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quinta-feira, 7 de maio de 2015

O tempo da jogatina


Entrámos a valer no tempo da jogatina desenfreada. O que nos resta senão jogar tudo por tudo? Parece impossível perder mais do que já foi perdido, agora só poderemos ir ao jogo para ganhar.
Temos as velhas lotarias, as raspadinhas, os euromilhões, os casinos com roletas e slots machines, et caetera. O que faltava? A cereja no bolo: a legalização da jogatina online.
Evidentemente, abundam os concursos televisivos, telefonemas para números de valor acrescentado ou preços certos para cima e para baixo, mas isso pouca emoção dá, é como pedir factura com o NIF do contribuinte e esperar por carro topo de gama sorteado. Convinha melhorar a oferta e o (des)governo tratou disso. A legalização dos jogos pela Internet vai gerar impostos de uns milhões, para começar.
Sabe-se perfeitamente que os fregueses do jogo são da população de mais baixos rendimentos (pois a jogatina dos ricos é diversa). Por outras palavras, são da população mais pobre. Exactamente aquela que, tendo perdido, aposta que chegou o momento em que tem por força que ganhar.
Assim são convidados a supor os reformados com pensões de miséria, os jovens sem primeiro emprego e os desempregados sem subsídio nem requalificação profissional ou direito à reforma. Os empresários da indústria do jogo puseram a atenção nesta vasta freguesia e vão servi-la cada vez melhor. Basta um computador e ligação à Net, a sorte será lançada.
Porque… Vejamos! O que mais poderá fazer tanta população, tanta freguesia ávida de sorte?
O trabalho deixou de dignificar a pessoa, a própria conduta honrada se desvalorizou na bolsa dos valores sociais. O trabalho, o emprego que possa encontrar-se mal dá para comer. Amealhar, nunca; enriquecer, jamais.
Quem quer sonhar, progredir na vida, o que pode fazer senão virar-se para o jogo? Os programas da austeridade, que extinguem os empregos e baixam os salários, querem impor-se e durar tão brutalmente que no jogo aparece a luzir a derradeira esperança. E apetece aí arriscar os trocos que restam a desafiar a sorte.
Conforme a regra do jogo, uma imensa maioria de pobres paga para fazer um rico e continuar mais pobre. Todavia, uma parte do que pagaram fica retida, como lucro, por quem explora o jogo. Curiosamente, ninguém sabe ou quer saber a quanto monta esse lucro.
Mas é assim que o dinheiro corre pelas artérias e veias do sistema capitalista. Faz cada vez mais pobres, igualando-os na pobreza, e gera cada vez mais ricos, e outros ricos ainda mais ricos, e outros ricos mais ricos do que os ricos ricos. E rico sistema, incorrigível multiplicador das desigualdades sociais.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Guilherme Camarinha: evocação

Foi, no seu tempo, um homem e um artista algo peculiar. Nasceu em Valadares, Vila Nova de Gaia, em 01-11-1912 (28 de Abril de 1913 no registo civil). Terminou em 1937 o curso de Pintura na ESBAP (Escola Superior de Belas-Artes do Porto), onde foi assistente entre 1962-1965, e dedicou-se ao ensino secundário em Guimarães. Destacou-se sobretudo na pintura afresco e na tapeçaria com obras de grande projecção, mas trabalhou também, de modo distinguido, o mosaico e a pintura a óleo. Em 1987 recebeu medalha de ouro da sua cidade natal e foi publicado um livro sobre a sua vida e obra.
Correspondeu amiúde a “encomendas” em tal medida que realizou poucas exposições individuais, pois se considerava “um operário no exercício da sua arte”. Só na igreja da Conceição (Porto), Camarinha pintou dez afrescos com 90 metros quadrados que levaram “um ano e meio a executar”. A sua arte em mosaico, que desenvolveu em contacto com um artista veneziano (de modo que espelha toques de expressão bizantina), enriqueceu numerosos edifícios em Portugal e no estrangeiro.
O crítico Joaquim Matos-Chaves situou Camarinha no segundo modernismo português, sublinhando nas suas obras o perfeito domínio de cada técnica, “onde um afresco é pensado como um afresco, uma tapeçaria como tapeçaria, um óleo como óleo”. Por outro lado, Amândio Silva evocou a admiração que desde cedo as suas obras causavam nos alunos de Belas-Artes do Porto pela expressão plástica pessoal, a sua modernidade. De facto, o artista gaiense integrou, no início dos anos ’30, o “Grupo Mais Além”, com Augusto Gomes e Domingos Alvarez, entre outros.
Ao longo dos muitos anos da sua vida, Camarinha executou quase duas centenas de tapeçarias para tribunais, paços do concelho, bancos e outras entidades nacionais e estrangeiras. Os cartões que concebia eram habitualmente elaborados na fábrica de Portalegre, o que contribuiu então, fortemente, para a reabilitação da respectiva técnica no espaço nacional. De alguma maneira, isso fez ecoar em Portugal um movimento que em França tinha à frente a fisionomia de Lurçat. E lembra a peculiar relação estabelecida pelo artista com a cultura francesa.
Nas suas obras abundam sinais da herança greco-latina, numa linha neofigurativa com citações frequentes de temas clássicos em que se fundem e confundem especiais efeitos de teatro e de literatura.
Conheci-o, já idoso, e conversámos umas vezes. Guilherme Camarinha, apegado a um passadismo irredutível, lamentava a Revolução Francesa (isto é, a perda do ancien regimejunto com toda a evolução posterior da história do mundo. Morreu em 1994, na sequência de um atropelamento. Ia nos 82 anos. Viveu sozinho na sua casa, em Vila Nova de Gaia, e conservou-se celibatário embora deixando descendência. [Imagem: tapeçaria do Autor alusivo a tema histórico.]

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Semblantes esculpidos

Agora é muito difícil descobrir por aí um rosto de pessoa idosa que me dê autêntica vontade de retratar, disse ele. Encarei-o, estranhando, porque era uma frase singular de um amigo também já idoso. Conheciamo-nos desde os tempos da nossa juventude e ele, desde então, continuava apaixonado pela fotografia.

Gostava de fotografar semblantes de mulheres e homens bem curtidos pela vida tanto como detestava fotografar bebés e crianças. Procurava-os e descobria-os em romarias, feiras e encontros ocasionais, primeiro com o seu “caixote” Kodak de película em rolo de 6 x 9 cms a preto e branco, e em seguida com outras máquinas de mais evoluída técnica. Mas eram sempre figuras populares dos campos em redor que o atraíam, nunca habitantes do ambiente urbano homogeneizado.
Acompanhei, partilhando enquanto pude as suas artes como fotógrafo amador até que me cansei da novidade. Entretanto, andei a trocar máquinas e a enviar pelo correio os rolos usados para revelar, aprendendo a corrigir os erros que notava nas imagens impressas no papel e se nos amontoavam nas gavetas. Era o tempo de medir as distâncias focais, graduar a abertura do obturador conforme a luz ambiente, a velocidade do disparo… antes de haver flash como acessório, filme em rolo de 35 mm, filtros, diapositivos, projectores, Photoshop… e muito, muito antes da actual abundância de cameras digitais com tantos automatismos incorporados que só pedem que alguém carregue no botão.
O meu amigo queria captar os traços que numa fisionomia anónima vincam as marcas da sua especial humanidade. Desprovido de tais marcas, um rosto humano era para ele uma página em branco: nada lhe dizia com notável interesse, ao modo da carinha de elegante e sedutora rapariga, bonita de ver ou mesmo desejar, e ponto final. Decerto por isso, repetia, citando Balzac, que todo o homem com mais de trinta anos é responsável pela cara que apresenta.
A frase que acabava de lhe ouvir puxou-me pela memória. Acordou-me. O meu amigo parecia lamentar a raridade, talvez a desaparição, das “suas” apreciadas fisionomias de uma gente de trabalho honrado e sofrido que tinha o olhar claro e sereno posto no futuro sabendo da vida o bastante para aceitar com estoicismo o que não tem remédio e rir-se a mangar do que afinal não tem remédio.
Compreendi o meu velho amigo. Este país deprimido cobria-se de seniores, porque os jovens saíam em massa, emigrando, e a natalidade baixava, deixando à vista o seu desgraçado e envelhecido povo. Um povo que teimava em resistir no seu pátrio chão, já sem as marcas viris de um heroísmo quotidiano sem tréguas afirmado na dignidade da sua condição modesta mas honrada.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Idosos: vozes (cada vez mais) anoitecidas

Texto do Leitor Convidado Carlos Braga

O abandono dos idosos, a negligência e até os maus tratos a que por vezes são sujeitos, devem merecer a nossa melhor atenção e o nosso mais vivo repúdio. Para mistificar a realidade, ou talvez porque muitos não gostem de ser tratados como tal, a chamada sociedade pós-moderna transforma, em passes de mágica falaciosa, os idosos em seniores, como se a velhice fosse coisa sem sentido, não arrastasse consigo algumas moléstias - a dependência, o desamparo e a solidão - ou não suprimisse progressivamente os prazeres que a vida realmente vivida proporciona.
Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os idosos encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece.
Noutras sociedades – países africanos e asiáticos, por exemplo - os velhos são descritos como “aqueles que ganharam sabedoria”. Na cultura ocidental esses valores encontram-se em erosão acelerada. O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à sociedade.
Querem um exemplo da crise da solidariedade e do modelo tradicional de obrigações filiais? Todos os anos, pelo Natal, assistimos ao espectáculo indecoroso de gente que interna os seus pais ou avós nos hospitais e os deixa por lá, sem a menor ponta de remorso ou o menor estremecimento de desconforto. Entretanto, os idosos têm “alta”, o hospital contacta as famílias mas estas não aparecem. Despachado o fardo incómodo, demandam outras paragens onde vão passar o Natal e o Ano Novo, libertos de preocupações mas atolados no egoísmo e na desumanidade, agindo como se os seus familiares fossem desprovidos de direitos.
Estamos a falar de crimes sem castigo. Quem faz isto, ou coloca os seus idosos em lares clandestinos de vão de escada, devia ser acusado de crime de abandono. A indiferença pelos direitos do nosso semelhante é uma forma de cumplicidade no atentado a esses mesmos direitos.
Enquanto as coisas continuarem como estão, estes actos ignóbeis tendem a transformar-se em rotina no quotidiano. A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.
Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos. [Imagem: porta pintada em rua do Funchal, Madeira.]

sábado, 7 de dezembro de 2013

O sonho da eternidade

É inesgotável a necessidade humana de sonhar. Os teístas crêem na vida eterna, os artistas, escritores incluídos, crêem na perenidade das suas obras. Cada existência individual, condenada à sua efémera duração, suspende-se por vezes para questionar se a vida é ou poderá ser só “isto” sem mais transcendência, apenas o breve rasto num caminho que depressa o vento dilui.
Sonhar com a eternidade resgata a condição humana à sua contingência ao projectá-la na tela do infinito. Assim elabora a arte, toda a arte que podemos admirar enquanto afirmação estética da plena dignidade do homem. E neste sentido aparece o novo livro do poeta Izacyl Guimarães Ferreira.
Izacyl, na sua longa carreira (nasceu em 1930, Rio de Janeiro), já publicou mais de vinte livros, um dos quais, Discurso Urbano, mereceu o prémio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 2008. Desde então acrescentou à sua obra mais três títulos e uma antologia. Reaparece agora com Altamira e Alexandria (ed. Scortecci, São Paulo, 2013, 66 pp), onde os seus poemas tomam as pinturas rupestres da caverna de Espanha e a antiga biblioteca do Egipto como símbolos expressivos de uma humana “ânsia de eternidade”.
O tema essencial deste livro, envolvendo a questão (agónica) do que é nascer para morrer, isto é, a atitude ou as ideias que o Autor pode ter perante a vida no seu ocaso, assenta num pano de fundo que implica a questão do crepúsculo em que parece afundar-se tanta civilização e cultura no Ocidente, senão no mundo inteiro. A voz do poeta, octogenário (nasceu no “meu ano”), sintoniza ou coincide com as sombras do nosso tempo nos quarenta poemas que compõem este ciclo.
Yracyl evoca pirâmides e mausoléus, pedras lavradas e páginas escritas, casas e mobílias domésticas, álbuns e retratos contra o mortal esquecimento, pois “a grã ceifadora não perdôa / se o coração do homem já não sôa”… “porque é preciso não morrer de todo”.
Num breve antelóquio, Antonio Carlos Secchin considera esta poesia uma “ode ao humano”. Tem razão. Com estilo conciso, exacto e seguro, percorrido por um fio de lirismo, oxalá Izacyl Guimarães Ferreira atinja Portugal e encontre apreciadores. Veja-se:
“O sonho é prosseguir, continuar, / como o prazer do amor e toda a caça / a eternizar o instante e expondo a raça, / é não perder-se no pó que se espalha / ou na limalha a dispersar-se à toa, / é perpetuar-se em pedra, ser pessoa.”

quarta-feira, 30 de março de 2011

O lugar dos idosos

Não basta discutir a sinonímia para reclamar que os idosos podem não ser «velhos». É preciso ir mais longe e notar que os costumes no nosso tempo não correm de feição para os seniores. Estorvam como trastes fora de uso sendo todavia reclamados para o lugar onde realmente uma necessidade grita por eles.
E eles acodem. São outra vez pais para os netos (e agora, felizmente, com outra disposição e maior disponibilidade), são caixa multibanco doméstica para a quantia que falta, são o biscateiro pronto para a bricolagem urgente ou o parecer oportuno. Então, sim, a família festeja por os seus idosos estarem ali ainda para as curvas e não arrumados no sótão.
Festejam eles próprios por se sentirem úteis, com lugar aberto. Mas quem cuida de lhes perguntar como se sentem sob o peso dos anos vividos, os desgastes, as queixas do corpo? Quem se dispõe a conter as pressas para conversar um pouco com os  idosos que vê cercados de solidão, ensimesmados e melancólicos, sentados pelos cantos, ansiosos de contacto humano para ficarem de repente animados, comunicativos, dir-se-ia quase rejuvenescidos?
Escasseiam os ouvidos abertos e multiplicam-se os «velhos» porque, de facto, as populações europeias em geral estão a envelhecer e a portuguesa não é exceção. Nem sobra teto onde caiba tanta gente reformada, aposentada, pensionista ou sem pensão nenhuma, pois a procura excede a oferta. Entretanto reina, com a força de um dogma, o culto das imagens de juventude, culto tão forte que parece fazer esquecer o infalível envelhecimento a quem há-de viver para tanto.
Diluiu-se a consideração tradicional em que eram tidos os idosos no seio das famílias e das comunidades. Nos países ocidentais, onde mais se implantou o consumismo e o culto da juventude, cresceu também, com a população idosa, uma tendência para encarar os «velhos» como refugos descartáveis do sistema de produção em crescente desumanização. Mas outra é a consideração e mesmo o respeito que envolve essa população nos países orientais.
Em algumas dessas sociedades, os idosos mantém uma autoridade e até um prestígio entre nós já surpreendente. São povos, no entanto, no limiar do consumismo e pouco interessados em erguer o ícone da juventude ao máximo esplendor, pois nem pressa têm de empurrar meninos e meninas para a idade adulta.  Podem afirmar, com mais propriedade do que nós, que quando um idoso morre, é uma biblioteca inteira que desaparece.
Realmente, é durante uma longa vida que se acumula e decanta a experiência do mundo. Saber ouvir as vozes da experiência vivida ajuda a melhorar o conhecimento do passado para melhor compreender o presente e perspetivar o futuro. Vale sobretudo para ativar as memórias.
Justa e certeira é, aqui e agora mais que nunca, a tese de Gandhi: via na forma como os animais eram tratados a marca de uma degradação da humanidade. O culto do novo em contínua (meteórica) renovação, na sociedade do desperdício, fica assim com a culpa de uma atroz desvalorização do ser humano. Será esta a dor que empana o olhar de tantos idosos?