segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Retrato tipo passe-1

O texto anterior, inédito publicado pelo Museu do Neo-Realismo (V. F. de Xira) no livrinho ali referido, foi gesto com esta consequência: colocou-me perante um outro texto meu, igualmente inédito, também ali presente. O livrinho teve escassa tiragem, pelo que resolvo trazê-lo para aqui, dividido em dois posts.


Pessoas que tenho próximas sustentam que sou organizado, metódico. Repetem-me a opinião como se isso fosse um atributo raro, elogiável como a pontualidade que nos deixa à espera de quem a não tem. É certo que aprendi a caligrafar as letras na antiga escola primária escrevendo dentro das duas linhas mas cedo me habituei a ultrapassar as pautas azuis para salientar o poder das maiúsculas ou para desenhar as pernas dos pp e dos qq, letras pequenas com que se escreve “por quê”.
De facto, não me considero assim tão notadamente organizado, arrumadinho. Pensando no percurso existencial que fiz, vejo em mistura o que a norma dos percursos individuais separa com bastante nitidez. A mistura começa logo no período juvenil com a minha formação escolar: trabalhei estudando e longamente estudei, trabalhando.
Quer dizer, o trabalho foi a minha escola porque a Escola propriamente dita pouco trabalho me deu. Naquele tempo, que foi o meu tempo, aprendi fazendo e, pondo-me à prova, fazendo me fiz. Continuo a ser, evidentemente, o que sempre fui: um apagado e eterno aprendiz de tudo – do mundo, das ideias, da arte, da vida. A misturada que realmente me aconteceu na trajectória existencial com a preparação escolar e cultural, e logo depois com a literatura, o jornalismo, a participação cívica, continuou, continuou… Sou vizinho da Ria de Aveiro, gosto da caldeirada!
Para tudo o que me importava, não precisei de diplomas. Bastou-me querer e demonstrar na prática a competência real que prometia ou já possuía. Mas era o tempo, hoje incrível, em que a profissão jornalística não exigia curso ou formação escolar prévia (então inexistentes) e a criação literária era já o que continua a ser, a ilha do tesouro atreita a todas as abordagens.
Estou a ver ali na estante um volumezinho escrito por Carlos Ceia, professor universitário lisboeta, que põe o assunto na capa interrogando: “A literatura ensina-se?” Não se ensina, aprende-se.
Sobrou-me ousadia para expandir ainda mais a misturada. Transpus “a salto” diversas fronteiras de géneros consagrados, gostando de gerar híbridos onde deles sentia falta. Quem pode arriscar, por exemplo, uma definição cabal do que seja texto jornalístico ou texto literário?
A verdade é que a expressão escrita me cativou desde que me conheço. Quis experimentá-la, fazê-la toda minha para a amar. Derramei-me pelos seus diversos registos – o comentário ligeiro, o poema, a crónica, a ficção, o ensaio – para depois considerar, muito sinceramente, que estou no que escrevo. Aí me encontro. A pulsão da escrita associada à pulsão da leitura (duas ocupações solitárias, silenciosas) arredou-me de convivências festivas, camaradagens de grupo, cumplicidades. E não produzi senão migalhas, umas pequenas migalhas que, reunidas em monte, estarão longe de constituir Obra.
Quem assim se derramou, esmigalhando-se página a página, talvez desenhe um perfil. Aparecerá essa “obra” como “a sua vida” conforme a legenda da capa desta brochura sugere? Lembro neste ponto uma página de David Mourão-Ferreira (em Tópicos Recuperados, 1992, p 191) que distingue com especial agudeza, no plano dito da nossa “acção cultural”, duas “famílias” (assim Mourão-Ferreira as nomeia). Cito: “a [família] daqueles que vivem exclusivamente para a sua arte (quando não mesmo egoisticamente para a promoção ou a propaganda do que julgam ser a sua arte) e a daqueles que pelo contrário se entregam – quantas vezes com sacrifício de si próprios – ao serviço da Arte ou da Cultura em geral, no definido propósito de mais amplamente as fazerem usufruir por parte da comunidade a que também eles pertencem.”
David Mourão-Ferreira foi poeta, ficcionista, crítico literário, ensaísta, professor, além de divulgador de poesia, conferencista e, enfim, animador cultural de invulgar envergadura. Em sua homenagem, ponho aqui o trecho completo em foco: “Nem os primeiros, por via de regra, são os que se mostram mais exigentes com aquilo que fazem, nem os segundos os que menos têm para exprimir ou comunicar. Talvez possa dizer-se que uns são apenas o que são, enquanto os outros, além do que são, se impõem como homens de Cultura; e trata-se ainda, num caso e noutro, de algo que deriva e depende da estrutura moral dos indivíduos, do grau de percepção que manifestam ou não manifestam acerca das suas responsabilidades sociais – e, prioritariamente, da percepção e assunção dessas suas responsabilidades no próprio domínio da Cultura, em relação à própria Cultura.” [continua]

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