quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O voto não é a arma do povo?

A surpresa esperava-me na última página do jornal, onde pensamentos de autores diversos aparecem citados. Parei, embasbacado, a ler: “Se votar fizesse diferença, não nos deixariam fazê-lo. Mark Twain (1835-1910)”.
Então o voto já não era mais a proclamada e tão pacífica “arma do povo”? E era um jornal dito de referência que, naquela manhã, vinha lembrar-nos o dito do grande escritor e humorista norte-americano segundo o qual as eleições não serviam para nada?! Ah, sim, pois, é claro: naquele mesmo dia os deputados gregos iam votar em Atenas a dissolução do parlamento, convocar eleições antecipadas e, talvez, por esse caminho, dar a vitória ao partido de esquerda, Syriza…
A mensagem implícita, portanto, era clara. Não vale a pena fazer eleições quando o sistema económico-político estabelecido impõe pagar as dívidas nacionais à usura financeira internacional ainda que a economia do país e o seu povo estejam de rastos. Todavia, é exactamente neste ponto que a questão se estabelece nos seus precisos termos. 
O jornal, ao enunciar o dito de Mark Twain, colou-o a uma situação que o escritor não poderia prever. Alinhou, além disso, com toda a direita política que defende os programas da austeridade justificados pelas dívidas dos Estados criadas na armadilha dos défices. Quer dizer, tomou partido, admitindo incluso um ostensivo desprezo pela vontade de uma possível maioria eleitoral manifestada democraticamente. 
É certo que o sistema democrático tem vindo a perder conteúdo até se transformar no indigno rótulo tão frequente que já parece normal. Mas o sistema, e de igual modo, o regime, são de geometria variável tão larga que se estende do socialismo retinto à corruptela designada como democracia burguesa. Todavia, são as nações com sistemas de mero rótulo democrático reduzido à simples alternância de dois partidos afins no poder que mais impõem os modelos da sua democracia ao mundo. 
Assim, os tempos não vão bons para a cultura da Democracia. O que em geral predomina é o discurso da direita política, incluso nos media, abertos à Verdade Única em circulação e reticentes no acolhimento de qualquer assomo de pluralismo. Um regime de esquerda democrática (e pode ser um governo de Syriza) torna-se hoje tanto mais suspeito e merecedor de campanha de descrédito quanto mais se mostrar de esquerda: discute as dívidas nacionais, quer um reescalonamento, relançar a economia, etc. 
De facto, a “cultura” democrática mudou de signo. Os donos disto tudo capturaram governos, políticas e meios de comunicação mundiais e querem convencer os povos a aguentar. Veremos em seguida se as massas (i. e., as classes médias) vão continuar, resignadas, a estrebuchar com a corda na garganta na forca da austeridade perpétua ou se, finalmente, acordam de vez para outra sorte.

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