Mostrar mensagens com a etiqueta massificação. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta massificação. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Governo de multimilionários


O termo perdeu força, devia ser actualizado. Um milhão de euros ou de dólares já não chega para colocar quem o possui na, outrora invulgar, categoria de ricos. Verdadeiramente ricos são agora, como bem sabemos, os donos de incontáveis milhares de milhões, tantos, tantos, e a crescer, a crescer…
Girando com rapidez, as rotações centrípetas do capitalismo esvaem as periferias em direcção ao eixo central, onde se acumulam. Os Estados Unidos são o eixo económico-financeiro do Ocidente sendo também a nação mais poderosa e rica pátria (embora a mais endividada) de quase todos os maiores multimilionários que este mundo criou; pátria, também, e decerto não por acaso, onde o seu novo presidente eleito, o multimilionário Donald Trump, junto com os membros do seu gabinete, somam tanta riqueza multimilionária que tal Governo será recordado, sem dúvida, como um caso histórico fenomenal metido na Casa Branca. Novidade estreme é, porém, a vontade súbita que os senhores gerentes de tão colossais fortunas se disponham a governar.
Prometem governar a nação federal conforme governam as suas empresas - bancos, fundos financeiros, investimentos, marcas transnacionais. Mas será isso possível, incluso com a celestial ajuda de todos os santos? De facto, os multimilionários administram as suas empresas orientando-as de maneira a aumentarem os lucros; ora, feitos ministros (ou “secretários”, como por lá se usa), se vão governar tal qual, não irão servir os cidadãos, apenas aumentarão os lucros…
Todavia, a entrada de tantos multimilionários na governação estado-unidense é novidade apontada num outro sentido. Então já não lhes interessam mais as reuniões do Clube Bilderberg, querem mesmo liderar o órgão cimeiro político-administrativo? Isto é, vão dispensar a cambada do sistema bipolar republicano-democrata e mandá-la para a reforma?!
Ouviram? Um estouro aterrador percutiu nas paredes e nos tímpanos dos presentes anunciando o Diabo, que surgiu no palco envolto numa nuvem de fumo. Mostrou o seu jogo.
Os multimilionários são já os donos disto tudo. E sabem tudo. Conhecem as regras do sistema, chega a hora grande de os empresários, homens de colossais negócios, substituírem políticos, diplomatas, jornalistas e arautos de regulamentações incómodas.
Empresários sabidos, sem dúvida. Até sabem o que pensamos, consumimos e fazemos, quer dizer, todos nós, os milhões de entregues à americanização e ao consumismo que em cada país frequentamos os centros comerciais. Naquelas suas mãos concentram terras férteis e recursos hídricos que produzem os alimentos e os artigos que as populações urbanas se habituaram a consumir: bananas e calças, livros e cereais, crédito e vinhos, fotocópias, televisores e smartphones tal como água potável e o oxigénio que respiramos (bens esgotáveis, que se valorizam).
[Pintura de Iman Maleki, artista híper-realista iraniano.]

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A cultura do decrescimento

Serge Latouche, economista e pensador francês, distinguiu-se na defesa de uma causa impopular: a cultura do decrescimento. É autor de vários livros em que justifica as suas ideias por sinal marcadas pela influência recebida de François Partant, outro economista francês. De facto, Latouche co-fundou e dirige La ligne d’horizon, plataforma dos Amigos de Partant dedicada à difusão das suas teses.
Eu apoio, desde a década de ’70 do século passado, a bandeira do decrescimento que, como todos sabemos, se mantém desde então sob rigoroso apagamento. Porém, alguns livros de Latouche foram publicados em Portugal e também no Brasil. Não há dúvida, paga-se um preço nada razoável por se ser crítico do consumismo, do crescer por crescer, porque, para este autor, o crescimento ilimitado é incompatível com um planeta limitado; logo, quem tal diz, “é louco ou é economista”.
O autor pede uma descolonização do nosso imaginário de consumidores compulsivos. Afirma que “a verdadeira riqueza consiste no pleno desenvolvimento das relações sociais de convívio num mundo são”. Ora este objectivo “pode ser alcançado com serenidade, na frugalidade, na sobriedade, até mesmo com uma certa austeridade no consumo material, ou seja, aquilo que alguns preconizaram com o slogan gandhiano ou tolstoísta da simplicidade voluntária.”
Como haveríamos de estranhar o prolongado apagamento das ideias de Serge Latouche (n. em Vennes, 12-01-1940), que o mesmo será dizer da cultura do decrescimento? Ele vai ao ponto de contrariar a ocidentalização do planeta… Em suma, puxa para um lado e o mundo vai avançando para o outro.
Registo agora um caso pessoal intrigante. A Universidade Estadual do Sudoeste Brasileiro indica o meu nome como tradutor da obra Introdução à Cultura do Decrescimento, de Latouche e que a edição se deveu, em 1973, a Publicações Europa-América. Nessa obra se terá baseado um curso de extensão transdisciplinar cujo programa a Universidade transcreve. Ora eu tenho memória (remota!) de algo semelhante; isto é, sem o poder afirmar, acho que traduzi realmente para a PEA, naqueles anos, diversas obras, uma das quais com o tema versado por Latouche, mas o catálogo geral da BN não a regista e eu não a tenho em casa. Aliás, o tema foi aqui abordado, em "Enfim, o decrescimento»", 01-03-2009.
As primeiras edições portuguesas deste autor são recentes (da Piaget e de Edições 70), portanto muito posteriores a 1973. Como explicar, esclarecer, entender isto? Poderá a ajuda de um leitor benévolo e amável esclarecer o enigma?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Leitura mata Literatura


Uma investigação de peritos em matemática, anunciada recentemente, analisou o enredo de uma quantidade enorme de romances publicados e, suponho, em leitura na actualidade. Não leram tal quantidade de ficção. Elaboraram um algoritmo, aplicaram-no aos textos e concluíram que existem apenas seis formas básicas de ficções, não mais.
Inspiraram-se em Kurt Vonnegut, escritor dos EUA, autor de uma divertida palestra sobre o tema, porque, sem histórias novas para narrar, como bem sabemos, as ficções andam a repetir-se de mistura com minguados recursos a ingredientes e temperos. O mundo dos consumos literários estagnou de tal modo que a Academia Sueca, ribalta do prémio Nobel, já teve de ouvir que não resta mais diegese fresca para servir. Ficções românticas, científicas, policiais, de espionagem e outras debatem-se com receituários esgotados e escrita criativa quanto baste.
No entanto, o mercado livreiro não aparenta crise. Os escritores escrevem, as editoras publicam, os livros amontoam-se por todo o lado e começa a falar-se de uma “pós-literatura”. O que pode ser ou será mesmo… isso?
Assim se faz lembrar o caso de Albino Forjaz de Sampaio, autor tão popular no início do séc. XX português que foi acusado de ser autor de tanta leitura em circulação que estava a matar a Literatura (ler crónica de 31-10-2016). O tema é interessante, logo irrecusável. Até que ponto um gosto padronizado resultante das leituras populares pode rebaixar o nível da educação estético-literária das populações?
Vejamos de relance a situação. O número de editoras cresceu exponencialmente no país mas são as editoras principais, presentes no mercado, que o abastecem com abundância nunca vista. As fictícias, simples chancelas, ou “marcas”, praticam tiragens ínfimas de cada obra (são, frequentemente, edições dos próprios autores e, portanto, nem chegam, ou mal chegam, ao mercado).
É, pois, do lado da edição comercial – altamente concentrada em grupos – que chovem infindos lançamentos de ficções e mais ficções pleonásticas, meras repetições assinadas por nomes internacionais nobelizados, celebrizados, aclamados por milhares ou milhões de leitores-consumidores. São autores de obras extensas como léguas da póvoa, os tradutores arregaçam as mangas e têm que dar o litro. Os leitores nem tanto: desistem e deixam a coisa arrefecer no arrumo doméstico.
Aumentam os desperdícios de papel e da celulose? Estará a degradar-se o gosto literário dos leitores-consumidores desta produção editorial cacofónica? E sairá daí, concretizada, aquela predita “pós-literatura”?

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O jogo e o jogo da bola

cavalo.pau.jpgReconheçamos este facto: o jogo é actividade lúdica, de índole marcadamente infantil. Jogar é brincar, lidar com brinquedos. É, digamos, diversão com uma bola, nem que seja feita de fio de lã que até o gato doméstico gosta de empurrar com as patinhas, isto é, a pôr a rolar pelo chão.
Aliás, brincar é saltar, ir aos brincos, mexer o corpo aos saltos ou em movimentos para folgar ou divertimento. A etimologia do vocábulo jogo, termo por sinal com uma elucidativa semântica, provém, segundo leio, do latim fôcu-, significando “gracejo, brincadeira, jovialidade, galhofa; divertimento, folguedo, passatempo”. Convimos, então, ou não, que o tempo vai bom para ir na marcha, a caminho da romaria?

Com boa razão a sabedoria das nações preceituava, antes da invasão do consumismo desenfreado e dos tecnocratas no poder, que a ociosidade era mãe de todos os vícios. Ora as crianças sempre brincaram. Precisam de desenvolver os seus processos de crescimento, estão portanto “ociosas” quando brincar é, na idade infantil, ocupação das mais sérias.
Mas… e os adultos? Aqueles adultos que, em espessa multidão histérica, a urrar de alegria e patriótica futebolite, festejaram a vitória portuguesa no campeonato europeu? Também brincavam… como crianças?
Vejamos: qualquer pessoa da minha geração recordará os três ff glorificados por Salazar no dia 10 de Junho de 1944 com a inauguração do primeiro Estádio Nacional no Vale do Jamor. E mais: poderá dizer todo o espanto que foi acumulando com a incrível expansão popular dos três ff, em especial os do futebol e de Fátima (mas sem esquecer Amália fadista erguida à altura de Pessoa no panteão nacional) e perceber que tal se ficou a dever, sempre, a doses cavalares injectadas atrás das orelhas do povo. Documentará o seu espanto lembrando o 25 de Abril e os seus dias de brasa, ao surgir na tv um fulano a clamar que, com a democratização, já todos podíamos encher os estádios “finalmente em liberdade”, como se a mudança de regime operada transformasse de súbito, num passe de mágica, o futebol, alienante no tempo da ditadura obscurantista, em abençoada catarse, espectáculo bom para crescentes massas de adultos sentados a ver jogos de profissionais da bola com uma presumível inocência infantil.
Posso testemunhar: na redacção do meu jornal, a primeira secção desportiva, assim designada, apareceu apenas em meados dos anos ’60. E Salazar, hoje, nem para varrer os balneários teria entrada nas majestosas Academias onde é ensinada a arte suprema de chutar a bola com a precisão de tiro de carabina de cano comprido. Naturalmente, o jogo da bola não é nenhuma ciência exacta; é um jogo de sorte e azar como tem que ser quando um lado vence e o outro acaba vencido.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Nacionalismo e patriotismo


bola.jpgOs políticos que mais se revezam nos órgãos informativos têm na boca, sempre pronta, uma palavra: nacionalismo. O termo tem significados e sentidos diversos, mas o contexto habitual das frases descarta a semântica. Ao nacionalismo invocado, sempre em sentido pejorativo, opõe-se o antónimo: globalização.

Aquela gente mostra-se inabalavelmente convencida de que a globalização - nas ideias, nas mentalidades, nos comportamentos - é o único caminho a seguir por nações, empresas e cidadãos para progredir e prosperar neste nosso abençoado tempo. São políticos iluminados por grande experiência de vida, que já integraram governos ou aspiram a ter lugar num próximo a formar e que sabem colocar-se em posições estratégicas para vencer. Não têm dúvidas: este tempo é de globalização, ou melhor, de competição.
O nacionalismo foi assim arrumado na prateleira dos conceitos desprezíveis, obsoletos ou quase bacocos por quantos vêem Nova Iorque no centro do mundo e Washington como sua metrópole ideal. Mas, sem nacionalismo, sem nacionalidade, onde pára, onde pode aparecer o patriotismo? Por que motivo este sentimento está a ser tão radicalmente expurgado do discurso politicamente correcto?
À evidência, abunda “patriotismo” futebolístico. Bandeiras nacionais flutuam ao vento por todo o lado, em apelos para que Portugal vença o campeonato e ganhe a taça. Posso testemunhar: nas ruas da minha cidade, quase desertas nas horas do jogo, ecoam gritos, brados, urros impressionantes - altifalantes e gargantas humanas em coro a vociferar a plenos pulmões.
De facto, somente formações políticas minoritárias, com reduzida expressão eleitoral, mantém patriotismo nos seus vocabulários. Hipnotizadas pelo golo na baliza, as massas populares deixaram-se alienar, ficaram sem pátria. Transformaram-se em “cidadãos da bola”, género novíssimo de cidadãos do mundo, esperando talvez que o futebol acabe com o desemprego, a pobreza do crescimento económico, a insegurança social.
Todavia, a globalização tem servido para quê? Para os milhões dos ricaços viajarem pelo mundo sem passaporte e se esconderem nos paraísos fiscais. Para deslocalizar empresas e explorar mão-de-obra barata, sem direitos e tantas vezes infantil, inspirando por cá, na União Europeia, os défices orçamentais, prodigiosos cavalos de Tróia prontos para tudo menos arrancar unhas em vez de no-las ir cortando até ao sabugo.

O sentimento patriótico, livre de egoísmo e exaltações nacionalistas, isto é, educado na solidariedade internacionalista com todos os povos democráticos, requer o sentido da nação a que se pertence para poder nascer e animar o cidadão. Sem patriotismo nenhuma cidadania estará completa. Assim será possível que cada habitante deseje e trabalhe verdadeiramente pelo bem da pátria que é nossa.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

A lâmpada de Edison

Edison dizia que o génio consiste numa simples migalha de Inspiração e que o Trabalho muito suado é que era a coisa quase inteira menos a migalha. Mais ou menos nestes termos falava o homem, cientista desprestigiado, de como realizava as suas invenções - e foram mais de duas mil, de acordo com a história. Estaria a referir-se à lâmpada eléctrica de incandescência que tanto o fez rabiar até que acertou no filamento de carbono?

v.volegov.jpgÉ verdade, o homem trabalhava deveras e apaixonava-se pelos seus projectos. Mas já houve quem julgasse que até trabalhou em demasia, apontando para a sua invenção concretizada em 21-10-1879: a velha ampola de vidro ainda se mantinha acesa, algures, na casa-museu que o evoca, irradiando luz e calor. Quer dizer, Thomas Alva Edison (1847-1931) trabalhou tão bem que, talvez já a pensar no seu interesse como empresário, escolheu, entre os diversos filamentos experimentais, aquele que tivesse uma duração conveniente.

Nesse caso, parece que Edison foi autor de uma outra invenção (recorrendo não só à pilhagem de inventos alheios). Descobriu a obsolescência programada dos bens de consumo que por todos os lados hoje nos assalta e devora. Pois não se dizia que, ao fim de uma cambada de anos, a lâmpada daquela festejada data ainda continuava a funcionar?

A iluminação com tubos de néon, posterior, poupava electricidade e produzia menos calor, mas seguia a regra: ao cabo de uma cifra de horas de utilização acabava a relampaguear (e nós em dúvida: como descartar sem perigo os tubos fundidos no ambiente). Agora temos a grande novidade, a luz dos diodos. São de custo elevado mas podem convir porque garantem uma também elevada poupança de energia.
Em que ficamos? Na mesma. Anuncia-se uma próxima novidade nesta matéria absolutamente revolucionária: vão aparecer no mercado novas lâmpadas e alguns outros aparelhos domésticos concebidos por uma nova tecnologia tão avançada e perfeita que lançará definitivamente no lixo tudo o que temos vindo a usar e conhecer.
A nova tecnologia chega, portanto, envolvida nas habituais epifanias que, com esperança inesgotável, acolhemos as novidades: consome de electricidade menos que a lâmpada de Edison, menos que os tubos de néon e até menos que os recém-chegados diodos. E agrega ainda outras conveniências importantes, dizem sem esclarecer os anunciantes. Apenas não cuidam de nos prevenir que teremos de continuar a ir à loja e ao mercado para abastecer o sistema que do capitalismo tem nome e proveito. [Imagem: motivo central de pintura por Vladimir Volegov.]

segunda-feira, 25 de abril de 2016

O Livro no seu Dia

livro-1.jpgAnteontem, sábado, tivemos em comemoração o Dia Mundial do Livro e do Autor. Aproveitámos bem esse dia (enredados nas múltiplas redes que lançam por cima de nós e dos livros) para descansar das nossas ralações e tormentos? O gutenberguiano objecto anda a sofrer maus tratos e o seu Autor, reduzindo-se à condição de produtor de textos, vulgo conteúdos, anda por aí a esbanjar status e a proletarizar-se como uns jovens jornalistas tarefeiros pagos a recibo verde.

A auréola que os autores tiveram outrora apagou-se de todo. Os autores agora são escreventes, fabricantes de textos para o mercado, algo que uma máquina digital, que até já conseguiu compor bons poemas em Coimbra, poderá fazer ainda melhor, além de mais barato e depressa, esperemos só um bocadinho para ver. Depois, esperando um pouco mais, iremos atingir a maravilha suprema: a máquina digital capaz de compor um romance, digamos romance por exemplo, aplicando ingredientes de teor diegético e características de estilo ditados à máquina, via marketing, pela maioria dos leitores-consumidores…
Obviamente, os actuais fabricantes de textos ficarão dispensados, desempregados. E o que restar então de autêntica Literatura será pérola rara perdida na confusão imensa das bagatelas do consumismo com os valores. A consumar-se ficará o que venho prognosticando desde há anos – a extinção da Literatura.
De facto, a erosão da arte literária tem vindo a ser constante. A educação do gosto dos leitores foi esmagada pelo cilindro compressor da massificação. O ambiente da cultura e da literacia em geral, igualmente, em vez de melhorar, dá sinais de regressão.
O mundo literário vai sendo percorrido e dominado por autores de best-sellers internacionais (não como nuvens de gafanhotos mas não menos vorazes). O objectivo que um autor hoje ambiciona atingir é vender muito no seu país de modo a entrar na internacionalização que as traduções para outras línguas lhe permitirão. Assim, com uma mesma obra feita, faz mais e mais ganhos.
Os livros destes autores atravessam fronteiras e são publicados pelas editoras “normais”, isto é, que fazem negócio com os livros, fornecendo livrarias e grandes superfícies onde aparecem as novidades aos montes, de capas vistosas. Se uma editora “normal” publica um ou outro autor que ainda vende pouco, concede algo excepcional (aceita o fraco negócio). Explica-se, portanto, a curiosa circunstância de, agora, os autores que escrevem as suas obras tenham que sair e trabalhar afincadamente para as vender em proveito dos editores, que até poderão ser os próprios autores…

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Estamos na 3ª GG ?

guerra.jpgE entraremos nela de manso, tão devagarinho que pouca atenção suscita? Apenas uns fulanos tidos como lunáticos profetas da desgraça insistem que vem aí a Terceira Grande Guerra, mas não assustam sequer as criancinhas. Porém, de repente, milhões de refugiados (quando não se afogavam) cruzavam o Mediterrâneo e aportavam à Europa do tratado de Schengen e obrigavam o velho continente adormecido a acordar.
Realmente, vendo bem, havia lá longe uns fogos esparsos, a crepitar aqui e ali, onde cheirava a petróleo. Afinal, coisa pouca (apesar de envolver a Arábia Saudita e a Turquia, aliados firmes dos EUA). Até que o papa Francisco, apontando para a Síria, advertiu que a guerra agora estava a fazer-se aos pedaços.
Ninguém sabe nada desta guerra, apenas que já começou, e ainda menos que nada de quanto tempo vai durar e como irá terminar. A Segunda durou uns seis anos (1939-45) e, além das destruições materiais, de inenarráveis sofrimentos, ceifou uns 50 milhões de vidas. Mas pudemos descansar - prometia ser a última!
Todavia, as despesas militares mundiais têm vindo a aumentar desde 1998, atingindo já uns 45% apesar do fim anunciado da guerra fria. Segundo a ong SIPRI, de Estocolmo, a NATO continua no topo da despesa mundial militar, representando dois terços. Apenas 15 países gastam 80% da despesa militar mundial: EUA, China, Reino Unido, França, Rússia, Alemanha e Japão entre os oito restantes. Entretanto Washington anunciou há dias um aumento considerável da presença militar EUA nos países europeus que rodeiam a Rússia, de modo que o orçamento do Pentágono para 2017 vai crescer ainda mais.
Esta rematada loucura de tamanha corrida às armas é sustentada pelos contribuintes de cada país (e, por sinal, num período de acentuado recuo de crescimento económico geral, ou mesmo de estagnação, que parece atravessar o mundo inteiro). Tanta loucura é possível porque se processa sobre uma manta de amorfismo das massas passivas, desligadas da política e da participação cívica, que os lóbis dos fabricantes de armamento, pressionando os governantes, aproveitam. É esse o grande negócio do século XXI, mais apetitoso do que fabricar remédios ou traficar drogas, sexo e etc.
Evidentemente, ninguém deseja a guerra, mas países da Europa já a declaram como “guerra ao terrorismo” (de quem, contra quem?) sem disposição para reconhecerem o problema dos refugiados. Contemos nós os milhões de sírios, a somar aos milhões de palestinianos, afegãos, iraquianos e os tunisinos, líbios e etc. do magrebe que fogem das bombas.

Estamos realmente metidos noutra grande guerra? A Terceira? E onde soam uns sonoros e veementes clamores em defesa da Paz, pelo menos alguns, que não se fazem ouvir?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Não sabem nem perguntam

petrol.jpg

O modelo único da informação jornalística apurou-se tanto que impera. Normalizado, espalha-se pelos jornais, canais de televisão, rádios, onde se atenuam e desaparecem as diferenciações caracterizadoras. Alterações do modelo corrente, estabelecido e consagrado pelas conveniências, tornaram-se desvios algo aventureiros não só prejudiciais, também perigosos.

A imposição crescente do modelo único da informação jornalística explicará decerto, por um lado, o motivo por que estão desempregados milhares de bons profissionais, e por outro, a indiferença crescente do público por essa monótona informação que, por exemplo, asfixia até à exaustão os jornais (impressos), obrigando-os a correrem para edições digitais. O público vai ficando privado de uma informação livre e plural, isto é, cada vez menos informado e mais desinformado por propagandas intencionais ao serviço de “causas” que envolvem estratégias inconfessáveis. Assim, a informação jornalística (pretensamente honesta, imparcial e objectiva) perde legitimidade enquanto função de relevante interesse social, enquanto, por outro lado, reforça nos leitores a massificação e o conformismo.
Eis como um jornal dito de referência sintoniza quase sem distorção as emissões de Washington e Nova Iorque. Escreve, em Editorial: “Haverá limites ao terror na Síria?” [Ali, os habitantes encontram-se] “entre duas formas de terror: o das forças de Assad, no poder, e o do autodenominado Estado Islâmico. Ambos atemorizam, intimam, matam, em nome dos respectivos fanatismos.” (“Público”, 18-01-2016)
A desmemória apaga o que ocorria na Síria há mais de cinco anos e agora parece contrariar o modelo único da informação. Já não lembra, sequer, que al-Assad, jovem, estudou medicina na Grã-Bretanha e que, no poder e com o seu país em paz, foi alvo de uma vasta campanha de acusações que começou por o declarar ditador, decerto porque o Pentágono e a Casa Branca não gostavam mais do homem, e depois, muito naturalmente, surgiram em Damasco manifestações populares, as manifes geraram alguma violência, a violência aumentou, aumentou ainda mais e rebentou a guerra civil (combatentes jihadistas no terreno de uma linha política anunciada, com armas fornecidas e pagas por quem?), guerra que destrói e já matou, ao que consta, mais de duzentas e cinquenta mil pessoas, enquanto não pára de empurrar a população síria para frágeis batéis através do Mediterrâneo. Refugiados na Europa que suportaram a guerra e Assad durante cinco longos anos de inferno!

É fácil, e cómodo, na informação corrente, igualar as forças do pretenso Estado Islâmico, que soltou os monstros, com as do governo sírio, que os aguenta; mas, vejamos, o que de relevante fica por explicar? Sem explicação ficam os que não sabem nem perguntam. Não sabendo nem perguntando, acabam por não querer saber – vão aos estádios, as novas catedrais, implorar o golo da vitória ou gritar em coro “Fora o árbitro!” “Grande ladrão!”

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Sobre Democracia

meio-dia!.jpg
Diversos povos vivem há décadas sob modelos de democracia tão esvaída que apenas mantém do conceito a forma, não o autêntico conteúdo. É verdade, porém, que falar de democracia remete para um conceito controvertido por inúmeras manipulações ou aproveitamentos oportunistas. Mas o próprio conceito mostra geometria variável apontado para o idealizado “governo do povo pelo povo”, a evidenciar quanto o sistema democrático é projecto inesgotável, em constante realização e devir.

Este sistema torna-se efectivo e legítimo, realmente, na medida em que desenvolva as estruturas económicas, culturais e ideológicas da sociedade, ou seja, a igualdade. Realizar eleições periódicas para apurar a vontade da maioria será, em tal sentido, bem pouco, mas já parece tornar-se uma formalidade, um ritual obrigatório numas quantas sociedades actuais onde dois partidos hegemónicos se alternam no poder. Se os eleitores, em substancial maioria, se repartem, oscilando, por esses partidos ao longo dos anos, estão, em última análise, a desistir da democracia, cristalizando-a.
O poder exercido pelos dois partidos alternantes aproxima-se assim de uma ditadura a funcionar, perigosamente, com fisionomia democrática (e onde haverá ditadura que não seja “democrática”?). As opções eleitorais, restringidas, conduzem as massas para uma passividade que as afasta do dinamismo vivo da autêntica democracia, alheando-as do debate político. Curiosamente, isto tanto pode ocorrer com povos de elevados índices de bem-estar e prosperidade nacional bem como com outros atingidos por grave crise: recessão, estagnação económica, austeridade, desemprego, empobrecimento.
A alternância bipartidária empalidece o vigor da democracia porque mascara a realidade social representando-a resumida a traço grosso (traço duplo na aparência mas, numa afinidade fatal, único). Nestas condições, o simples processo eleitoral dificilmente permitirá a formação do melhor governo. Os resultados eleitorais, diminuídos por crescente abstenção, tendem a seguir muito de perto o teor da narrativa que ecoa nos noticiários dos meios informativos (tendenciosos: omitem o que diz a “outra parte”) e sai da boca dos comentadores (“não há alternativa”, entoa o coro).
No entanto, são os defensores da Verdade Única que reagem imediatamente para lançar alarmes e atoardas delirantes quando o sistema bipartidário da rotina chega ao fim. Declaram o que gostariam de calar: o seu incómodo perante a viragem operada por novos movimentos de opinião social que irrompem e alteram o quadro das forças bipartidárias tradicionais, reagindo contra o estado dos interesses instalados. Contra os negócios, contra a corrupção-cliente dos paraísos fiscais.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A mim, popularidade!

criança.jpg
O nosso espaço público encheu-se de comentadores e de articulistas que opinam na imprensa e na rádio ou têm porta aberta na televisão. São em chusma pródiga, infinita, de gente da política além de treinadores, jogadores, presidentes e etc. do mundo do futebol, actores de telenovela em exibição ou a cambulhada de autores de livros autoeditados. O espaço não sobra, será mesmo acanhado para acolher tanta gente a fluir de todos os cantos, ansiosa por alcançar imagem pública, protagonismo.
A mim, popularidade!, parece ser a exclamação contida no desígnio máximo que mobiliza os estratos da população. Construir uma imagem, senão pública, pelo menos reconhecível, personalizada, vale agora como passaporte para viver e circular de corpo inteiro. Quer dizer, para banir a própria extinção pelo anonimato.
Evidentemente, a popularidade não se confunde com a celebridade. Mas esta, conforme é demonstrado pela sabedoria das nações, bafeja umas raridades, de modo que pessoas de vulgar bom senso acabam satisfeitas com bastante menos. Quando o facto se impõe, basta-lhes um nadinha fugaz de reconhecimento público, seja de multidões, seja de bairro, de paróquia ou da rua onde habitam.
Daí a necessidade de cada pessoa briosa construir de si uma imagem, na pose convicta e convincente de ás da comunicação modelar, de agrado certo, no café e em todo o lado, porque só pondo à prova a crisálida de novato sem treino que nele lateja irá nascer o comunicador. A aparência (a fotogenia, o look), a maneira de falar, toda a sua gesticulação têm que irradiar bom humor, sendo sedutora, sexy. O que se tenha a dizer importa bem pouco e muito mais que seja dito com graça, entre risos, piadas e estórias divertidas.
Parece, realmente, que jamais como na actualidade (isto é, desde o início do segundo milénio), tanta gente se aplique na obtenção possível de alguma notoriedade mais ou menos pública, assim como náufragos esbracejando para não se afundarem de todo no obscuro pélago dos zés-ninguéns. É preciso despertar as atenções, apertar a mão a milhares, espalhar a cara pela cidade e pelo país, ser conhecido e notório, popular como qualquer carinha mediática (porque quem assim as inveja também quer ter nomeada, quer dizer, ter cara com o seu nome apenso). E ninguém tente convencer a gente de que as carinhas mediáticas perdem liberdade pessoal na medida em que sejam conhecidas na rua – serão esses os invejosos…
Sabe-se: o que corre pelo espaço público é artificioso, frívolo, efémero, espectacular. Mas vivemos todos numa instabilidade geral que é, sem dúvida, a maior marca do tempo presente. Nesta situação, a fraqueza da mobilidade social (dissuasora da luta de classes) parece estimular o fenómeno detectável nas massas: a exploração de comportamentos sociais como promoção individual de compensação meramente simbólica.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O mercado literário

Os autores literários não prescindem hoje de uma imagem pública que os projecte como figuras mediáticas no círculo dos seus leitores. Assim, associada, emerge uma ocupação diversa (cuidar da própria imagem do autor) do seu trabalho da escrita, na medida em que esta careça daquela por necessidade de promoção. Nestas circunstâncias, um caso particular como o de Herberto Hélder parece não ter mais condições para se repetir.

Efectivamente, não basta aos autores mandarem para as livrarias obras assinaláveis. Agora precisam de fazer um esforço suplementar, sair de casa e levar em mão essas obras ainda fresquinhas ao contacto directo com os seus possíveis leitores onde quer que os encontrem. O possível renome ou a popularidade de cada autor, sem mais, de pouco valerão no mercado se ele não se faz presente, aparecendo e reaparecendo, falando e seduzindo os auditórios, pois as regras concorrenciais estão definidas: são exactamente os autores de best-sellers, ou que como tal se pretendam, que mais se afanam a promover o que publicam.
Paralelamente, cada autor tenta manter-se na ribalta, habitar o espaço mediático, ter protagonismo com nome e rosto reconhecidos no mercado como marca” de sucesso, além de ganhar prémios, distinções assinaláveis. Outrossim, vai a encontros, faz conferências, participa em colóquios e debates, dá entrevistas e, evidentemente, não falha as feiras de livros e sessões de autógrafos e lançamentos. Com tudo isto e o mais, estes autores constroem a sua imagem pública tendendo então a ser, de algum modo, public relations bem falantes e de agradável presença para vender o que escrevem.
Nestes termos, os escritores, em quaisquer das dimensões possíveis de cada caso (internacional, nacional, regional ou local), integram hoje no seu perfil umas funções de comunicadores quer tenham já a literatura como profissão ou sonhem vir a tê-la. Enfim, longe vai o (recuado, imemorial?!) tempo em que o escritor, ainda que prestigioso, vivia em tranquila reclusão, escrevendo e reescrevendo sem pressas, publicando pouco e a espaços e, se saía à rua, era ali outro transeunte quase anónimo. As técnicas do marketing, as dinâmicas do mercado literário despontavam outrora escassamente, à semelhança das profissionalizações.
Evidentemente, os autores literários de best-sellers dependem da aceitação que o mercado lhes dê. Logo, produzem para o mercado, atentos à flutuação das procuras, acatando os sinais que recebem de forma a servir as preferências dos consumos. Consequência importante: outros autores, de menor sucesso, tendem a seguir-lhes o exemplo, do que resulta a implantação nefasta de estereótipos formais capazes de empanar ou mesmo de travar a criatividade inovadora da autêntica arte literária.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O poder da palavra impressa

Uma amiga folheava há dias o caderno dos meus primeiros recortes das crónicas e artigos que começava a publicar em jornais. Comigo ao lado, insistia em me convencer de que aqueles escritos tinham interesse, ainda eram actuais, quando eu via amarelecidos e ressequidos os velhos papéis. Ela parou então numa página e leu em voz alta o primeiro parágrafo.
Eu aplaudia ali o que a prática desportiva tinha de salutar advertindo porém que no futebol não temos resumido todo o Desporto. Aliás, o futebol não pode ser considerado como espectáculo por multidões sentadas vendo a correr no campo os seus reais praticantes, jogadores profissionais. Logo, sobram espectadores e escasseiam praticantes das diversas modalidades desportivas, amadores autênticos capazes de experimentar o prazer do jogo.
“Isto é perfeitamente actual ou não?” - exclamou, vitoriosa, a minha leitora. Abanei a cabeça sem botar palavra. Aquela prezada amiga tinha razão mas só eu podia medir quanta razão lhe faltava!
Realmente, defendo tais ideias e opiniões desde sempre, ou seja, desde que entrei a publicar na imprensa. Ora, quando escrevi os textos guardados naquele primeiro caderno ia nos 21 ou 22 anos de idade e hoje estou nos 85, à distância de uns 63 anos…
Posso medir toda a distância contida nestes anos. Em 1951-52, Lisboa tinha o Estádio Nacional inaugurado em 1944, no “Dia da Raça” salazarista, e o futebol merecia uma singela meia página à segunda-feira nos diários (ainda não tabloides) e uma única foto. Hoje é como se sabe e se vê, uma farturinha de estádios e de futebois, de estridentes “academias”, treinadores, especta-comentadores.
O 25 de Abril permitiu ao país ter, conforme entenderam as inteligências da época, “finalmente, futebol com liberdade” e depois, já com o país bem abastecido de estádios a mais, um jornal dito de referência ergueu em parangonas os heróis dos estádios à categoria de “deuses”. É verdade, opinar que o futebol, assim como outras modalidades desportivas, não deve servir como espectáculo, até parece ter hoje bastante mais actualidade do que há sessenta anos. Mas, nesse caso, levanta-se a questão: que valor tem, ou pode ter, a palavra impressa?
Aparentemente, nenhum. O texto permaneceu “actual” ao revelar a sua provada inutilidade perante factos concretizados, o mundo a girar. Neste caso, resta-nos desejar que os “deuses” do futebol, possuídos por uma santíssima determinação, decidam entrar em greve geral por tempo indeterminado para resgatar os cidadãos da passividade e acabar com tão pobre cenário.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Guerra: monstros à solta


Impressiona o infinito sofrimento que a guerra provoca ao povo da Síria. Impressiona, choca e escandaliza também a passividade de quantos assistem de longe ao medieval cataclismo desencadeado desde o pretenso raiar da “primavera árabe”. Os monstros da morte e da destruição, da violência cega e de brutais carnificinas caíram sobre as orlas do Mediterrâneo e são insaciáveis.
Há quatro anos que a população síria conhece o horror da guerra civil, iniciada com manifes e uns tiros à socapa. Segundo os jornais informam, já provocou 220 mil mortos, dos quais 76 mil foram contados em 2014; uns quatro milhões de habitantes e centenas de milhares de palestinianos refugiados, tendo perdido tudo, tornaram a refugiar-se além-fronteiras. Outros sírios, mais de seis milhões, fugindo dos horrores da guerra deslocaram-se para outras zonas do país; e perto de três milhões de crianças ficaram sem escolas.
A crise humanitária impressiona tanto quanto a onda de violência desatada. Extravasou mesmo para os países vizinhos, onde origina situações terríveis de carência e sofrimento. E a Síria, país com um passado histórico-cultural tão rico e luminoso, aparece agora à noite, em imagens de satélite, quase às escuras.
Perante esta horrorosa hecatombe civilizacional e humanitária, os povos ocidentais que conseguem vê-la de longe aparentam um alheamento, uma indiferença quase total. Com idêntica atitude acompanharam a campanha prévia dos media que nos persuadia de que o presidente Assad, por sinal médico formado na Inglaterra, era realmente um ditador a derrubar. Afinal, o presidente tem povo em quantidade suficiente para resistir no poder há quatro anos. Mas também Hussein e Khadafi não eram ditadores?
Evidentemente, esses tiranos foram derrubados. Quer dizer, abatidos em execuções sumárias, sem julgamento. Assim como Bin Laden, acusado de esmagar aviões contra as torres gémeas.
Terá ficado a Síria, ou virá a ficar, mais livre e democrática, mais pacificada e estável? Acodem à memória os casos do Iraque e da Líbia, que continuam deveras pungentes. Fracções em armas combatem, destroem-se e flagelam-se em nome de dogmas religiosos, pondo em fuga populações espavoridas, ansiosas por saírem do inferno onde nasceu e se multiplica em metástases pela África negra um providencial Estado Islâmico.
Provado fica que é possível dirigir um drone, por controlo remoto, para um objectivo situado do outro lado do mundo, assim como agrupar uns ambiciosos onde quer que interesse pô-los a correr apoiados com propaganda e os meios logísticos necessários. Mas, na balcânica confusão instalada no Médio Oriente, quem consegue, observando com atenção, saber de que lado estão os bons e de que lado estão os maus? Serão todos, todinhos, criminosos de guerra?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A onda passou e o que ficou?

Há cerca de um mês, uma poderosa onda emocional varreu a Europa e parece que todo o Ocidente. Atroou praças e avenidas o grito das multidões que exigiam “liberdade de expressão”. Os ecos de tamanho clamor popular devem percutir ainda em algumas memórias menos frágeis, chega agora o momento de considerar o acontecido.
Manifestar o direito público à liberdade de expressão evidenciou desde logo a índole conformista do gesto: encobria que a informação da actualidade fornecida pelos media, sendo incompleta, parcial, tendenciosa, serve cada vez mais a Verdade Única do pensamento dominante. Resultou numa manobra descaradamente populista e, na presente situação da prática objectiva do jornalismo, também hipócrita e algo cínica. A informação e o jornalismo estão sob um crescente controlo que filtra o que aparece na imprensa, na rádio e na televisão, em obediência a um breviário de “verdades” assentes contra o que seja tomado como de esquerda.
Defender a liberdade de expressão no actual contexto? Seria pouco, se isso valesse a pena. Muito melhor seria denunciar a manipulação, a parcialidade, o seguidismo massificador da informação que as empresas de comunicação social servem ao público e pedir outra, diferente, capaz de ouvir sempre o “outro lado” das questões.
O que aconteceu acirrou os ânimos já aquecidos pela conflitualidade atiçada entre radicais muçulmanos e cristãos; o radicalismo islâmico ganhou mais base e a direita europeia, festejando, cresceu. De súbito, a União Europeia viu-se a cair nos braços abertos da América. Com os seus milhões de desempregados e a baixa dos salários imposta pelos programas da austeridade + estagnação económica, a zona euro dispensa a barateza do “canalizador polaco” e a emigração clandestina da margem sul do Mediterrâneo, pelo que se propõe rever o acordo de Schengen da livre circulação, até porque a ameaça jihadista também mora cá dentro.
Este velho e retalhado continente ficou mais inseguro e ameaçado, além de mais intolerante e xenófobo, isto é, mais afastado da Liberdade, Igualdade, Fraternidade carimbada nos direitos humanos. No mundo de hoje, o terrorismo, venha de que lado vier e que sinal tiver, presta-se a aproveitamentos oportunistas e a conspirações obscuras de interesses ideológicos e políticos contraditórios, em função de estratégias e propagandas mistificadoras tão confusas que já parecem compor um cenário pré-bélico. O jornalismo de uma imprensa livre iria naturalmente investigar cada situação, mas, nas presentes circunstâncias, nem espaço lhe sobra para questionar, por exemplo, porque foram abatidos os alegados dois irmãos do atentado ao “Charlie”, tal como o indivíduo que interveio na loja kosher, assim como abatidos foram, sem interrogatório policial nem julgamento, Sadam Hussein, Khadafi ou Bin Laden.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O sagrado em reflexão

A ordem das coisas sagradas não é hoje, ou pode não ser, apenas uma questão religiosa, matéria de especulação teologal. Sagradas podem, e devem ser, vidas humanas em risco, aspirações de mais alta justiça, mais liberdade, mais paz. O sagrado dos crentes coabita no mundo com o profano dos não crentes ao ponto de se (con)fundirem nas duas faces de Janus.
Aparentemente, os progressos científico e tecnológico, que permitiram conhecer a estrutura do átomo e a vastidão do cosmos, comprimiram o lugar antigo das religiões, pouco a pouco invadido pelas mentalidades modernas e os costumes da vida laica. Basta, porém, notar, por exemplo, os temas que vão correndo em filmes e romances populares, tão alienantes, recheados de magias incríveis, crendices retrógradas ou fantasias sobrenaturais, para de relance se perceber quanto mudou na paisagem da cultura religiosa vulgar. Ainda assim, note-se, sem paradoxo, a crescente agressividade que os manifestantes cristãos e muçulmanos europeus, acusando-se mutuamente de fanatismo, actualmente revelam.
Uma dimensão sagrada, qualquer que seja, parece inerente à condição humana normal. Sem se imbuir da noção do que é sagrado, proveniente de formação religiosa ou outra, sem deus, mas cultural e humanizada, as pessoas ficam privadas do atributo que supomos estrutural. Por isso, o problema do nosso tempo reside talvez no apagamento de uma formação que, em última análise, confunda educação religiosa ou cultural, ética e humana. 
Daí a interrogação antes posta: o que resta de sagrado no mundo, hoje? É perante o que temos de sagrado que se estabelecem os interditos, as obrigações gerais da ética, os princípios humanos basilares. Ora, o apagamento do que seja sagrado (quer dizer, do “sacrário”, lugar íntimo onde guardamos os valores supremos, imateriais, sem os quais os indivíduos e a espécie ficam sem defesa) expõe os povos a incalculáveis perigos. 
Não há dúvida, a barbarização dos costumes está a progredir e a (in)civilização do século XXI a descambar, avançando cegamente, conforme algumas vozes previnem, para uma nova Idade Média e, provavelmente, uma terceira grande guerra. 
As massas habituaram-se ao seu próprio aviltamento e à violência – nos campos de futebol, nos filmes, nos televisores – e praticam-na quotidianamente, de variados modos, nos ambientes familiares e nos espaços públicos. A decadência da Europa vai além da estagnação económica e da crise geral em que se afunda. Envolve os desvios sofridos pelos sistemas escolares, a fraqueza da criação e fruição cultural autênticas, o abandono de programas de elevação colectiva das pessoas e dos povos.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Esvai-se a dimensão do sagrado


O que resta de sagrado neste nosso mundo, hoje? A interrogação é pertinente e, de modo especial, ganha toda a oportunidade na moldura dos atentados em Paris, há uma semana. O primeiro atingiu o semanário “Charlie Hebdo”, matou oito dos seus jornalistas mais quatro pessoas e espalhou pelo espaço mediático a gloriosa bandeira do “Todos somos Charlie”, levando um nosso jornal a citar novamente Mark Twain (referido na minha última crónica) agora com um esconjuro: “Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo.”
Manifestações populares estrondosas, de bastantes milhões, com um nutrido leque de governantes de variadas nacionalidades à testa, apoiaram uma liberdade de expressão da Imprensa sem restrições, portanto com sátiras impiedosas e blasfemas. E foi bonito. Mas tamanho estrondo levantou esta velha e sempre renovada questão: a liberdade de expressão é uma entre as várias das liberdades cívicas essenciais à plena vigência da democracia, que se realiza apenas no plano de uma igualdade efectiva no mundo onde crescem as desigualdades... 
Os órgãos jornalísticos, obedientes ao pensamento único que dita a verdade única mundial, informaram sem explicar os acontecimentos, como matéria sensacional. Emocionaram e pouco mais, em vez de contextualizarem, recuando, se fosse preciso, ao início do século XX e à “economia do petróleo” ou às mudanças operadas desde então no Médio Oriente. Agravaram-se as contradições existentes no terreno, as ideias e as políticas de direita expandiram-se e deram mais força aos profetas da “islamização da Europa” que apontam para o “choque de civilizações”. 
Quer dizer, alastraram os motivos do medo e do ódio ao “outro”, da intolerância e da xenofobia, radicalizando, com recurso a propaganda manipuladora, a crescente oposição entre cristãos e muçulmanos. É esse, afinal, o caldo de cultura (caldo espesso de oposições apoiadas em crenças subjectivas, sem suporte racional nem razões concretas) em que se desenvolve a violência que pode alimentar o terrorismo no interior de populações massificadas. Ora o terrorismo convém a uns tantos (e não só de um lado), quando serve uns interesses estratégicos de quem sabe agir e continuar longe, invisível. 
A Ocidente, a questão parece estar hoje no apagamento da dimensão do que antes era sagrado. Os europeus declaram-se cristãos mas reduzem a religião, banalizada, à prática eventual de algumas tradições. Sagrado, para eles, é sem dúvida o deus-Mercado (apanágio da democracia, dizem!) e o seu direito indiscutível ao consumo massificado ainda que estejam agora sob rigoroso regime da austeridade imposto pelos governos. 
Mas vejamos. Se o sagrado se esvai (e o que seja venerável, respeitável), não deveriam brilhar com luz rutilante e vermos, onde quer que estivéssemos, os princípios humanizantes, isto é, os Direitos do Homem colocados à altura mais eminente? Não deveriam ser sagrados e consagrados, em primeiríssimo lugar, por toda a população do planeta?

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Após consoar, veja a língua

A noite da consoada é costume antigo que o calendário marca uns dias depois da entrada do solstício de inverno. Mas em que medida o costume é antigo? A questão está contida na própria palavra que designa o costume e, como tantas vezes acontece em casos tais, a sua origem etimológica parece incerta e nebulosa.

Os linguístas têm-se desunhado a escabichar e apenas topam as mais recuadas referências ao substantivo em textos do século XIII. Já o verbo consoar aparece em registo do século XV e por sinal com duplo significado: partilhar a consoada; soar juntamente, rimar (do lat. cum+sonare). Em que ficamos, então, sobre o costume que o Dicionário da Porto Editora descreve como a “pequena refeição que se toma à noite, nos dias de jejum; ceia em família, na noite de Natal; presente que se dá pelo Natal”.
Certamente, a alusão a pequena refeição à noite em dias de jejum, em face da actual vertigem consumista até pode parecer uma piada. Os grandes centros comerciais e lojas pejaram-se de multidões em frenesins de compras, prendinhas e mais prendinhas para contemplar toda a família e outra gente prendada. É de crer que a totalidade de smartphones e quejandos aparelhos com ligação à Net já vendidos tenha excedido, nesta data, a cifra estatística da população portuguesa, incluída a emigrada!
Crise? Onde está a crise?, perguntam o desempregado, o pobre pensionista, o subsidiado de rendimento mínimo, o estagiário não remunerado. Talvez estejam em acreditar nos especialistas de saúde mental do país que consideram a população nacional afectada nuns 40% de casos.
Evidentemente, as intoxicantes campanhas publicitárias lançadas pelas empresas conquistam resultados. Lançam modas e seduções (“dias” dos papás e das mamãs, dos namorados, etc.) e há gente que morde o isco, a moda pega, opera-se a massificação do consumo no mercado massificado. Consumir, consumir, é ou parece ser o supremo desígnio de massa acéfala que vai em frente: avança às cegas porque sim, todos correndo uns atrás dos outros, contentes por irem no rebanho.
Todavia, se a noite de consoada junta a família à luz do novo solstício que vai alargar a duração dos nossos dias até ao pino do Verão, viva o Natal! Ora aos linguístas não passa despercebido um pormenor: o substantivo consoada é anterior ao verbo consoar uns séculos. O costume da substanciosa e fraterna ceia em família pode não ser tão antigo quanto isso, mas a acção do verbo propriamente dita (agora a deixar os lares e a preferir os hotéis) é bem mais recente…

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A destruição dos Estados

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, assim começa um dos mais lembrados sonetos de Camões. Mas o tempo é imutável, corre sempre num fluir insensível e completamente alheio às volições humanas. As vontades, sim, mudam momento a momento nas fogueiras dos nervos e das paixões.
O que o verso camoniano enuncia poeticamente é, pois, um tempo mudado pelas vontades colectivas. Logo, os tempos mudam por mudança das vontades humanas, sendo estas que atribuem a “cor” (quente ou fria, belicosa ou quieta) à situação de uma paisagem social. Compreende-se, portanto, que esta nova época histórica emerge em resultado de mudanças tão vastas e profundas a ocorrer no interior da sociedade que marcam este tempo como um “tempo novo”.
Na verdade, um novo período histórico até pode trazer e restaurar um tempo antigo, por exemplo, com algo de escravatura ou de feudalismo. Isto, evidentemente, não de forma plena assumida, antes em restauros parciais do que no essencial interesse à oligarquia dominante. O tempo presente demonstra-o com dramática clareza.
O povo, cada povo, parece esquecido de que, em última análise, corporiza “o Estado” com a sua história, língua e cultura, no território de que detém efectiva soberania. Assiste, desde há anos, em completa passividade, a uma destruição audaciosa programada. O Estado, que é o próprio povo, vai desaparecendo, derrubado pouco a pouco, bocado após bocado.
As funções normais do Estado, que garantem a soberania nacional e a segurança geral da população, além de outras funções, entram em grave crise. A maioria da população sofre com a degradação das suas condições de vida enquanto uma minoria prospera e enriquece, extremando a desigualdade social. Desemprego elevado, empregos precários e salários reduzidos abrem o caminho para a oligarquia no poder do Estado avançar.
Outorga privilégios e mais privilégios às grandes empresas privadas, bancos incluídos, nacionais e internacionais, protegendo-as de reveses e prejuízos. As grandes empresas agem, com os seus trabalhadores e os seus clientes, como estados dentro do Estado. E generaliza-se a corrupção nas instituições e nas entidades.
Por este nefasto caminho de mudanças, o Estado, acompanhado pelas empresas (com gestores formados nas escolas do neoliberalismo retinto), e auto-aniquilado, estabelece sobre o povo domesticado um novo tipo de relação. Vigiando-o por todos os lados e controlando-o pela cobardia do medo, não o pretende mais, nem na aparência, como conjunto cidadão sujeito às regras “democráticas”, apenas como contribuinte, produtor e consumidor. Mas atinge algo mais fundo: instaura o feudalismo e alguma escravidão, com insofrível aviltamento da condição humana.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Entramos em nova época


O mundo que nós e os nossos filhos conhecemos nos anos de ’60 e ’70 do século passado entrou em processo de rápida mudança. No início do século XXI acelerou a fundo numa deriva gigantesca que já nada parece conseguir travar. Estamos envolvidos numa transformação demolidora que nos empurra para dentro de um período histórico radicalmente diverso.
Os povos estão domesticados e a deixar-se cozer como as rãs na panela da conhecida fábula de Olivier Clerc, escritor suíço de expressão francesa. Se, incomodados, quiserem saltar fora para não sucumbir, já não têm forças. Despertam de uma situação aparentemente benigna ou mesmo agradável, nadando em círculo no seu ilusório conforto, para encarar uma sorte verdadeiramente terrível.
O despertar, porém, só é possível para minorias cultas e atentas mas sem peso eleitoral e portanto sem condições (objectivas, normais) de alterar as regras do jogo das forças políticas estabelecidas. Os sistemas - legislativo, eleitoral, económico-financeiro e outros - estão convenientemente blindados contra qualquer possível brecha. Jeff Sparrow, autor do livro Communism: A Love Story, australiano, adverte: “Tudo o que temíamos acerca do comunismo – que perderíamos as nossas casas e as nossas poupanças e nos obrigariam a trabalhar eternamente por escassos salários e sem ter voz no sistema – converteu-se em realidade com o capitalismo.”
Resta, portanto, focalizar a questão essencial e perceber as “fraudes legais, a oligarquia legal e o primado da lei” - escreve o jornalista José Vítor Malheiros (“Público”, 12-11-2014). “As leis tornaram-se demasiado complexas, a sua produção quase secreta e a sua alteração quase impossível”, destaca. Verifica-se, em suma, uma autêntica subversão do sistema supostamente democrático.
Uma apresentação, ou powerpoint, que circulou há dias na Net estabelecia um contraste chocante. Mostrava simplesmente uma porção de fotos que evocavam os costumes e ambientes daqueles anos ’60-’70 no Afeganistão. O contraste tornava-se fortemente dramático por contrapor à paz, tolerância e cultura (europeizada) de então o inferno sangrento da violência, do sectarismo fundamentalista e do atraso geral, impressionante retrocesso, que atinge agora a população mais pobre e desgraçada do mundo.
O caso afegão demonstra um facto de inesperada actualidade. Demonstra que é possível liquidar as conquistas da civilização alcançadas por todo um povo, afundando-o em guerras sectárias, ódios fanáticos, fundamentalismos irracionais. O que nos obriga a pensar num sério aviso: que aos povos domesticados resta uma saída – para a barbárie. [Na foto: cume da cordilheira dos Andes no Peru: montanha Ausangate.]