O abandono dos idosos, a negligência e até os maus tratos a que por vezes são sujeitos, devem merecer a nossa melhor atenção e o nosso mais vivo repúdio. Para mistificar a realidade, ou talvez porque muitos não gostem de ser tratados como tal, a chamada sociedade pós-moderna transforma, em passes de mágica falaciosa, os idosos em seniores, como se a velhice fosse coisa sem sentido, não arrastasse consigo algumas moléstias - a dependência, o desamparo e a solidão - ou não suprimisse progressivamente os prazeres que a vida realmente vivida proporciona.
Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os idosos encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece.
Noutras sociedades – países africanos e asiáticos, por exemplo - os velhos são descritos como “aqueles que ganharam sabedoria”. Na cultura ocidental esses valores encontram-se em erosão acelerada. O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à sociedade.
Querem um exemplo da crise da solidariedade e do modelo tradicional de obrigações filiais? Todos os anos, pelo Natal, assistimos ao espectáculo indecoroso de gente que interna os seus pais ou avós nos hospitais e os deixa por lá, sem a menor ponta de remorso ou o menor estremecimento de desconforto. Entretanto, os idosos têm “alta”, o hospital contacta as famílias mas estas não aparecem. Despachado o fardo incómodo, demandam outras paragens onde vão passar o Natal e o Ano Novo, libertos de preocupações mas atolados no egoísmo e na desumanidade, agindo como se os seus familiares fossem desprovidos de direitos.
Estamos a falar de crimes sem castigo. Quem faz isto, ou coloca os seus idosos em lares clandestinos de vão de escada, devia ser acusado de crime de abandono. A indiferença pelos direitos do nosso semelhante é uma forma de cumplicidade no atentado a esses mesmos direitos.
Enquanto as coisas continuarem como estão, estes actos ignóbeis tendem a transformar-se em rotina no quotidiano. A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.
Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos. [Imagem: porta pintada em rua do Funchal, Madeira.]
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