Estou a sair de uma experiência realmente singular. Terminei a leitura de Alma Encantada, romance de Romain Rolland referido na crónica de 28 de Janeiro. Realço ali um trecho da obra notando-lhe uma surpreendente actualidade.
Todavia, muitas outras surpresas se contêm na vastidão da obra (cerca de duas mil páginas). A principal, para mim, situa-se no confronto estabelecido entre dois modelos literários: um texto com data limite de 1934 e a escrita típica da ficção no século XXI.
Romain Rolland (1866-1944) foi premiado com o Nobel em 1915 pelo “elevado idealismo da sua produção literária e pela simpatia e amor à verdade” e também por conciliar o “idealismo patriótico com um internacionalismo humanista”. Sendo já então escritor assaz influente, notabilizara-se publicando os dez volumes de Jean-Christoph (1904-1912), pois este seu outro ciclo romanesco, Alma Encantada, teve início posterior, em 1922. Ora, neste como no ciclo anterior, é notável a forma como o Autor descreve os diferentes tipos de seres humanos no painel agitado das grandes transformações da sociedade francesa e da Europa daquele tempo.
França, mal refeita das múltiplas devastações causadas pela Primeira Grande Guerra (1914-1918), via crescer os efeitos da crise económico-financeira, o capitalismo selvagem, o desemprego, o fascismo e o nazismo... enquanto, a leste, se consolidava o regime soviético. Alma Encantada, centrada em Anita, familiares e amigos, traça um vasto panorama da evolução que caracterizou o fervilhar dos acontecimentos da época vivida pelo Autor. Saíam então do ventre da história os nossos infaustos “tempos modernos”.
De facto, Rolland desfibra as linhas entrecruzadas da decadência europeia, pois é nesse grandioso pano de fundo que situa a trama romanesca da obra. Com elevada afirmação ética, evoca personagens e acontecimentos históricos (da política, cultura, etc.) para narrar o processo complexo de uma desagregação dos valores da burguesia parisiense e europeia. Testemunhando-o, Anita, sobretudo, mas também os seus próximos, opõem-lhe uma resistência moral enérgica fundada na consciência individual da equidade social e humana (ao ponto de Anita chegar por fim a lembrar, de algum modo, o romance de M. Gorki, A Mãe).
Quer dizer, Romain Rolland equaciona, em termos verdadeiramente empolgantes, as transformações por que passou a França e a envolvência europeia que persistem como o próximo passado do nosso presente. Simultaneamente, oferece-nos uma jóia literária rutilante embora despida de certos cultismos linguísticos da escrita actual produzida para servir o mercado. Justifica-se: “Toda a obra que perdura é feita da própria substância do seu tempo: o artista não foi sozinho a construí-la; reproduziu o que sofreram, amaram, sonharam, os seus companheiros, todo o grupo.” (3º vol., p 216).
Alma Encantada esteve na minha estante desde 1966, data da sua edição em Lisboa. Portanto, li a obra decorridos quase 50 anos, a perguntar-me: quantos leitores terá tido desde então? Gostaria de a apreciar com espaço, isto é, sem a curteza desta nota, digamos como comentei, em 1966, Jean-Christoph (ver meu livro Inclinações Pontuais, 2000) mas agora limito-me a apelar: ide às bibliotecas públicas!... [Imagem: Romain Rolland retratado por Gisèle Freund.]
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