquer assomo de pluralismo. Um regime de esquerda democrática (e pode ser um governo de Syriza) torna-se hoje tanto mais suspeito e merecedor de campanha de descrédito quanto mais se mostrar de esquerda: discute as dívidas nacionais, quer um reescalonamento, relançar a economia, etc. 
De facto, a “cultura” democrática mudou de signo. Os donos disto tudo capturaram governos, políticas e meios de comunicação mundiais e querem convencer os povos a aguentar. Veremos em seguida se as massas (i. e., as classes médias) vão continuar, resignadas, a estrebuchar com a corda na garganta na forca da austeridade perpétua ou se, finalmente, acordam de vez para outra sorte.