quinta-feira, 27 de junho de 2013

Lua cheia na cidade


O batuque percutiu nos ares durante toda a noite. Estrondeou em bum-buns incessantes que faziam tremer o solo, mas não voei para o interior da selva africana. Estou bem dentro da segunda cidade do rectângulo ibérico, poucos habitantes a cair de sono podem adormecer por aqui.
É a noite da festa tradicional que atrai para a Avenida central e para os bairros populares da periferia multidões espessas predispostas para alegres confraternizações. Festejam a chegada da Lua cheia que assinala o Verão, rito de reminiscência agrária outrora marcado com saltos de fogueira pelo rapazio. Levam nas mãos cravos e manjericos, alhos porros e martelinhos de plástico e há balões pelo ar e foguetório luminoso.
Nesta noite cálida das grandes efusões humanas trazida pela folha do calendário, a crise parece arrumada para um canto e negada a austeridade, o desemprego, o empobrecimento. É geral a euforia colectiva, sôfrega como mesa posta para convivas famintos. Quem vai notar no céu a Lua do perigeu, grande, nítida, luminosa, ou o luar que as luzes eléctricas comem e disfarçam?
Nesta rua, porém, umas incontáveis dezenas de jovens fugiram do espaço público e reuniram-se onde a festa, sendo pública, era privada. Uma espécie de clube para meninos e meninas que gostam de muita festa e alguma dança. Em volta do clube cresce a má fama.
A vizinhança queixa-se. Às nove e meia da manhã seguinte os bum-buns ritmados ainda soavam com decibéis potentes, de loucura, no jardim da retaguarda do prédio, a céu aberto. Da sua porta, com carro da polícia ao lado, saíam grupos e mais grupos de meninos e meninas que davam por finda a noitada…
Copos de plástico, garrafas e latas espalhavam-se pelos passeios, manchas de vinho no cimento, papéis, cervejas mal bebidas, lixo. Perto, na padaria, um vizinho protestava aos berros que não dormira, que chamara a polícia mas que a barulheira continuara. Às dez horas da manhã foi possível a um retardatário tresnoitado chegar ao seu carro de boa marca, ali perto, abrir a porta e, de pé, aliviar a bexiga.
Preocupem-se os sociólogos com esta juventude (não os educadores: para eles, é tarde). Aparentemente, não é rasca nem enrascada; não trabalha nem estuda e tem dinheiro para ir aos concertos, aos espectáculos de futebol, às festas de arromba e bebedeiras memoráveis. Não se interessa por política, é contrária a greves, ri-se dos baixos salários sem direitos, não acredita em causas nobres mas pode curtir chutos valentes, daqueles que disparam o desgraçado corpinho para maravilhosos paraísos artificiais. [Imagem: tendas de alpinistas a uns 1200 metros de altura; ilha de Baffin, no Árctico.]

quarta-feira, 26 de junho de 2013

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Com o Vento Que Passa



Um livro, máxime de poesia, pede grafismo corporizado em sintonia o mais possível fiel à vibração sensorial do seu conteúdo. Mas é raro o desiderato. Todavia, acontece agora com O Vento Que Passa, poema de Pires Laranjeira.
É, desde logo, uma cuidada e bela edição, onde os próprios textos corporizam o formato assumido (note-se a singularidade: tem chancela da Papéis de Fumar; Associação Crescente Branco, Braga; 91 pp). Quer dizer, harmoniza o interior com o exterior numa simbiose valorizada, até, pela inclusão de dois desenhos do próprio Autor. Sente-se o vento que passa pelo poema mas o poema não passa com o vento.
Pesa no chão tanto como estes tempos de crise que nos abrumam e submergem. Não por acaso, abre com epígrafes de inspiração bíblica, ou mesmo apocalíptica, e de vários autores: Eclesiastes (“Isto é também vaidade e vento que passa”), Karl Marx, Gilles Deleuze, Michel Onfray, Apocalipse. As quinze estâncias do poema espelham a relação homem-mulher, a realização emocional e sexual, carregando a força poética de dramatismo, vibração epifânica e, logo, desgarrada solidão.
Porque “quando o mundo embruteceu / ou há riso a mais / na máscara da crise” (p 18), o ambiente social fica cheio de seduções efémeras, convites superficiais ao desejar contínuo numa desgastante volição dos sentidos. Sentimentos e emocionalidades fáceis em torvelinho enredam-se no eixo do “cada um olha por si”, regra em uso geral que fecha os olhos para o facto de que ninguém se realiza sozinho. A relação amorosa, sobretudo, já por si mesma conflitual, vai acumulando tensões explosivas.
É o fio temático que percorre o poema, que é também uma apóstrofe à mulher amada (plural?) que parte e deixa o amante em violenta crispação: “a felicidade alheia é sempre assim / ninguém quer saber do amor asseado / de um idólatra idoso / por uma donzela fresca / de olhos grandes” (p 35). Mas é então que este pode experimentar, na insatisfação, a dimensão maior da sua liberdade individual. “Não cries [ela, tu] um fantasma de solidão / e independência / sem dinheiro e sem tesão / que a europa quer vender” (p 24).
Mas um apelo transido e veemente ecoa por todo o Vento Que Passa. Com variantes, repete: “Não / não digas que não / não nunca não por favor não […] não te afastes pra longe / dá-nos o teu regaço fraterno / o recanto materno / não vês que somos ainda crianças / por desmamar?” (p 88).
Fragilidade exposta. Atenua a crueza franca de uma expressão poética vívida, trabalhada por quem conhece a arte literária e não esquece os desconchavos do mundo embora deles se desvie. Termino esta singela recensão com outra singularidade: Pires Laranjeira (José Luís), modestamente, não lista no seu livro as obras que já publicou, e são bastantes e variadas, ligadas ou não ao seu notado perfil académico.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Haja Feiras do Livro!


Dizemos que nenhum livro admirável consegue ser completamente bom nem que um outro, embora medíocre, irá ser completamente mau. A ideia é que muitos livros diversos ou, idealmente, todos quantos existam resultam bons na medida em que uns aos outros se esclarecem e ajudam. E porque o dito condensa uma verdade demonstrável, tornamos a repeti-lo.
Portanto, uma grande biblioteca constitui um Grande Livro e uma Feira do Livro babélica aproxima-se de uma grande biblioteca em projecto. Venha, portanto, muita Feira! Acontece porém que a segunda cidade do país, este ano, ficou privada do certame tradicional que lhe enchia de animação e de livros a Avenida.
Barafustou a organizadora (a APEL, composta sobretudo pelos editores nacionais, atingidos pelo revés que sofreriam as suas vendas directas ao público, i. e., sem intermediação das livrarias). O município local recusou o aumento de uns milhares de euros e o evento, sem tal apoio, emperrou. Ergueu-se então em protesto contra o município um grupo de novos escritores, com José Luís Peixoto na primeira linha.
Gesto comovente! Eram escritores em voga e já apareciam na Feira de Lisboa em canseirosas sessões de autógrafos, davam entrevistas, conversavam, passeavam, tornavam-se ainda mais populares, percebendo bem o que os editores querem quando lhes dizem que “são os autores que vendem”… Reagiram com elevado critério e dispuseram-se a realizar na cidade do “corte à cultura” uma sessão de autógrafos dos seus últimos livros.
Reacção exemplar! Evidenciou a maravilhosa generosidade do grupo que trabalha para se profissionalizar e viver da escrita literária e que se cansa, gastando os pneus, a percorrer o país, no esforço constante da promoção das suas obras e das suas imagens. São escritores em voga, é certo, mas precisam de não perder a corrida pois sabem que o mercado tem memória fraca e que é vital manter uma vela acesa naquele altar.
Felizmente, abundam as feiras, os convites, os encontros, os eventos culturais, oportunidades a não perder para botar figura. Ora, apesar da crise, a Feira de Lisboa rendeu este ano muito mais do que seria de esperar: as vendas globais troçaram da crise.
O animoso grupo dos novos escritores dispõe-se portanto a prosseguir na elaboração de literatura de consumo (o consumo de papel não vai diminuir!): rimas de livros, grossas lombadas e vistosas capas enfeitadas com o nome-marca do Autor em letras garrafais e prazos de validade como os iugurtes.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Sapateiro e político


Uma peripécia vivida ontem acordou-me a memória para uma reminiscência que me traz a sorrir. Vem muito a propósito. Por isso a descarrego e deixo aqui, dando-a como veraz lição de vida.
Naquele tempo, havia na minha comunidade de origem um sapateiro que punha cabedais de molho numa selha e depois os batia sobre os joelhos em pedra chata e redonda como uma broa. Quer dizer, era sapateiro à antiga que víamos no cubículo com avental de pele suja, sovela e fios na mão, sentado em banco baixinho, ao lado de mesinha coberta de ceras, pomadas, fios e formas, tachas e protectores. Fabricava botas e sapatos de encomenda para a vizinhança e botifarras e sapatinhos para as feiras dos arredores.
Eram muitos os talentos do homem (p. ex., bombo, caixa e pratos eram dele na banda que animava os bailes da região) e, humorista à sua maneira, abundava em picardias e matreirices. Quando um cliente lhe aparecia à porta a queixar-se de que os sapatos novos lhe magoavam os pés, recebia-o com irrepreensível gentileza. Estão apertados? Deixe-os aí, sim, sim, vou pô-los na forma e já ficam bem…
O freguês ia recuperar os sapatos, tornava a calçá-los e repetia a queixa. Ah, continuam apertados?! Mas já apertam menos, não? Sim, estão melhorzinhos, mas… Está bem. Vou metê-los outra vez na forma e alargá-los um pouco mais, até posso metê-los em água, com cuidado, é claro, para não ficarem largueirões...
Tornava o freguês a enfiar os pés no aperto, sofria com as bolhas nos calcanhares, até que em desespero voltava à loja do sapateiro. E ele, dando à sovela, admirava-se: Caramba, ainda não estão bem?! Vou metê-los outra vez na forma, vais ver que te assentam como luvas.
O homem não tornava a aparecer à porta com os sapatos na mão e queixas na boca. Nessa altura já os usara, sofrendo, uns tantos dias e os pés, calejados, tinham-se habituado ao sofrimento. Ou desabafara o seu calvário e alguém, caridoso, o prevenira da marosca.
Na verdade, o sapateiro não se inibia de contar as suas proezas aos mais próximos, gozando com a inocência dos fregueses que ludibriava. Prometia fazer e não fazia, pois os sapatos “apertados” ficavam ali, no monte, até a pessoa os buscar. Então pegava neles, passava-lhes a escova cuspindo e era capaz de sentenciar que todos temos nos nossos próprios pés umas formas ideais.
O sapateiro sabia meter em apertos a clientela que mal servia, convencendo-a a aguentar as dores com promessas que sabia tão incríveis que era o primeiro a divertir-se com elas. Acabou mal: sem fregueses, teve de emigrar e entretanto extinguiu-se o tempo dos sapateiros políticos para chegarmos a este desgraçado tempo de políticos sapateiros da classe mais barata, a dos remendões.