sexta-feira, 29 de março de 2013

De olhos nos jornais


Os jornais deste fim de semana pascal aparecem com manchetes e outras letras gordas, nas capas e páginas interiores, bastante sugestivas e animadas. Paro à entrada do quiosque em apreciação das capas de semanários e diários sentindo pelo menos a ilusão de um sopro de vento novo a correr. Quase nem preciso de sujar os dedos a folheá-los para decidir que hoje quem escreve a crónica são os títulos, subtítulos e destaques da imprensa. 
A manchete do “Público” avisa: “Tensão”. Não é para menos: “O PSD pressiona Tribunal Constitucional a ter em conta «contexto económico» do país | PS diz que eleições são «única saída democrática» para a crise | Partidos trocam acusações no Parlamento sobre Silva Carvalho” [o espião] 
O “Sol” anuncia: “2º Resgate à vista. Passos avisou vices do PSD para a probabilidade de um segundo resgate [da troika] após o chumbo do Tribunal Constitucional e apresentou dois cenários possíveis 1. Governo de Salvação Nacional. 2. Eleições imediatas”. 
A capa do segundo caderno do “Expresso” põe a ler: “Ficar o sair do euro, eis a questão”. Outras frases em destaque: de Barry Eichengreen, “O cenário está montado para uma década perdida na Europa”; de João Duque, “O eurogrupo acaba de criar um euro fraco”; de Luís Marques, “Selassie levou um ano a perceber o país”; de Manuela Ferreira Leite, “A decisão do Eurogrupo [Chipre] não tem perdão. Mais uma acha para a fogueira”. 
O jornal i afirma na manchete: “Portugueses perderam confiança na austeridade da Troika. Popularidade do Governo cai a pique”. E mais: entrevistado, José Ribeiro e Castro declara: “Esta União Europeia não presta”. Adiante pergunta: “Como é que o Eurogrupo aceita ser presidido pelo rosto [holandês] de um modelo fiscal de corsários? É uma vergonha!” 
Nas páginas interiores, o i publica: “O PS é favorável que este governo cesse o seu mandato”; “OCDE apela à zona euro a pôr um travão a medidas de austeridade”; “Passos e PSD aumentam pressão sobre Tribunal Constitucional”. Refere também resultados do inquérito Barómetro i /Pitagórica: “Maioria já não acredita no sucesso do programa da Troika”. Acrescenta: “Mais de dois terços dos inquiridos consideram insuficientes os resultados da renegociação com a troika das metas do défice e dos cortes na despesa que permitiram ao governo ganhar um ano”. Distingue-se uma frase: “Cipriotas sentem que estão «a ser assaltados pelos europeus» mas mantêm calma”. 
Hoje os jornais portugueses ficam a ganhar ao cronista. Venceram-no. Ele não seria capaz de escrever um texto, de tão animado, assim tão animador…

domingo, 24 de março de 2013

Um prémio por castigo


Mulher rica que caia na pobreza não é notícia, mas a pobre mulher do povo que nestes tempos agrestes arrisca duas moedas no totoloto e ganha 51 milhões já tem manchete. Aconteceu desta vez na zona nortenha do país. A sortuda, casada e com filhos, correu logo a Fátima com a família para agradecer à Virgem a colossal fortuna que lhe caía em cima da cabeça e, assim de golpe, virava o mundo do avesso.
Um mundo de loucura. A nova milionária, antiga empregada doméstica, junto com os familiares, têm agora que obedecer a rigorosas medidas de segurança (até escondeu a cara quando deu entrevista à tv) que os agentes lhes ditam: ninguém pode sair à rua, ir fazer compras, dar uma volta. Está presa dentro de uma casa nova, em local secreto, onde foi metida de urgência com a família e todos rodeados de gente estranha paga para os proteger.
E agora todos têm motivos para se perguntar, com genuíno espanto, se um prémio tão bom será castigo. Têm de se entregar, confiantes, a toda aquela gente estranha, seguranças e conselheiros de investimentos, gente desconhecida. E estão a ocorrer coisas absolutamente extraordinárias: o Estado também saiu premiado pois confiscou, do prémio, uns dez milhões de impostos; dizem que um governo de um qualquer país europeu, mandado pela Alemanha, vai confiscar uma parte dos depósitos bancários das pessoas como impostos para pagar as suas dívidas; o patriarca da Igreja daquele país ofereceu os bens da Igreja para ajudar a pagar as dívidas!
Nunca coisas tais aconteceram nos dias da vida! E a sortuda, reunida com os familiares, deita contas ao que lhes resta do bolo dos 51 milhões e já lhe parece pouco. Mas não, o problema agora é outro, o de conservar os milhões que restam a salvo de alguma expropriação legal ordenada por este governo também atolado em dívidas ou de um banco hoje seguro e amanhã falido.
As despesas e encargos da família crescem desalmadamente ainda que isso por ora não lhe doa. Dói-lhe é ouvir que enriqueceu à custa de milhões de pobres que apostaram e perderam no jogo e agora, sem compreensão pelos caprichos da sorte, até discutem a justiça divina ou os rios de dinheiro que saem do país para o jogo em troca de uns raros “camiões-cisterna” que cá entram quando entram. Roem-se de invejas miudinhas, ela conhece-as bem, mas… deixou de ser pobre!
Graças a Deus agora é milionária, quer conservar o que ganhou, pelo menos metade do prémio e com esses milhões ganhar outros tantos. Diz adeus à pobreza antiga, que recorda com crescentes saudades ao atingir uma conclusão. Mais do que ter monte de riqueza tão colossal que nem sabe avaliar, já sente que essa riqueza toda é que a tem a ela, bem amarrada, como fiel guardiã.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Dia Mundial da Poesia


MENSAGEM DE MARIA TERESA HORTA
divulgada pela Sociedade Portuguesa de Autores

Beleza a beleza,
constrói-se a poesia, pedra a pedra de luz, imagem a imagem, na busca da
linguagem indócil, a quebrar a solidão e a entrega. Farpa, espinho e lenho, mas
também júbilo e regozijo. Nada é impossível ao nosso imaginário, em poemas
inquietos e fulgentes, por onde a pantera corre,
        ao longo de versos e sonhos.

Desobediência a desobediência,
constrói-se a poesia. Asa e voo voado, até se tornar rosa de cintilação maior, a nomearmos a criatividade, a fundação das escritas, em busca dos cometas
suicidas e das constelações, no labor do poema.
Sírius e cassiopeia. Oh, a nossa língua construída com os rigores das palavras
únicas,
        sublevadas e insurrectas.

Deslumbramento a deslumbramento,
constrói-se a poesia. Navegação de versos a derrubar fronteiras, negando-se às
obediências cegas e às interdições, aos tempos de assombramentos e
obscurantismos.
A recusar princípios de aceite imposto e ruínas, de onde nos espreitam já: os
ditadores, os lobos da crueldade, os censores e os inquisidores embuçados,
        do Apocalipse.

Insubmissão a insubmissão,
constrói-se a poesia. A combater a escuridade e o punhal da insídia, as
mordaças, as algemas. Com o canto, com as odes e os hinos de versos
revoltosos, armados com as nossas palavras de poeta, poente e alva.
        Voo ardente e desacato.

Corpo a corpo,
constrói-se a poesia, no seu insondável trabalho de sílabas e imagens,
metáforas e rimas, coração tumultuado e incansável, a combater as vozes
obscuras, à cabeceira da lonjura. Grão e bago de claridade de nos salvar,
porque a poesia redime mas não apazigua.
        Porque a poesia salva, mas não aquieta.

Sonho a sonho,
constrói-se a poesia, de utopia em utopia, de igualdade em igualdade, a deitar-se
o poema na mesa, no lençol, no joelho, na pele ensimesmada do pulso.
Nossa arma maior
        De liberdade em liberdade.

Maria Teresa Horta

sábado, 16 de março de 2013

De dom até dono e domus


Ando a ser perseguido por umas palavras que me agoiraram o miolo. São antigas, mergulham as raízes no latim e provavelmente em outras mais antiguidades. Mas não é verdade que nas palavras se guarda a história do tempo que as fez e que, se nos dispusermos a um esforçozinho para as abrir, veremos a luz que têm lá dentro?
Comecei a empreender no vocábulo dom. Sentia-lhe, desde há tempos, uma esquisitice intrigante. Na escola primária habituei-me, como toda a gente, a vê-lo ligado a reis e outras figuras da aristocracia, depois também a bispos e cardeais e por fim, graças à democratização, a senhoras donas. No tira-teimas, lá estava abonada a semântica: donativo, dádiva, qualidade ou vocação; do lat. donu-, “oferta aos deuses” e, como título, do lat. dominus, “senhor, dono [de casa], possuidor, proprietário; chefe, soberano, árbitro, senhor (com sentido próprio e figurado)”.
Eis quanto foi preciso para ficar agarrado ao tema. O dicionário regista que “dono”, proprietário, provinha do lat. dominu- e remetia-nos para o “dom”. Ora dominiu-, domínio (propriedade, direito de propriedade; banquete solene, festim) conduzia a domina, “dona de casa, esposa, e também senhora, soberana”…
Neste ponto, tendo na mão o dom e respectivas derivações fui, inevitavelmente, até ao lat. domus (casa, morada, habitação, domicílio), que lembra a domus municipalis. Era evidente a correlação existente entre as partes deste conjunto lexical. Apontava para um facto de grande relevância histórica com especial significado.
O facto demonstra que o dom era adquirido pelos felizes, então muito raros, possuidores de bens terrenos, propriedades. Um rei, portanto, adquiria-o por possuir vastos domínios com povos, palácios e castelos. No período feudal esses domínios entraram em progressiva fragmentação (repetiam-se as doações régias), de modo que o número dos senhores “donos”, isto é, com “dom”, foi crescendo.
Mas acaso poderiam assistir a isso os grandes hierarcas da cristandade sem disputa, eles que, no esplendor das catedrais, coroavam as cabeças dos reis sagrando-os em nome da divindade? A Igreja também possuía bens terrenos (e não eram assim tão poucos), ainda que, alegadamente, o seu reino não fosse deste mundo: estaria numa transcendência. Todavia, os “príncipes da Igreja” chegaram a ser titulares de domínios celestes atribuídos pelo soberano absoluto, o papa.
É verdade, os príncipes da realeza e da cristandade, conservadores empedernidos, continuam a manter na actualidade o seu dom, ao passo que outros grandes donos do planeta o dispensam, abraçados como estão aos seus milhares de milhões ou de triliões, mas será de notar que os colonos romanos da antiga Lusitânia, sentindo-se decerto miraculados, dotavam muitas vezes as suas villae com uma capela, costume depois mantido por donos posteriores de palacete solarengo. E por aqui me detenho, sem atender a outras derivações de tão prodigioso dom. [Iluminura medieval: tocadores de sanfona.]

sábado, 9 de março de 2013

Depois de ler Romain Rolland


Estou a sair de uma experiência realmente singular. Terminei a leitura de Alma Encantada, romance de Romain Rolland referido na crónica de 28 de Janeiro. Realço ali um trecho da obra notando-lhe uma surpreendente actualidade. 
Todavia, muitas outras surpresas se contêm na vastidão da obra (cerca de duas mil páginas). A principal, para mim, situa-se no confronto estabelecido entre dois modelos literários: um texto com data limite de 1934 e a escrita típica da ficção no século XXI.
Romain Rolland (1866-1944) foi premiado com o Nobel em 1915 pelo elevado idealismo da sua produção literária e pela simpatia e amor à verdade e também por conciliar o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista. Sendo já então escritor assaz influente, notabilizara-se publicando os dez volumes de Jean-Christoph (1904-1912), pois este seu outro ciclo romanesco, Alma Encantada, teve início posterior, em 1922. Ora, neste como no ciclo anterior, é notável a forma como o Autor descreve os diferentes tipos de seres humanos no painel agitado das grandes transformações da sociedade francesa e da Europa daquele tempo.
França, mal refeita das múltiplas devastações causadas pela Primeira Grande Guerra (1914-1918), via crescer os efeitos da crise económico-financeira, o capitalismo selvagem, o desemprego, o fascismo e o nazismo... enquanto, a leste, se consolidava o regime soviético. Alma Encantada, centrada em Anita, familiares e amigos, traça um vasto panorama da evolução que caracterizou o fervilhar dos acontecimentos da época vivida pelo Autor. Saíam então do ventre da história os nossos infaustos tempos modernos.
De facto, Rolland desfibra as linhas entrecruzadas da decadência europeia, pois é nesse grandioso pano de fundo que situa a trama romanesca da obra. Com elevada afirmação ética, evoca personagens e acontecimentos históricos (da política, cultura, etc.) para narrar o processo complexo de uma desagregação dos valores da burguesia parisiense e europeia. Testemunhando-o, Anita, sobretudo, mas também os seus próximos, opõem-lhe uma resistência moral enérgica fundada na consciência individual da equidade social e humana (ao ponto de Anita chegar por fim a lembrar, de algum modo, o romance de M. Gorki, A Mãe).
Quer dizer, Romain Rolland equaciona, em termos verdadeiramente empolgantes, as transformações por que passou a França e a envolvência europeia que persistem como o próximo passado do nosso presente. Simultaneamente, oferece-nos uma jóia literária rutilante embora despida de certos cultismos linguísticos da escrita actual produzida para servir o mercado. Justifica-se: Toda a obra que perdura é feita da própria substância do seu tempo: o artista não foi sozinho a construí-la; reproduziu o que sofreram, amaram, sonharam, os seus companheiros, todo o grupo. (3º vol., p 216).
Alma Encantada esteve na minha estante desde 1966, data da sua edição em Lisboa. Portanto, li a obra decorridos quase 50 anos, a perguntar-me: quantos leitores terá tido desde então? Gostaria de a apreciar com espaço, isto é, sem a curteza desta nota, digamos como comentei, em 1966, Jean-Christoph (ver meu livro Inclinações Pontuais, 2000) mas agora limito-me a apelar: ide às bibliotecas públicas!... [Imagem: Romain Rolland retratado por Gisèle Freund.]

sábado, 2 de março de 2013

Cheira a Primavera Árabe


Sopradas do Ocidente para o Oriente, as brisas da primavera árabe começaram a correr sobre os povos mouros e árabes. Tocaram na Tunísia há uns dois anos, mas já vinham de trás. A valer, ainda sem nome, iniciou-se com a invasão e guerra do Iraque, onde o cheiro do seu rico petróleo pôs à vista aquela acumulação perigosíssima de armas de destruição maciça afinal inexistentes.
A Primavera Árabe, com maiúsculas, ganhou todo o seu esplendor na Líbia, país dos mais prósperos e desenvolvidos da região graças aos seus recursos naturais. Não tardou, porém, a cobrir-se de invernia logo que Kaddafi, ditador pintado de horrores negros como o belzebu, teve fim justiceiro como Saddam Hussein, o outro negregado ditador caído nas mãos dos seus gloriosos vencedores.
Não precisamos hoje de esperar mais para avaliar, em rápida vista panorâmica, os frutos gerados pelas brisas primaveris. Sem Hussein, os iraquianos antes pacificados continuam a digladiar-se na fogueira ateada dos seus problemas intestinos: xiitas, sunitas e curdos matam-se e destroem-se em guerra civil com armas que nunca lhes faltam. Sem Kaddafi, os líbios retalham o país no entrechoque de três partidos opostos, qual deles o mais radical. 
A Tunísia continua também longe da paz. Desde que o regime malvado tombou, correntes religiosas e facções políticas contrapostas fazem reinar a violência, a destruição e a morte: o povo tunisino quer paz e dança no barulho instalado sem encontrar porta de saída. A sul, no antigo Sudão, Darfur, independente em 2011 (rico-pobre de energias fósseis), negros muçulmanos conflituam com árabes e não árabes, enquanto no Mali tropas francesas... 
E a Somália, e... Adiante. Mubarak, o faraó aliado de Israel, tremeu até cair mas as concentrações nas praças continuaram imparáveis porque polícias e militares apoiam o novo poder (teocrático, da sharia), não o povo egípcio. Entretanto, na Síria, uma guerra civil desencadeada por rebeldes armados destroem a República para destruir al-Assad (e dar o poder à jihad = guerra santa?) com pleno apoio da imprensa e de governos adeptos da verdade única. De repente um relâmpago ilumina a noite da memória e o quadro ganha sentido. 
O fundamentalismo islâmico, com ou sem rótulo taliban, espalha-se por países árabes, do magrebe e do continente africano. Saiu do colo das tropas americanas no Afeganistão, depois emigrou (massacres na Argélia, etc.) para onde, por coincidência, reservas de energias estratégicas pediam que era preciso dividir para reinar. O “perigo terrorista” tornou-se tão necessário como foi outrora o “perigo comunista”, mas o pior é haver tantos cidadãos incapazes de perceber o que se passa realmente no mundo e já barulha à sua porta.