sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Semblantes esculpidos

Agora é muito difícil descobrir por aí um rosto de pessoa idosa que me dê autêntica vontade de retratar, disse ele. Encarei-o, estranhando, porque era uma frase singular de um amigo também já idoso. Conheciamo-nos desde os tempos da nossa juventude e ele, desde então, continuava apaixonado pela fotografia.

Gostava de fotografar semblantes de mulheres e homens bem curtidos pela vida tanto como detestava fotografar bebés e crianças. Procurava-os e descobria-os em romarias, feiras e encontros ocasionais, primeiro com o seu “caixote” Kodak de película em rolo de 6 x 9 cms a preto e branco, e em seguida com outras máquinas de mais evoluída técnica. Mas eram sempre figuras populares dos campos em redor que o atraíam, nunca habitantes do ambiente urbano homogeneizado.
Acompanhei, partilhando enquanto pude as suas artes como fotógrafo amador até que me cansei da novidade. Entretanto, andei a trocar máquinas e a enviar pelo correio os rolos usados para revelar, aprendendo a corrigir os erros que notava nas imagens impressas no papel e se nos amontoavam nas gavetas. Era o tempo de medir as distâncias focais, graduar a abertura do obturador conforme a luz ambiente, a velocidade do disparo… antes de haver flash como acessório, filme em rolo de 35 mm, filtros, diapositivos, projectores, Photoshop… e muito, muito antes da actual abundância de cameras digitais com tantos automatismos incorporados que só pedem que alguém carregue no botão.
O meu amigo queria captar os traços que numa fisionomia anónima vincam as marcas da sua especial humanidade. Desprovido de tais marcas, um rosto humano era para ele uma página em branco: nada lhe dizia com notável interesse, ao modo da carinha de elegante e sedutora rapariga, bonita de ver ou mesmo desejar, e ponto final. Decerto por isso, repetia, citando Balzac, que todo o homem com mais de trinta anos é responsável pela cara que apresenta.
A frase que acabava de lhe ouvir puxou-me pela memória. Acordou-me. O meu amigo parecia lamentar a raridade, talvez a desaparição, das “suas” apreciadas fisionomias de uma gente de trabalho honrado e sofrido que tinha o olhar claro e sereno posto no futuro sabendo da vida o bastante para aceitar com estoicismo o que não tem remédio e rir-se a mangar do que afinal não tem remédio.
Compreendi o meu velho amigo. Este país deprimido cobria-se de seniores, porque os jovens saíam em massa, emigrando, e a natalidade baixava, deixando à vista o seu desgraçado e envelhecido povo. Um povo que teimava em resistir no seu pátrio chão, já sem as marcas viris de um heroísmo quotidiano sem tréguas afirmado na dignidade da sua condição modesta mas honrada.

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