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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Português vai mal


À entrada, sobre o balcão da cooperativa, notou o aviso: prevenia os sócios do prazo em que deviam pagar as suas “cotas”. Depois de atendido, ele não resistiu. Questionou: porque escrevem ali “quotas” com ortografia errónea?
Sorrindo, a empregada pegou no dicionário da Porto Editora (8ª edição, 1998), abriu-o em “cotas” e leu. Para os autores (não os de outrora J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo), o termo também significa “quotas”. Ou seja, é equivalente.
Surpreendido com a novidade, consultou o seu próprio dicionário (7ª edição, 1994, comemorativa dos cinquenta anos daquela casa) e confirmou. Averbava igualmente “cota” com a mesma equivalência sinonímica. Logo, o desvio que aceitava reconhecendo o frequente, logo popular, desvio da norma consagrada já vinha de trás, não do anónimo departamento dos dicionários da Editora citado na edição posterior.
Por um caminho assim tão decididamente a favor da gíria popular, iremos em breve ter dicionarizadas ou aceites de pleno direito expressões correntes tão mimosas quão “à última da hora” ou “há anos atrás” e o advérbio de lugar “onde” definitivamente instalado no léxico comum ainda que se refira a lugar virtual, incorpóreo, apenas verbal? A interrogação justifica-se: é por aí que as tendências correm sobretudo em rádio e televisão.
Falar correctamente deixou definitivamente de ser apanágio de boa educação, civismo, brilho cultural. O Português anda a aparecer por aí, no meio da confusão instalada, mal vestido, enxovalhado, quase andrajoso, de modo que já não se sabe quem o fale e o escreva de forma modelar. Parece mesmo que os avanços obtidos pela população graças aos progressos da escolaridade e do ensino se reflectem cada vez menos no domínio correcto da nossa língua materna.
Nesta infeliz situação, saudemos o rasgo de Artur Anselmo, presidente da Academia de Ciências de Lisboa (ACL), que se animou a tentar uma saída. Propôs à discussão o plano de melhoria do Acordo Ortográfico de 1990 que uma comissão especializada apreciou há dias na Assembleia da República. Objectivos a atingir serão, além de melhorar, também o de estabilizar a ortografia (ainda que isso implique a separação final do Brasil nesta matéria), garantindo na prática a maior coerência e eficácia institucionais da Comunidade Lusófona.
Outra iniciativa de grande mérito tomada pela ACL será a publicação, no fim de 2018, de um novo Dicionário, normalizado, no qual estão a trabalhar dezenas de especialistas. Falece entretanto a ideia de quantos confiavam que o Português, com o Acordo de 1990, teria a ortografia unificada que de facto nunca chegou a ter. Ao invés, esta língua terá que contemplar as variedades vocabulares e gramaticais que surjam no seu espaço geopolítico.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Como Portugal vê Galiza

A publicação do livro antes recenseado veio na companhia deste outro A Imagem da Galiza em Portugal. Assina-o Carlos Pazos-Justo e no subtítulo traz “De João de Redondella a Os galegos são nossos irmãos”. Complementam-se, diria que na perfeição, reciprocamente.
Ensaiando uma resposta, o autor desta abordagem debruça-se no estudo de representações da Galiza detectadas no imaginário português. Elabora, assim, uma abordagem à ciência da imagiologia, cujos conceitos explicita, para exprimir como entende o “funcionamento das imagens enquanto discursos de representação do outro.” Acrescenta à sua obra, em resenha diacrónica, a imagem que a Galiza tem no exterior.
Carlos Pazos-Justo (n. 1975), formado em filologia em Santiago de Compostela e doutorado em Ciência da Cultura na Universidade do Minho, situa nos períodos da vigência das ditaduras de Franco e de Salazar a análise da imagem dos galegos e da sua terra captada no nosso país. Ilustra muitas páginas com fotografias, desenhos, gráficos e citações, mas liga este livro, de algum modo, ao caso, que recorda, da senhoria que lhe alugou um apartamento em Braga e, lisonjeira, teimou que Carlos não era “galego”, era, sim, “espanhol”.
Na verdade, as imagens são construções sociais complexas que se transformam em representações tanto ou tão pouco “reais” quanto pretender que “o fado é português” – nota Pazos-Justo – ou imaginar o momento do desembarque de Colombo na América recordando a cena composta (em 1862?) pelo pintor Dióscoro Teófilo inserida nos manuais escolares. Porque as imagens são também discursos. A imagem propalada de uma Galiza pobre, atrasada e suja resulta assim num estereótipo construído por sucessivas simplificações que “pode condicionar as ideias mas também as formas de agir, as práticas das pessoas”. (p.16)
Tal como outros intelectuais galegos, também este autor faz questão de apontar, no plano historiográfico, a antiguidade do Reino da Galiza do qual saiu o reino de Portugal e, no séc. XII, a nação portuguesa. O progressivo  confinamento, no espaço peninsular, do reino da origem comum acentuou-se no séc. XV e Galiza foi ficando arredada num lugar periférico por força de conjunturas diversas e adversas. Com esta questão, Pazos-Justo documenta quanto o povo galego é atingido por esta imagem “construída” pela história.
Em Portugal, naturalmente, os galegos outrora imigrados em Lisboa e no Porto e a Galiza actual ainda se confundem, ao nível popular, com estereótipos caducos. Existem dificuldades político-diplomáticas que atrasam a sua integração na comunidade lusófona (Madrid está contra), mas abrem-se novos quadros relacionais, por exemplo, no plano económico-social da Galiza e Norte português. Deveras desejável é que o imagotipo negativo que forçou Pazos-Justo a “ser espanhol” em Braga em breve se dissipe!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

E Galiza aqui tão perto


Questão recorrente, incontornável. A Galiza. Sempre perto, a morar do outro lado do rio Minho e, no entanto, sempre algo remota, como se aquele rio não fosse navegável, não tivesse ponte ou os portugueses não soubessem nadar…
Saudemos, portanto, com especial ênfase, o livro A Imagem de Portugal na Galiza, por Carlos Quiroga, edição Através de Nós, Santiago de Compostela, 2016. A editora tem ligação com a Associaçom Galega da Língua (AGAL), e o autor, licenciado em filologias Galego-Portuguesa e Hispânica, doutorou-se e é professor titular da Universidade de Santiago.
O livro resultou da “pretensão de pensar Portugal e contribuir para a reflexão crítica sobre a sua identidade, construída em boa parte na sua relação com os países de língua oficial portuguesa em cuja comunidade política, linguística e cultural se integra”, conforme indica Advertência. Com cerca de 120 pp, a obra consegue abarcar numa síntese e analisar o que o projecto inicial requeria, elaborando o conjunto dos dados disponíveis e sumariando-os desde a remota antiguidade, os séculos ditos “obscuros”, o Ressurgimento (séc. XIX), o séc. XX, a contemporaneidade e uma síntese final.
De facto, Carlos Quiroga perspectiva o nosso país historiando e documentando que a Galiza existe com anterioridade. Escreve (p.15): “Quando e como nasceu Portugal, como cresceu e com quem brincou e se bateu, explicam quem hoje é. E só a vizinha da mansarda de cima sabe. Porque esteve sempre lá. Portanto temos que recuar mais um bocado no tempo.” Os historiógrafos pátrios poderão, se quiserem sair à liça, discutir o ponto.
Quiroga evoca a remota Gallaecia, província romana, acompanhando com mapas a sua evolução no terreno durante os períodos suevo e visigodo, as relações dos dois países ibéricos; foca o plano político, literário e popular, os movimentos migratórios de ambos os povos, etc. Identicamente, destaca os intelectuais galegos que promoveram o Ressurgimento cultural, as adesões de portugueses como Teixeira de Pascoais ou M. Rodrigues Lapa, as dificuldades e controvérsias geradas em torno da adopção de uma norma linguística, o projecto de uma aproximação ou até integração no espaço lusófono (enquanto Guiné Equatorial mete o pé à porta, Galiza espera) ou de uma sonhada via política independentista.
Assim mesmo regista a escassez das trocas comerciais, os pecos frutos colhidos do Eixo Atlântico, de modo que, a concluir, Carlos Quiroga cita Moisés de Lemos Martins (p.106): “Amorosamente indecisa e duvidando, a identidade galaico-portuguesa sonha, todavia, com um parentesco histórico, cultural, étnico e linguístico, entre Galiza e Portugal.” O que será, para os galegos, como dizer: “Menos mal que nos queda Portugal!”

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Língua portuguesa e Literatura

A cultura, nomeadamente a cultura literária, não vem somente nos livros. Aliás, cada vez menos os milhares das novas edições que se registam em Portugal trazem no miolo substância que realmente valha a pena ler. Em alternativa, olhemos portanto, ao menos como quem espreita, algo do que vai saindo em revistas periódicas.
Atidos apenas a publicações impressas (i. e., em papel), notemos o panorama das revistas académicas. Surpreende. Continua animado e extenso, vigoroso e rico, como que alheio à expansão dos formatos digitais.
Nestes termos, saúde-se a “Revista de Estudos Literários” que o Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras de Coimbra vem publicando anualmente. Saiu o nº 5, relativo a 2015, coordenado pelo Prof. J. L. Pires Laranjeira. Conta 700 pp e traz no sumário um naipe de ensaios de especialistas da área temática deste volume dedicado ao tema Literaturas africanas de Língua Portuguesa.
Os textos aparecem arrumados nas secções Temática, Não-Temática (resultante do projecto que elaborou o Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa), Profissão, Arquivo (última entrevista de Manuel Ferreira concedida a Lopito Feijóo, inédita), Recensões e notas sobre os autores dos textos. Em nota prévia, o Prof. Carlos Reis sublinha a “área muito ampla de produção literária, com manifestações desiguais” nos países africanos de língua portuguesa. Neste sentido, é naturalmente maior o relevo aqui dado a escritores de Angola, Cabo Verde ou Moçambique do que a Guiné-Bissau ou S. Tomé e Príncipe. Também, entre os autores mais focados, se distingue Manuel Ferreira, que Pires Laranjeira, na introdução, evoca justamente como “cabouqueiro, divulgador, editor, professor, cavaleiro andante das sete partidas, apaixonado das cinco literaturas [africanas], referência mundial incontornável”. Mas outros autores são estudados: Domingas Samy, Mia Couto, Paulina Chiziane, Eduardo White, João Melo, Alfredo Troni...
São perto de duas dúzias os autores destes estudos: Pires Laranjeira, Luís Kandjinho, Inocência Mata, Ana Mafalda Leite, Carmen Lúcia Tindó Secco, Francisco Topa, Mário César Lugarinho, Solange Luís, Rui Guilherme Silva, Majda Bojic’, Fátima Mendonça, Miguel Filipe Mochila, Rosinda Aires Bezerra, Ana Belém García Benito, Jorge Valentim, Elena Brugioni, Inês Nascimento Rodrigues, Laura Padilha, Ana Teresa Peixinho, Daniela Côrtes-Maduro, Maria Eduarda Santos e Marisa das Neves Henriques.
Estes nomes indiciam a diversidade das proveniências nacionais dos autores dos ensaios inseridos neste volume, sugerindo de algum modo a amplitude e a vitalidade da língua portuguesa em África, no Brasil e, enfim, no mundo.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Manuel Maria, poeta galego

m.maria.jpgAs relações culturais, ou antes, dos escritores e artistas das duas margens do rio Minho têm sido irregulares, esporádicas como a vontade de abraçar e de dançar. Mas, quando tal acontece, a festa vivida deixa sempre, dos lados de cá e de lá, apetite para mais. E, no ar, também uma interrogação (saudosista) sem resposta: porque há-de a festa ser assim tão escassa?

Um bom período de aproximação cultural luso-galega foi possível nos últimos anos ’60 e início dos ’70 do século XX, coincidindo de certo modo com o final do regime Salazar-Caetano. Envolveu escritores, pintores, poetas, cantores, académicos, jornalistas e múltiplas partilhas cruzadas, até que a eclosão do 25 de Abril concentrou o país sobre si próprio. Incluiu exposições documentais, recitais, palestras, congressos e publicação de livros e revistas.
Figura eminente nesse período em Portugal foi o meu amigo poeta Manuel Maria. Visitou Portugal diversas vezes, uma das quais, muito por ele recordada, com o pintor Pousa, e aqui lhe publiquei três livros: Sonhos na Gaiola, poemas para crianças (Lisboa, 1968); 99 Poemas (Porto, 1972), e Odes num tempo de Paz e Alegria (Porto, 1972). Depois ficámos “perdidos” um do outro até que vim a saber que Manuel Maria [F. Teixeiro] falecera já em 8-09-2004, na Corunha, com 75 anos.
O poeta nasceu na sua querida Terra Chã (Outeiro de Rei, 6-10-1929) e viveu em Monforte de Lemos, onde uma estátua o recorda em público, sentado à mesa e de livro na mão, e existe uma evocativa “Casa Manuel Maria”. Filho de camponeses, estudou para bacharel e foi solicitador. Participou nos anos ’60 na organização clandestina de partidos nacionalistas. Em 1985 abandonou a política e mudou-se para a Corunha, onde, hospitalizado, acabou por falecer. Realizou uma actividade literária intensa e imensa: desde 1950, publicou mais de meia centena de obras, sobretudo de poesia, mas também de teatro e antologias das suas próprias produções.
Recordo, por exemplo, Muiñeiro de Brétemas, a sua estreia, de 1950, e a sua última obra, Os Longes do Solpor, de 1993. A Wikipedia.pt lista pelo menos 25, desde Mar Maior, 1963. Trocámos abundante correspondência durante aquela meia dúzia de anos e visitámo-nos algumas vezes. Entretanto, fico preso a uma vasta rede de outras recordações, nomeadamente de Joaquim Santos Simões, um querido amigo de Guimarães, companheiro destas e de outras lides, José Maria Álvarez Blázquez e seu irmão (Edicións Castrelos, Vigo), J. L. Fontenla, Irmandades da Fala… mas como não recordar ainda os esforços, inúteis, que fiz pela publicação, em português normal, de parte significativa da obra literária de R. Alfonso Castelao?! [Imagem: Manuel Maria em retrato (pormenor) num cartaz.]

segunda-feira, 14 de março de 2016

O (des)Acordo Ortográfico

Repego mais uma vez no assunto verificando aqui, pelas “etiquetas”, que venho a comentar a situação ortográfica em que temos o Português desde 2008. Contei dez textos, em anos sucessivos, e hoje a situação não está menos incómoda nem menos desagradável. Mas, agora que a República tem um novo Governo e um novo Presidente, são muitas as vozes audíveis que pedem um debate urgente do assunto e, enfim, a sua conveniente resolução.
Vendo bem, a questão é meramente política e apenas requer uma resolução política. Portugal é - continua a ser - o único país do Acordo Ortográfico de 1990 que o aplicou oficialmente (na comunicação administrati-va e no ensino público) quando já era notório, o projecto falhara: não unificava (miragem esta que me levou a aceitar o A.O. durante algum tempo) e deixava cada povo lusófono entregue à sua própria deriva. Assim ficou o país, desse jeito, numa atitude que tinha (e tem) tanto de esquisito como de humilhante.
Convém não perder mais tempo a retirar o país da figura em que se colocou, sem esperar que algum dos outros signatários lusófonos oficialize também a norma ortográfica que notoriamente repudiam. Na verdade, o Acordo seria imperativo somente quando todos os países aderentes o ratificassem. Esta unanimidade, ponto essencial, enredou-se com outras confusões.
A principal será decerto devida ao segundo protocolo, de 2004, que alterou bastante o acordo inicial, anulando-o de facto, e que também nunca foi ratificado. Pode afirmar-se que se trata de um novo texto e nova convenção ortográfica e, portanto, para que possa vigorar de jure, terá que ser aprovado pelas partes, ou seja, remete o processo para o início. Mas ninguém está para tal, agora que até Artur Anselmo, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, junta a voz a quantos lamentam que, nos anos decorridos, “ninguém tenha feito nada para melhorar este acordo”.
Sem dúvida, a situação ortográfica nacional é particularmente danosa. Agravou o conflito entre normas e aderentes, instalando uma confusão lamentável sobre qual é a escrita correcta. Neste caso, o rendimento escolar ressente-se a todos os níveis e o competente domínio da nossa língua materna acaba negligenciado.
Para compor o ramalhete, a disciplina da Literatura Portuguesa deixou de ser obrigatória no Brasil. Acrescente-se ao raminho mais uma flor. Parece que os países lusófonos têm tempo para discutir se a Portugal cabe o direito de propor o novo secretário da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (a eleger livremente)…

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Na barafunda ortográfica


Consumou-se o facto: sozinho, Portugal nada em seco nas águas estagnadas do Acordo Ortográfico assinado no Rio de Janeiro em 1990. Sozinho porque nenhum outro dos países lusófonos o ratificou até hoje ou parece interessado na sua aplicação. Mas cá no rectângulo ibérico, “orgulhosamente a sós” como se sabe, o AO90 passou a ser artigo de lei.
A situação consumou a barafunda. Nenhum país lusófono segue a ortografia acordada ou uma mesma ortografia com poucas e pequenas variantes. Vinte e cinco anos depois, o Acordo descambou em desacordo, o tratado (que realmente a ninguém servia), foi destratado.
O governo, que desgoverna Portugal, pode ter muito jeito para lidar com as estratégias do neoliberalismo e os negócios escuros das privatizações dos bens nacionais lucrativos cobiçados por especuladores internacionais. Pode até pretender-se convincente a evangelizar o povo para o empobrecimento. Mas é completa a sua falta de jeito para avaliar simplesmente o valor patrimonial principalíssimo da nossa língua materna.
Assim chegámos à situação actual, tão incomodativa, desagradável e acabrunhante, que põe na boca expressões de repúdio e desconforto, contundentes e feias que a pessoa cordata tem de evitar. É deprimente, canhestra e mesmo algo idiota. Deixou o país encurralado na caricata figura em que se vê.
Não se entende à primeira, nem talvez à segunda, que uma instituição idónea como a Academia das Ciências continue a assistir aos acontecimentos sem esboçar intervenção correctiva rápida e eficaz. A “nova ortografia” das consoantes mudas não unificou nada, serviu apenas para criar divisões no ambiente nacional e agravar a confusão de quem escreve. Urge resolver a situação, encontrar uma saída, de modo a libertar as escolas, as editoras de jornais e livros, enfim, toda a comunicação social da sujeição à ortografia que a lei estabeleceu definitivamente como a única legal.
O lado dos críticos que se opunham ao AO90 de facto não tem parado de crescer. Ganham força as evidências do que se passa no terreno, a barafunda ortográfica que se estabeleceu. É preciso que esta questão, de relevo verdadeiramente nacional, ganhe sem delongas espaço no parlamento e, também ali, as posições e decisões que a emergência da situação aconselhe.

terça-feira, 15 de julho de 2014

O Português nasceu em 1214?

A nossa língua materna existe há oito séculos, assinalaram diversas entidades no próprio dia da efeméride. Basearam-se no testamento do rei Afonso II (1185-1223) feito no dia 27 de Junho de 1214, documento arquivado na Torre do Tombo. Trata-se, porém, de uma data simbólica, pois nenhuma língua aparece feita de um dia para o outro.
O documento foi redigido em Coimbra, pela mão de um certo escriba, seguindo a norma que viria a consagrar-se. Mas, bem entendido, uma nova língua não é elaborada por um único escriba para uso de um povo inteiro (e, então, língua também em uso na Galiza), antes resulta de uma longa sedimentação e decantação de factores diversos presentes no terreno. É obra de uma comunidade inteira, o que nos dá motivo para considerar, à evidência, a nossa língua materna como a mais genial criação dos povos galego-português.
Todavia, houve que esperar três séculos, até 1536, pela primeira gramática de Fernão de Oliveira, publicada em Lisboa, a que se seguiu a de João de Barros quatro anos depois. A língua passou a ter as suas próprias regras de forma e composição, uma morfologia disciplinar canónica. A reluzir ficaram os contributos literários de Gil Vicente (c. 1465-c. 1536), Garcia de Resende (1470-1536), Sá de Miranda (1481-1558), Bernardim Ribeiro (1482?-1552?) e outros, de modo a perceber de relance o “salto” portentoso dado pela língua na primeira metade do século XVI.
O contributo de Luís de Camões (1524-1580), outro artífice da língua, foi marcante para o progresso do Português. Mas a língua, sistema aberto sempre vivo, continuou a evoluir tanto quanto se sabe. Estendeu-se pelo mundo onde pés portugueses se demoraram fazendo nascer, após descolonização, a CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Rodearam a organização da comunidade lusófona grandes expectativas que mais óbvias têm deixado as fraquezas de uma autêntica e eficiente política da língua que Portugal adia. A CPLP parece transformar-se, ao que se diz, sobretudo em centro diplomático de negócios e o falhanço do Acordo Ortográfico de 1990, que prometia um mínimo de unificação, deixa à solta naturais derivas.
A defesa e promoção da nossa língua materna no mundo mostra-se inadequada e inconsistente, com cada um dos países integrantes a seguir ao seu próprio ritmo. Ora, em vez das vozes que entronizam o Português com frases altissonantes, bom seria intervir no espaço da lusofonia em situações como em Timor ou na Guiné-Bissau. Neste país, por exemplo, inserido em região francófona e com uns 56% de analfabetos, as diversas etnias falam algo como 32 dialectos nativos; não existe ensino da nossa língua condigno, sendo o Português falado só por brancos e alguns guineenses escolarizados e o crioulo usado em cidades e zonas do litoral… [Nota: clique na imagem para ampliar.]

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Agostinho Neto, poeta

Sei um pouco dos esforços que o Prof. Pires Laranjeira desenvolve há longos anos no sentido de afiançar no plano literário geral o esplendor da poesia de Agostinho Neto. Penso que leva bem mais de trinta anos nesses esforços para evidenciar a valia, discreta mas agora, por fim, plenamente evidenciada. Saiu uma obra consagradora monumental que reúne, de forma quase antológica, um manancial de textos de autores que em variados países comentaram enaltecendo a obra poética netiana.
Organizada por [José Luís] Pires Laranjeira e Ana T. Rocha e publicada pela Fundação Dr. António Agostinho Neto (Luanda: 2014, 814 pp), a obra é realmente fundadora. O título, A Noção de Ser, legenda perfeitamente o percurso biográfico do Autor no quadro afim do processo histórico que fez sair Angola do colonialismo e erguer-se como nação e Estado. A consagração de Agostinho Neto (1922-1979) enquanto poeta fica completada e torna-se definitiva.
Realmente, Neto não foi só dirigente do MPLA desde 1962 e o primeiro presidente de Angola em 1975. Formou-se em Medicina na então “metrópole” e aqui publicou os seus primeiros poemas. Escassa produção poética: Sagrada Esperança data de 1974 e a sua segunda obra, A Renúncia Impossível, já é póstuma (1982).
Obra poética escassa mas, ainda assim, não negligenciável. Pires Laranjeira, investigador de culturas africanas da Universidade de Coimbra e apreciador atentíssimo, notou a poderosa irradiação contida nos poemas onde se cruzavam intuições da pessoa singular do Autor com o seu porvir na tela da emancipação do seu país e do seu continente. Em breve muitas outras vozes rodeavam a poesia netiana de autêntica admiração, senão mesmo de veneração.
A Noção de Ser recolhe um manancial, cerca de setenta textos escolhidos sobre a obra poética de Agostinho Neto arrumados em várias rubricas: formação do homem e escritor, análise da obra, intertextualidades, recepção, etc. A consagração efectiva-se nessa extensa base documental qualificada. Os autores pertencem a diversos países, línguas, culturas e formações diversas, de modo que o aplauso geral não poderia ser mais convincente.
Além de Eugénia Neto, viúva do Autor, e dos organizadores da obra, destacam-se no elenco os nomes de Leonel Cosme, Fernando J. B. Martinho, Manuel Simões, Alexandre Pinheiro Torres, Alfredo Margarido, Inocência Mata, Xosé Lois García, Salvato Trigo, Manuel Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Costa Andrade e Jorge Amado. Outros autores serão menos conhecidos dos leitores portugueses.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Galiza lusófona avança

Entrou em vigor na Galiza, há poucas semanas, uma lei que introduz o estudo do Português em todos os níveis do seu sistema educativo. Aprovada por unanimidade no parlamento daquela região autónoma, a lei visa ainda o estreitamento dos laços com os países da comunidade lusófona. É um importante passo em frente que merece registo e caloroso aplauso.
A lei, resultante da proposta designada Iniciativa Valentin Paz-Andrade, teve na base a sociedade civil. Assinada por 17 mil cidadãos galegos, gerou no parlamento uma rara unanimidade das opiniões partidárias. Agora, a lei ordena ao governo galego “incorporar progressivamente a aprendizagem do Português em todos os níveis de ensino”; privilegiar o seu domínio como um mérito especial para aceder à função pública; e a tomar “quantas medidas sejam necessárias” para que o território galego receba as emissões de rádio e tv portuguesas.
Assim, a opinião pública da Galiza parece orientar-se finalmente para um consenso, encerrando o longo período de conflito linguístico em que se debatiam as correntes e se digladiavam as soluções. A adopção do Português abre mesmo o caminho para que o governo da Galiza peça para que a região autónoma entre (“de algum modo”, nota Xose Morell, porta-voz da comissão promotora da proposta) na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Citado na imprensa, Morell assegura que “hoje há mais gente que vê o galego como língua internacional e útil para se comunicar com Portugal, Brasil ou Angola”.
Efectivamente, o galego é o ancestral da nossa língua materna, conforme ensinou Manuel Rodrigues Lapa, saudoso mestre bairradino, profundo conhecedor da cultura e do povo galego, tema de estudo que manteve aberto toda a sua vida. O ensinamento do mestre juntou seguidores, os “lapistas”, e eu fui um deles. Não resta dúvida de que a língua galega se manteve paralisada sob uma conjuntura histórica secular, enquanto o Português evoluiu e se transformou no que é, uma língua de cultura.
Obviamente, a actual aproximação ao Português é, em última análise, a solução mais convincente e conveniente. Todavia, para que não se repita outro “veto de gaveta”, é preciso que o governo autónomo (de maioria absoluta PP) concretize no terreno, com meios financeiros suficientes, a lei emanada da vontade popular. E, em Portugal, será de recordar que uma delegação galega participou em 1990, no Rio de Janeiro, nas negociações da reforma ortográfica unificada, isto a sugerir a substituição da Guiné Equatorial pela Galiza na CPLP para tocar mais fundo no coração dos povos dos dois lados do rio Minho. [Foto: "Alameda das faias", plantadas no séc. XVIII em Antrim, Irlanda do Norte.]

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Acordo Ortográfico: stop?

Amontoou adversários acérrimos, provocou polémicas e ateou discussões entre as facções rivais desde que foi assinado em Lisboa em 1990. Mas quando o Acordo Ortográfico entrou oficialmente em vigor em Portugal, e o Brasil e Angola adiaram semelhante decisão, as posições estremaram-se. Agora, em Lisboa, levanta-se a questão: que fazer?
Realmente, a situação em que Portugal se vê é um tanto desconfortável. Esperar passivamente pela decisão a tomar pelos maiores países integrantes da comunidade lusófona talvez até 2015? Mas quando irão aplicar os sete países subscritores a reforma acordada?
Enfim, dois deputados decidiram levantar a questão na Assembleia da República. Na presente situação, justifica-se bem a iniciativa seja qual for o resultado que venha a obter. O Acordo Ortográfico parece ferido de morte e, se acaso pode salvar-se, mande notícias.
Vejamos, eu nunca me pronunciei contra a reforma. Ao invés, apoiei-a desde o princípio percebendo o valor da unidade linguística a preservar no espaço da lusofonia. Quando entrou em vigor, legalmente, passei a escrever, respeitando-a, no blogue e nos meus livros. Recentemente, em face da triste situação colocada aos portugueses, distanciei-me do Acordo, fiz corpo com os opositores e retornei à antiga ortografia (ver aqui, em Etiquetas: “Ortografia”).
Estou portanto à vontade para apoiar uma iniciativa que se dispõe a abordar a questão. Acho mesmo que era tempo de reagir. A situação precisa de ser analisada, discutida e convenientemente decidida.
Deve salientar-se que a ortografia oficial portuguesa acata uma reforma admitida por autêntica concessão negocial. Não era a nossa ortografia, certamente não era também a de nenhum outro país lusófono, mas foi a solução consensual encontrada pelos negociadores. Seria bonito que os acordos internacionais fossem honrados.
Finalmente, irá declarar-se que espécie de futuro espera a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. A CPLP tem sido considerada, desde que nasceu, organização com mais sonhos do que músculo para os realizar. Se vier a desaparecer, será lamentável.
Lamentável continua a ser, de facto, para nós, que o único Museu da Língua existente no quadro lusófono tenha sido criado no Brasil e, note-se, que consiga receber milhões de visitantes (entre os quais, naturalmente, poucos portugueses se contarão).

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O Português sem mestre

O crónico praticante da escrita acaba por se enredar nas palavras que usa. Com elas se veste para sair à rua e a elas se prende ao enamorar-se, senão de todas, pelo menos de algumas escolhidas. Então, como fugir ao golpe que sente ao ver atropeladas algumas delas por descuido ou ignorância?
O respeito pela língua materna confundiu-se outrora com o respeito pela pátria e o patriotismo. As regras da educação impunham o máximo primor da linguagem no contacto directo, oral ou por escrito, das relações sociais. Mas os costumes mudaram, esfumou-se a civilidade e deliquesceu a educação tanto quanto a consideração pelo “outro”.
A desvalorização sistemática do próximo acompanhou a desvalorização do respeito pela língua materna como se uma insubordinação civil pudesse tornar mais tolerável uma subordinação larvar imposta pelo sistema dominante em crise (e por aí se avançou até à degradação dos princípios e dos valores). Os atropelos às regras do bem falar e bem escrever vulgarizaram-se ao ponto de se instalar a confusão actual e se banalizarem liberdades e libertinagens. O léxico vulgar e a semântica abriram-se a inovações sem critério alargando-se tanto quanto, por outro lado, se empobreceram.
Exemplos? Vejamos o caso das palavras formadas por iniciais (Pide, laser, sida): têm crescente uso pois simplificam a elocução tornando-a mais eficaz. São, realmente, acrónimos, mas a designação correcta vê-se substituída por esta outra, sigla, termo com significado diverso que os dicionários registam.
Cresce também a utilização de estantes que apoiam microfones e textos dos oradores em variadas sessões. Chamam-lhes pulpitre (ou mesmo púlpito) quando julgam atinar na designação correcta, mas o termo vem do espanhol significando “carteira escolar”. Ora o objecto, conhecido desde há séculos, tem nome bem português: é atril, “estante em forma de plano inclinado, para se pôr aberto o livro, ou o papel, a fim de se poder ler comodamente”.
O anglicismo ranking popularizou-se nas esferas desportivas, escolares e outras. Dispensa vocábulos como categoria, classificação, posição, tal como tranche, galicismo igualmente escusado porque ignora expressões portuguesas aplicáveis como prestação, fatia, parte. Parece que é chique usar estrangeirismos na elocução, comportamento que revela o abandono a que os portugueses votam a sua língua materna, isto é, a sua literatura, a sua cultura, a sua identidade. Mas continuo (e na melhor companhia!) a ver esta língua como a maior criação do génio deste povo… vendo-a, lamentavelmente, a corromper-se no interior da sua própria matriz.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O futuro da lusofonia


Há poucos dias, uma conferência que reuniu em Lisboa um naipe de linguistas, debruçou-se sobre o futuro da comunidade lusófona. Considerou então que a nossa língua materna, hoje vista num sexto lugar entre as principais do mundo, iria atingir nos próximos trinta ou quarenta anos um ainda mais radioso futuro. Atingiria o terceiro lugar, a seguir ao Mandarim e ao Hindi!
O sentimento patriótico deve ter pulado nos peitos lusitanos com uma alegria de taça conquistada no campeonato e erguida, de braço no ar, em triunfo. Em tão pouco tempo, o nosso Português até iria suplantar o Inglês, língua franca da globalização! A comunidade lusófona seria, finalmente, a suprema coroa de glória do agora tão deprimido povo português…
No entanto, com tamanho optimismo, varria-se para debaixo do tapete um facto tão irrecusável quão comezinho. Não pode ser omitido que... os portugueses não são donos da sua língua! O Português pertence a cada falante e cada escrevente que, algures, resolva utilizá-lo conforme saiba ou entenda porque estará a exercer um incontestável direito!
Somar mecanicamente as populações de cada membro da comunidade e projectar no porvir as taxas dos seus crescimentos demográficos, para inserir os dados num quadro estático, é exercício vão. Vejamos: quantos indivíduos dessas populações dominam actualmente a nossa língua? Quantas, e como, aderem ou vão aderir ao Português?
Perfilhada na comunidade como língua oficial justifica, ao que parece, tiradas grandiloquentes e triunfalismos indómitos dentro do pátrio rectângulo, mas o que vale isso? Quem vai ao Brasil (o Brasil!) é questionado por bastantes dos seus naturais que lhe perguntam “que língua falam os portugueses”? Tente utilizá-la, para glorificar Camões, quem viaje pelo vasto interior de Angola… e talvez nem precise de ir mais longe.
Cada uma das oito nações da comunidade lusófona (repito: excluindo, lamentavelmente, a Galiza) segue as coordenadas de desenvolvimento da sua própria conjuntura. Todavia, são ainda raras as tentativas para apreender cada uma dessas situações particulares e as integrar numa visão complexa do conjunto em perspectiva (foi o que eu fiz em Inclinações Pontuais, Porto: Campo das Letras, 2000, pp 127-173; e, antes, na rev. “Nós”, Braga-Pontevedra, 1986-1988). Bem mais fácil – e confortável - é colocar simplesmente o conjunto lusófono no mapa das derivações românicas…
Afinal, o Português está a herdar os resultados históricos de uma prolongada falta de investimento que tem mantido a “política da língua” em banho-maria. Nem sequer teve a sorte do Inglês ou do Francês, por exemplo, nos decénios posteriores à descolonização portuguesa (até os nossos emigrantes se queixam de perder apoios escolares). Em suma, o futuro da nossa língua materna, no pátrio território, apenas provoca apreensão (conforme digo em
O futuro do Português) e o futuro da lusofonia vai também por esse caminho.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O futuro do Português

As previsões são sempre falíveis. Assumidamente, obrigatoriamente. Mas, avaliando as linhas de força da presente situação, façamos um pouco de prospectiva para indagar: que futuro pode ter a nossa língua materna?
Vou resumir algumas ideias que venho elaborando e sustentando, incluso neste blogue, sobretudo desde que a organização lusófona existe para servir uma qualquer finalidade (não me perguntem qual). A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (oito países: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor e Portugal, com omissão da Galiza onde não falta quem reivindique a pertença!), parece  sujeita a dinâmicas internas próprias de cada um que pouco deixam à conta de “comunidade”. Num breve relance não é possível ir além de uma avaliação global da situação “comunitária”, bastando lembrar a sorte que está a ter o novo Acordo Ortográfico para a deixar demonstrada.
Portugal ficou praticamente sozinho, com o Acordo pendurado na mão, e os maiores países lusófonos reticentes, sem pressa notória quanto à adopção oficial da nova ortografia acordada em 1990. As instâncias oficiais aplicam-na junto com alguma imprensa, mas amplos sectores nacionais, relutantes, mantêm-se firmes na recusa. O resultado, obviamente, é a barafunda ortográfica que entre nós reina.
Na confusão instalada, o escrevente às tantas nem atina na grafia correcta de um vocábulo ou de um verbo. A eliminação das consoantes mudas agravou as deficiências da escolarização existentes e não serviu ainda para garantir uma unificação ortográfica mínima. Mas as deficiências do sistema escolar, acumuladas ao longo dos anos em obediência a interesses políticos obscuros, implicaram-se também na falta lamentável de uma verdadeira “política da língua” com visão e verdadeiro rasgo.
Assim desembocámos na presente situação de autêntico descalabro. Sem excessivo exagero, pode dizer-se que os Portugueses estimam e conhecem a sua língua materna como se estrangeiros fossem. O falar e o escrever correctamente são já raridades preciosas que restam apesar das deficiências do sistema escolar e dos atropelos da comunicação social no quadro da geral decadência do país.
O Português vai sendo invadido por barbarismos, sobretudo ingleses, e a realização fonética vulgar, fugindo da gramática, atenua ou apaga mesmo a sonoridade das vogais, tornando a língua, antes vocálica, mais e mais consonântica. E pior: só uma pequena parte do nosso vocabulário será talvez ainda conhecida e um tanto utilizável pela população letrada. A parte restante jaz morta e arrefece na vala comum dos dicionários depois de ter brilhado com os esplendores de uma língua de cultura.
Com tudo isto, não estaremos a condenar à ilegibilidade as obras fundamentais da literatura portuguesa? E, rapidamente, a caminhar também para implantarmos no canteiro ibérico uma língua “nossa” e só “nossa”? As próximas duas ou três gerações, herdeiras das anteriores, decidirão se os nossos livros clássicos estarão ou não redigidos numa “língua morta”.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Conversa sobre ebooks

Envolvido como tenho andado com as edições digitais dos meus livros, talvez seja interessante tornar à conversa sobre o tema. Não sendo já verdadeiramente novo, continua no entanto entre a ser pouco frequentado. É assim a conversa que hoje me traz de regresso à coluna.
Variados aspectos do assunto são ainda pouco conhecidos exactamente porque os ebooks continuam a ser considerados por muitos leitores algo como uma curiosidade de feira do livro para atrair minorias de maluquinhos dos computadores e fãs da Net e não como a proposta válida que mostra ser. Porém, devidamente apreciada, a novidade tem óptimas condições de agrado. E neste ponto advirto outra vez: creio que os ebooks têm lugar junto com os livros impressos: o suporte digital complementa o do papel.
Naturalmente, o utilizador do suporte digital necessita de inovar alguma habituação. Desde logo, tem a possibilidade de adquirir, se não de graça, pelo menos a preço muito reduzido, as obras que deseje sem percorrer livrarias e postos de venda onde raramente topa com o que procura e se amontoam em vertiginosa rotação as capas berrantes dos verbos de encher. Conveniência deveras estimável: a fácil arrumação de uma biblioteca virtual que (viva!) deixa as árvores de pé...
Um vulgar aparelho (reader) pode albergar uma biblioteca inteira, digamos mil livros. Que o leitor adquire, no idioma que lhe interesse (lusófonos: atenção ao catálogo) esteja onde estiver no planeta. E o aparelho não é caro.
As funcionalidades de cada um variam, mas podem permitir alterar o tamanho dos textos, inserir marcadores, notas, etc.; e, em ligação com o computador, imprimir o livro. Graças à computação móvel, hoje até um vulgar telemóvel (smartphone) acede às bibliotecas e às leituras. A leitura chega a toda a parte.
Claro, além da necessária habituação do leitor ao aparelho, o leitor terá que se habituar a compras online. O que implica pagamentos com cartão, transferências virtuais. Algo de banal nos tempos que correm...
Entretanto, a edição literária entrou numa conjuntura complicada também para numerosos autores portugueses. Alguém duvida que os ebooks vão expandir-se entre nós no futuro? E que o mercado dos livros em papel vai diminuir?

terça-feira, 16 de julho de 2013

Vou de férias e deixo recado


Este ano o escriba antecipa as suas férias e pretende mesmo fazê-las maiores. Parte agora, em meados de Julho, e voltará no início de Setembro. Mas não vai andar por aí na preguiceira, tem que entreter nos braços um projecto de edições do autor… cibernético. 
Em primeiro lugar, convém esclarecer o desaparecimento de obras, com os respectivos links, que estiveram acessíveis aqui ao lado, na janela “Os meus amigos podem ler”. O facto resulta de ter retirado dez edições digitais da plataforma que os albergava. Restam agora apenas três. 
Posso explicar? Comecei por volta de 2011 a colocar alguns dos meus ebooks na Issuu.com à experiência, quase por desfastio (fugindo das mudanças havidas na edição literária). Quando, há pouco mais de um ano, lá coloquei os últimos, o resultado tornou-se surpreendente: acelerando dia a dia, o número dos visitantes-leitores dos meus treze livros multiplicava-se fazendo saltar a contagem global ao ponto de, prestes a atingir as cem mil “impressões”, resolvi travar a fundo – não recebia quaisquer direitos, era absolutamente gratuita, para mim, tanta farturinha de leitura! 
Ao mesmo tempo, aquela plataforma introduzia importantes alterações e eu, algo desagradado, aproveitei para mudar também. Comecei já a aparecer em poiso diferente com os primeiros títulos. Escolhi a Kindle, dos populares readers da não menos popular Amazon, a livraria mundial com filiada a funcionar no Brasil e que é única no espaço lusófono. 
Persuadiram-me as maiores potencialidades que a opção oferecia. Neste sentido, salientam-se especialmente as edições de literatura infanto-juvenil. Não por acaso, os dois primeiros livrinhos ali colocados pertencem à colecção “As Cinco Graças”, cinco histórias destinadas a crianças ainda incapazes de ler mas em condições de ouvir contar. 
Intento colocar, pouco a pouco, na plataforma Kindle o essencial do que escrevi na área infanto-juvenil - uma vintena de títulos. De facto, parecem-me óbvias as vantagens que os ebooks têm nesta área. Na edição normal, esses textos, pouco extensos, bastante ilustrados a cores e impressos em bom papel atingem preços de capa naturalmente elevados, o que trava a compra (e os livrinhos, uma vez lidos, adormecem nas estantes)… 
Não acredito, devo dizê-lo, no “fim do livro” em papel, mas considero positiva alguma emancipação do habitual suporte físico em nome, também, da conservação do ambiente. Todavia, outras obras, destinadas a adultos, irão ser disponibilizadas pela Amazon para ler online ou impressas em papel para os interessados que as encomendem. Na minha Página do Autor, que me convidam a criar ali, talvez venha a dar conta de outras novidades. [Imagem: pintura de Varatojo José.]

sábado, 26 de janeiro de 2013

Regresso à «outra» Ortografia

Os textos editados neste blogue começaram a aplicar as novas regras ortográficas do Acordo estabelecido pelos países lusófonos em 15-09-08 e, mais vincadamente, a partir de 26-03-10, quando entraram em vigor, oficialmente, em Portugal. A minha adesão foi sempre um tanto forçosa, pois bem percebia a inutilidade de uma resistência quando íamos atingir a unidade linguística possível na comunidade do Português. Sobreveio agora um duplo revés: o Brasil adiou a aplicação oficial do Acordo até 2015 e Angola também não mostra pressa nenhuma...

Nesta situação, perante uma unificação ortográfica (não completa nem perfeita!) que, em vez de se concretizar no terreno, sucessivamente é adiada por vontade dos dois principais países lusófonos, decido-me a regressar à «outra» ortografia. Esta decisão passou por muita hesitação, na dúvida: não irá tudo isto aumentar irremediavelmente a confusão que vai adulterando a boa escrita?

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Ortografia: o conflito

As questões da língua materna são normalmente consideradas maçudas, estéreis ou mesmo impertinentes. Interessam apenas a uns coca-bichinhos que ninguém parece ter pachorra para aturar e que portanto ficam sozinhos a falar entre si. Mas de repente acontece a maravilha: a língua materna é assunto vivo, apaixonante, galvanizador da intelectualidade portuguesa!
Repete-se o fenómeno agora que entrou em plena vigência o Acordo Ortográfico estabelecido pelos países lusófonos. Estranhamente, tudo decorria conforme as disposições nacionais, sem pôr a ferver opiniões pró e contra, e a aplicação do Acordo avançava entre nós fazendo ouvir não mais que uns leves murmúrios de contrariedade. Teria deixado a língua de ser motivo de paixão?!
De súbito, entra em funções outro administrador do Centro Cultural de Belém, tropeça ali com a regra ortográfica em uso oficial e o rastilho começa a arder. Vasco Graça Moura era um renitente opositor da reforma e, apesar de se situar na área do PSD, partido principal do Governo, não hesitou em soltar um clamor. Bastou para incendiar as opiniões caladas.
Organizaram-se abaixo-assinados, movimento de cidadãos, campanhas na Net e na imprensa, todo um coro frenético a pedir a abolição do Acordo internacional que instituiu a comunidade lusófona (CPLP). Mas é tarde e, suponho, também inútil o «NÃO». Portugal (que tem direito irrecusável de não pagar as suas dívidas soberanas sem as analisar e discutir uma a uma) não tem tempo a  perder a discutir a questão ortográfica - esse espantoso drama das consoantes mudas.
Dispensando repetir razões (ver etiquetas), direi somente que a nova ortografia se tornou de facto obrigatória nas instituições do Estado, escolas, entidades públicas e pouco mais. Cada pessoa continua a poder escrever conforme entenda, com ortografia arcaica, digamos de há cem anos, ou atual, que ninguém lhe irá à mão por isso. Cuidando decerto em não confundir o código escrito com a oralidade, pois fala sem pensar na reforma ainda que a acate...
O amigo Vasco Graça Moura, escritor reputado, grande poeta e tradutor de clássicos (da última vez que nos vimos em Lisboa deu-me uma boa nova: estreou-se, começando a publicar por minha mão num suplemento literário mensal que dirigia em jornal de Águeda), embirre quanto quiser com o Acordo, tem esse direito. Mas ele, homem de cultura, sabe muito bem que usa hoje um Português notavelmente diverso, por exemplo, do que eu aprendi a escrever na escola primária. Desde então, passei por várias reformas e agora entro nesta...
A questão ortográfica não se me afigura assim tão dramática nem tão determinante. Nestes termos ponho a degradação a que chegou a língua portuguesa no país que a engendrou. Isso sim, é tão preocupante que já me perguntei se haverá leitores capazes de compreender, não digo Camões, Camilo ou Aquilino, mas tão só Eça, Ferreira de Castro ou Fernando Namora dentro de duas ou três gerações...