segunda-feira, 30 de maio de 2016

As gerações da globalização

solipsism.jpgMostra o teu lado selvagem, diz a publicidade ali no cartaz. Exposto na parede da confeitaria, não promove somente a barra de chocolate ou a bebida energética que os jovens consomem: promove sobretudo o lado selvagem acreditando que o encontra espalhado e latente, à espera do sinal para se mostrar. Formatadas, as novas gerações gostam de agressividade para afirmarem o próprio ego, a exemplo dos heróis invictos que, de peitos enfunados, enfrentam e esmagam qualquer assomo de resistência.

O lado selvagem campeia em cenas de bullying nas escolas ou de indisciplina nas aulas e na falência da formação escolar. Talvez venha, embrionário, das crises por que passa a estrutura familiar. Mas o ambiente da rua, do bairro, da cidade, do país, do continente e do mundo avança no caminho selvagem tão generalizadamente que estamos perante uma vaga que um novo tempo impõe.

E assim as novas gerações acham perfeitamente natural que os heróis do chuto na bola ganhem cabazes de milhões nem se importam com o preço que pagam para entrar nos estádios pois acreditam no sonho americano mesmo em Portugal. Ouviram os pais a recordar os tempos difíceis que viveram e agora as novas gerações vêem as coisas feitas e arrumadas, tudo organizado. É tempo de festa, haja música, muita música, concertos monumentais, para quê marrar no estudo como as meninas e os meninos queques, ou atender profes de esquerda a dizer que é preciso ter causas, ideais, princípios?
A melhor ideologia é a do mercado, com a cultura das grandes marcas, o conforto da mentalidade estereotipada, a consagração dos gostos e dos costumes kitch. Ser português importa pouco, basta ser habitante e consumidor, portanto longe de questões como saber distinguir o que é patriotismo do que seja nacionalismo. As novas gerações dispensam a cultura geral tão facilmente quão a leitura de informação diária; não entendem de política e tardam a definir projectos de vida supondo que estão disponíveis para a melhor oportunidade por vir.
As novas gerações ignoram por que não querem saber. A globalização (do ensino, da cultura de massas, do espectáculo non stop, do consumismo como estilo de vida) deu-lhes, subrrepticiamente, a matriz essencial do desiderato que importa. Os donos disto tudo podem continuar descansados: poucos são os que se espantam vendo Barack Obama andar por Europa e Ásia a propagandear o famigerado, monstruoso e inaceitável tratado de comércio ao serviço das maiores empresas transnacionais da poderosa nação a que preside.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O mundo dos bárbaros


bárbaros.jpgUm vento de insânia, tenebroso e gélido, atravessa os continentes e parece atordoar os cérebros, eclipsar os direitos humanos, transformar os princípios éticos ou a própria decência civil em toleima anacrónica. Trump, candidato estado-unidense à presidência, repete frases bombásticas de estarrecer, no Brasil o golpe de Estado de Temer é escândalo posto em cima de um monte de escândalos (veja-se o retrato dos ministros do “governo de gestão” que até já quer mudar a Constituição), Uribe, presidente da Colômbia, apelou em Miami, em cimeira “Concórdia”, por uma intervenção militar de “forças armadas democráticas” na Venezuela em apoio da oposição e, sem dúvida, para enterrar a Revolução Bolivariana, Cristina Kirchner, após doze anos a morar na Casa Rosa argentina, e seus filhos enfrentam seis acusações de corrupção. Na (des)União Europeia há cada vez mais países em derivas políticas radicais quase incríveis, como na Áustria, Dinamarca e França austeritária com novas leis laborais impostas por decreto.

Na Indonésia, o presidente eleito promete eliminar criminosos matando-os, prender manifestantes e teria muito gosto se tivesse violado também uma tal freira bonita. Duterte, novo presidente das Filipinas, quer mudar a Constituição e aplicar “linha dura” na governação (em campanha já ameaçava matar “traficantes”) e desafia a China dispondo-se a reivindicar umas ilhas em disputa. Tudo isto, apanhado num simples relance, deixa uma pessoa estupefacta, de boca aberta: estará o Mundo entregue aos bárbaros?
Olhando um pouco ao lado e girando o globo, está a Rússia rodeada mais e mais por forças e aliados dos Estados Unidos. Na Ucrânia, antigo “celeiro da Europa”, Yanukovych ganhou a presidência em 2010 numas eleições perfeitamente democráticas (mas o que vale hoje a democracia?), o parlamento destituiu-o e ele exilou-se em 2013 para ser substituído por Poroshenko, pró União Europeia e NATO. No Egipto, Morsi, da Irmandade Muçulmana, venceu as primeiras eleições democráticas do país mas foi deposto em 2013 por golpe de Estado do general Al-Sissi que, com nova Constituição, declarou a Irmandade “terrorista” e legalizou a pena de morte, pelo que o tribunal condenou 529 pessoas num único dia, aumentou a repressão (mortos 595 manifestantes pró-Morsi em 14-08-2013, outros 152 condenados, jornalistas perseguidos, etc.), mas atenção, Al-Sissi não é ditador! (soube entregar duas ilhas à Arábia Saudita em troca de grande ajuda financeira para as forças militares egípcias).
E na Turquia? O presidencialista Erdogan sabe jogar em tabuleiros diferentes sempre a ganhar, acusam-no de corrupção mas o homem defende-se, persegue opositores, prende e leva julgamento jornalistas mesmo estrangeiros para os quais o partido curdo não é “terrorista”, e não lhe falem de direitos humanos, de refugiados ou do acordo que fez com a Alemanha de Merkel. É este o mundo dos bárbaros: inimigos da civilização, da dignidade humana, da justiça.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Considerando a Vida...


planeta.jpg
A notícia correu há dias e… qual a novidade? Nenhuma. Apenas a de que a sonda Kepler, disparada há anos para fora do nosso sistema planetário - ou seja, para lá do cantinho onde o planeta azul gira a circundar o Sol, o nosso solzinho que tanto nos atrai e anda a esconder-se atrás de nuvens invernosas desta Primavera sombria – que a sonda, dizia, funcionava e que enviara imagens de muitos outros sóis também com sistemas planetários e planetas provavelmente idênticos à mãe-Terra…
Ora pois, novidade nenhuma. Qualquer cabeça munida de cultura geral suficiente não ignora com certeza que abundam no cosmos milhões e milhões de estrelas, sóis e mais sóis a brilhar dentro dos seus sistemas planetários. De resto, basta abrir bem os olhos e considerar o céu cósmico onde avulta a esplendorosa “estrada de Santiago”, designação de antigos caminheiros em peregrinação a Santiago de Compostela que corresponde, em astronomia, à galáxia inteira onde o nosso sol ocupa um cantinho…
Considerar o céu, disse, praticando conscientemente um pleonasmo, porque con-siderar é, etimologicamente, estar com o sidério, espaço sideral tão vasto e maravilhoso que por vezes até podemos ficar em contemplação, siderados (perplexos, atónitos, atordoados, fulminados). Realmente, a sonda Kepler apenas atingiu os arredores do nosso sistema planetário e recolheu imagens do que sabemos que por lá existe. Na galáxia a que pertencemos existem milhões e milhões de incontáveis sóis e planetas, buracos negros poderosos que tudo engolem, e, mais longe, outras galáxias, algumas em espectacular colisão e, sobretudo, espaço, imenso espaço, infinito espaço em expansão.
A experiência viva que um mínimo de conhecimento astronómico nos pode dar conduz inevitavelmente à percepção de que não será colada à dimensão terrena que uma consciência humana chegará a compreender algo do fenómeno Vida. Carl Sagan gostava de dizer que somos feitos da matéria das estrelas. É uma boa forma de dizer o mesmo.
Precisamos de dilatar a imaginação pela imensidão celeste (mexer as pernas da imaginação é exercício dos mais salutares!): por exemplo, atravessar a nossa galáxia no seu ponto mais estreito, demoraria, em anos-luz, tão poucos que pudessem caber na escala humana mais louca? Iremos deparar-nos com a questão essencial: quem somos, o que fazemos aqui. A resposta está na abóbada cósmica, povoada por matéria nas variadas formas que pode assumir; matéria, leite materno, afinal indestrutível, só transformável; matéria que é, na sua outra dimensão, espaço-tempo.
Nota final. Escrevi estas linhas evocando o saudoso amigo arqº Fernando Lanhas, pintor de múltiplas ocupações e preocupações, imaginando-o em conversa comigo e sentindo a falta que me faz.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Brasil: “Crime e Revolução”


O imbróglio político que vai crescendo no Brasil com vista à destituição da presidente da República, Dilma Rousseff, trouxe-me à lembrança uma leitura ainda recente: o romance Crime e Revolução. Com esta obra, o seu autor, Carlos Rangel, brasileiro, ganhou em Portugal o prémio literário Carlos de Oliveira e o município de Cantanhede, que instituiu o prémio, publicou o livro em primeira edição.

brasilia.jpgÉ possível que a obra, inédita quando foi premiada, não circule nem seja conhecida no Brasil, pois a tiragem da primeira edição portuguesa (2015, 189 pp) foi de apenas 250 exemplares, certamente não destinados à distribuição no mercado normal. Logo, apesar do prémio atribuído e da edição feita, o romance pode continuar de facto no limbo dos inéditos literários de ambos os lados do Atlântico. Mas quem o lê, ou, no meu caso, relê, é facilmente tentado a colar a súmula da narrativa à actualidade brasileira.
Na verdade, o tortuoso processo do impeachment é movido contra Dilma com base em acusações elaboradas por líderes do parlamento e do senado que enfrentam graves acusações de corrupção pendentes. Logo, ganha base a advertência: o processo da eventual destituição da presidente procura livrar os líderes corruptos da justiça. É este o pano de fundo do romance premiado de Carlos Rangel.
Realmente, a corrupção dos políticos no Brasil parece endémica. Em Crime e Revolução o tema são acontecimentos revolucionários de 1930-32, a alternância de partidos afins no governo, revolução e contra-revolução para que tudo continue sem emenda. O autor focaliza a narrativa na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, onde os revolucionários vencidos vão exilar-se para, escapando à justiça dos vencedores, conspirar e reconquistar o poder.
Carlos Rangel mostra conhecer bem aquela zona fronteiriça, os ambientes políticos partidários regionais e federais. Talvez se inspire, ficcionando a partir de episódios reais escabrosos, divulgados ou documentados, de certos abusos de poder de “coronéis” e seus sequazes locais que chegam a matar adversários. Enfim, o crime mais violento ou o mais sórdido e a revolução malparida dançam, abraçados, neste romance.
Resulta, assim, numa reflexão bastante amadurecida sobre processos revolucionários desencadeados naquele vastíssimo país lusófono e os resultados concretos que, por tal via, poderão ser atingidos. Neste quadro, o autor chega a introduzir duas das suas três personagens principais no partido comunista brasileiro dos anos ’30-32 e a “formar” uma delas, militante, rapariga burguesa, em Moscovo. A conclusão que transparece envolve-se de melancolia.
Carlos Rangel revela-se em Portugal com esta obra bem estruturada e com óbvias qualidades literárias (a diegese é percorrida por um fio que associa companheirismo, lealdade, afeição e amor). Merecia o galardão que a distinguiu. Pena será que nem portugueses nem brasileiros consigam vê-la ao seu alcance.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

A lâmpada de Edison

Edison dizia que o génio consiste numa simples migalha de Inspiração e que o Trabalho muito suado é que era a coisa quase inteira menos a migalha. Mais ou menos nestes termos falava o homem, cientista desprestigiado, de como realizava as suas invenções - e foram mais de duas mil, de acordo com a história. Estaria a referir-se à lâmpada eléctrica de incandescência que tanto o fez rabiar até que acertou no filamento de carbono?

v.volegov.jpgÉ verdade, o homem trabalhava deveras e apaixonava-se pelos seus projectos. Mas já houve quem julgasse que até trabalhou em demasia, apontando para a sua invenção concretizada em 21-10-1879: a velha ampola de vidro ainda se mantinha acesa, algures, na casa-museu que o evoca, irradiando luz e calor. Quer dizer, Thomas Alva Edison (1847-1931) trabalhou tão bem que, talvez já a pensar no seu interesse como empresário, escolheu, entre os diversos filamentos experimentais, aquele que tivesse uma duração conveniente.

Nesse caso, parece que Edison foi autor de uma outra invenção (recorrendo não só à pilhagem de inventos alheios). Descobriu a obsolescência programada dos bens de consumo que por todos os lados hoje nos assalta e devora. Pois não se dizia que, ao fim de uma cambada de anos, a lâmpada daquela festejada data ainda continuava a funcionar?

A iluminação com tubos de néon, posterior, poupava electricidade e produzia menos calor, mas seguia a regra: ao cabo de uma cifra de horas de utilização acabava a relampaguear (e nós em dúvida: como descartar sem perigo os tubos fundidos no ambiente). Agora temos a grande novidade, a luz dos diodos. São de custo elevado mas podem convir porque garantem uma também elevada poupança de energia.
Em que ficamos? Na mesma. Anuncia-se uma próxima novidade nesta matéria absolutamente revolucionária: vão aparecer no mercado novas lâmpadas e alguns outros aparelhos domésticos concebidos por uma nova tecnologia tão avançada e perfeita que lançará definitivamente no lixo tudo o que temos vindo a usar e conhecer.
A nova tecnologia chega, portanto, envolvida nas habituais epifanias que, com esperança inesgotável, acolhemos as novidades: consome de electricidade menos que a lâmpada de Edison, menos que os tubos de néon e até menos que os recém-chegados diodos. E agrega ainda outras conveniências importantes, dizem sem esclarecer os anunciantes. Apenas não cuidam de nos prevenir que teremos de continuar a ir à loja e ao mercado para abastecer o sistema que do capitalismo tem nome e proveito. [Imagem: motivo central de pintura por Vladimir Volegov.]